domingo, 18 de março de 2007

Registro 10: Expressionismo malfattiano

A Ventania, Anita Malfatti, 1915
óleo sobre tela, 48 x 60cm
Palácio Boa Vista
Campos do Jordão - SP

Registro 9: Uma dica! Baudelaire

EMBRIAGAI-VOS


É NECESSÁRIO estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz perder para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar.

Mas – de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.

E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:

- É a hora de embriagar-se! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.

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BAUDELAIRE, Charles. Embriagai-vos. In: Charles Baudelaire: poesia completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2002, p. 322.

Registro 8: Alguma coisa está fora de ordem...

(...) A morte de João Hélio acendeu um movimento reacionário no País e o que não tem faltado na TV são telespectadores excitados pedindo, em programas policialescos, a pena de morte, a tortura e atitudes na linha lei de talião. Na mesma semana em que isso ocorre, o mundo da política e o da Igreja Católica iniciaram um outro debate que também caiu no fosso reacionário: a defesa do uso da camisinha pelo presidente Lula e a reação imediata da Igreja Católica.

Não bastasse a reação da Igreja por aqui, em escala mundial, outra pérola reacionária surpreendeu muitos: o papa Bento XVI, num retrocesso, atacou sem meios-termos os divorciados. Classificou os segundos casamentos com a singela adjetivação de “praga social”. E aos católicos mais carolas que se debrucem sobre o latim, língua defendida pelo papa para a celebração da missa. E depois há quem não consiga entender porque as catedrais da fé e seus teleevangélicos madrugadores são sucesso de público.

Mas como vivemos numa miscelânea de discursos non sense, o melhor de tudo é assistir a essas normas papais contra os divorciados nos telejornais e no intervalo comercial vermos um show de capacidade do catolicismo de se adaptar à lógica moderninha e nada reacionária: o anúncio do espetáculo Paixão de Cristo, em Nova Jerusalém (PE), é impagável.

Ao mesmo tempo em que anuncia Francisco Cuoco como Herodes improvável e Graziela Massafera como uma Maria Madalena louraça-gostosona, exibe um boneco de uma marca de palha de aço (a mesma que patrocina o BBB&) dançando desengonçado no papel de patrocinador, nos convidando a rir do mercadinho da fé que, com uma variação aqui e outra ali, é tudo muito parecido: tudo é business e performance em nome do divino.

Para coroar o anúncio, uma marca de peixe congelado, com nome de deus grego e ilustrado por desenho medonho, brada: o pescado da paixão. Mais risível impossível.

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FONTES, Malu. O mundo é um inferno. In: Revista da TV. A Tarde, Salvador, 18.03.2007, p. 9.
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Folha de S. Paulo, terça-feira, 20 de março de 2007
RUBEM ALVES A praga

É BOM atentar para o que o papa diz. Porta-voz de Deus na Terra, ele só pensa pensamentos divinos. Nós, homens tolos, gastamos o tempo pensando sobre coisas sem importância tais como o efeito estufa e a possibilidade do fim do mundo. O papa vai direto ao que é essencial: "O segundo casamento é uma praga!"Está certo. O casamento não pertence à ordem abençoada do paraíso. No paraíso não havia casamento. Na Bíblia não há indicação de que as relações amorosas entre Adão e Eva tenham sido precedidas pelo cerimonial a que hoje se dá o nome de casamento: o Criador, celebrante, Adão e Eva nus, de pé, diante de uma assembléia de animais, tudo terminando com as palavras sacramentais: "E eu, Jeová, vos declaro marido e mulher. Aquilo que eu ajuntei os homens não podem separar..."

Os casamentos, o primeiro, o segundo, o terceiro, pertencem à ordem maldita, caída, praguejada, pós-paraíso. Nessa ordem não se pode confiar no amor. Por isso se inventou o casamento, esse contrato de prestação de serviços entre marido e mulher, testemunhado por padrinhos, cuja função é, no caso de algum dos cônjuges não cumprir o contrato, obrigá-lo a cumpri-lo.

Foi um padre que me ensinou isso. Ele celebrava o casamento. E foi isso que ele disse aos noivos: "O que vos une não é o amor. O que vos une é o contrato". Aprendi então que o casamento não é uma celebração do amor. É o estabelecimento de direitos e deveres. Até as relações sexuais são obrigações a ser cumpridas.

Agora imaginem um homem e uma mulher que muito se amam: são ternos, amigos, fazem amor, geram filhos. Mas, segundo a igreja, estão em estado de pecado: falta ao relacionamento o selo eclesiástico legitimador. Ele, divorciado da antiga esposa, não pode se casar de novo porque a igreja proíbe a praga
do segundo casamento. Aí os dois, já no fim da vida, são obrigados a se separar para participar da eucaristia: cada um para um lado, adeus aos gestos de ternura... Agora está tudo nos conformes. Porque Deus não enxerga o amor. Ele só vê o selo eclesial.

O papa está certo. O segundo casamento é uma praga. Eu, como já disse, acho que todos são uma praga, por não ser da ordem paradisíaca, mas da maldição. O símbolo dessa maldição está na palavra "conjugal": do latim, "com"= junto e "jugus"= canga. Canga, aquela peça pesada de madeira que une dois bois. Eles não querem estar juntos. Mas a canga os obriga, sob pena do ferrão...Por que o segundo casamento é uma praga? Porque, para havê-lo, é preciso que o primeiro seja anulado pelo divórcio. Mas, se a igreja admitir a anulação do primeiro casamento, terá de admitir também que o sacramento que o realizou não é aquilo que ela afirma ser: um ato realizado pelo próprio Deus. Permitir o divórcio equivale a dizer: o sacramento é uma balela. Donde, a igreja é uma balela... Com o divórcio ela seria rebaixada do seu lugar infalível e passaria a ser apenas uma instituição falível entre outras. A igreja não admite o divórcio não é por amor à família. É para manter-se divina...

A igreja, sábia, tratou de livrar seus funcionários da maldição do amor. Proibiu-os de se casarem. Livres da maldição do casamento, os sacerdotes têm a suprema felicidade de noites de solidão, sem conversas, sem abraços e nem beijos. Estão livres da praga...