domingo, 9 de outubro de 2011

Registro 368: Participação o VIII Fórum Intermunicipal de Teatro da Bahia


ALGUNS DESAFIOS DO ENCENADOR NO SÉCULO XXI

Raimundo Matos de Leão


Inicialmente, eu agradeço à União de Amadores Cênicos da Bahia pelo convite. Sinto-me honrado em participar do VIII Fórum Intermunicipal de Teatro da Bahia, e espero contribuir com algumas ideias para animar o debate sobre o tema que me foi confiado: os desafios do encenador no século XXI. Os desafios são claros, e espero que os encenadores sejam homens e mulheres de seu tempo, atentos ao que acontece no mundo globalizado, mas sem perder de vista o que se passa no seu quintal na sua aldeia. Aí já temos um desafio que enseja uma certa demanda por parte de todos nós, artistas ou não. No caso daqueles que optaram pelo exercício de colocar em cena um espetáculo, assinando-o, a responsabilidade é inegável, visto que a obra artística deve trazer elementos que possam estabelecer a comunicação com o espectador na sua contemporaneidade. Falo no singular, pois a obra atinge cada um em particular, embora a plateia se configure com um conjunto de sujeitos. Isso torna o desafio  maior, pois o artista tem de falar para indivíduos que vão ao teatro munidos de uma visão de mundo e com uma bagagem de informações que serão postas a prova ou não pelo que está em cena.

Penso que o artista, por mais complexa que seja a sua obra, busca estabelecer um diálogo com aquele que recebe sua criação, portanto a obra deve se abrir para o receptor de maneira que seus elementos se traduzam e se espalhem. Neste processo, é preciso que o encenador se dê conta da importância do trabalho autoral que se manifesta por uma série de procedimentos cênicos, sem perder de vista o objetivo maior, que é fazer com que sua obra seja decodificada tanto por leigos quanto por especialistas. 

Desde que no teatro surge a figura do encenador nos meados do século XIX, ficando André Antoine como aquele que primeiro assinou um espetáculo, da mesma forma que o pintor assinava seus quadros, a figura do encenador passou a concentrar em maior ou menor grau a responsabilidade sobre o espetáculo. Ele é responsável pela autonomia do espetáculo, contribuindo então para que a encenação se constitua como discurso autônomo em relação ao texto dramático, criando assim a dramaturgia da cena ou o texto espetacular, como define o italiano Marco de Marinis (1982, apud FERNANDES, 2010), ao pensar o espetáculo como uma escritura. Aí temos outro desafio que implica  na opção por parte do artista de tomar para si uma determinada corrente estética e produzir/criar a partir dela, buscando uma unidade de sentidos ou optando por se expressar por um espetáculo organizado de maneira que ele se torne uma polifonia de significantes.

Outra questão que também me parece um desafio é o encenador dar conta da tradição, espanando o pó que o tempo deixou sobre o legado das gerações de artistas anteriores a ele, e ao mesmo tempo se valer dos avanços tecnológicos da contemporaneidade. No entanto, é necessário que o encenador fique de sobreaviso para não sair por aí copiando experimentos que negam o princípio fundamental do teatro, que é a relação direta em tempo real do ator com o espectador. A minha opinião, muitíssimo particular, é de que o teatro existe mesmo é nesta relação. Sem o elemento humano, como poderá haver reverberação emocional, intelectual, estética? Não me parece um bom caminho descaracterizar de tal forma o ato teatral que ele deixe de ser o que é. Tal afirmação não nega a interdisciplinaridade, o hibridismo e a fragmentação. O palco absorve tudo, desde que tudo faça sentido e signifique. Assim não cairemos na algaravia que por vezes se impõe no espaço cênico. Penso num certo equilíbrio entre a “vanguarda prospectiva,” celebrativa da tecnologia de ponta, e a “vanguarda tradicionalista” que se inspira nos ritos antigos (SCHECHNER, 1998), como um caminho para fortalecer a presença viva do ator em comunhão com os espectadores sem que se caia no virtualismo, tendência cada vez mais impositiva na cena.

Assim, vejo como desafio do encenador na pós-modernidade, levando em conta que este conceito está em permanente questionamento, agir organicamente para responder ao postulado do fim das grandes narrativas, ao rompimento das fronteiras entre arte, ciência e entre as linguagens da arte. Levando em consideração tais questões, o encenador deve atentar  para que o apagamento não se dê de maneira que não saibamos mais se o que vemos é encenação teatral ou outra manifestação. Sobre o propalado fim das grandes narrativas, Os Náufragos da Louca Esperança, criação do Théâtre du Soleil, excursionando pelo Brasil, segue na contramão. Sobre a encenação de Ariane Mnouchkine, Luiz Fernando Ramos afirma: "Negando a hipótese de que não haja lugar para as grandes narrativas, o que se conta não só analisa o fracasso das utopias modernas , como arisca  remexê-las. O coletivo do Soleil resiste. Eles não renunciam a sonhar e a produzir quimeras." (Folha de S. Paulo, 06.10.2011)

Outro conceito que deve ser um desafio no horizonte dos encenadores é a polêmica instaurada a partir de Lehmann (2007) e seu conceito de pós-dramático em oposição ao dramático, uma categoria ultrapassada, segundo o ponto de vista do teórico alemão. Seguindo o seu pensamento que aponta o pós-dramático,  surgido em cena desde o teatro experimental dos anos 70, e configurado com mais precisão nas experiências dos anos 90 para cá, o teatro do século XXI deixaria de ser fabular, caindo por terra a triangulação drama, ação e imitação, modelo que nem as vanguardas do século XX conseguiram romper. Parece-me, no entanto, que a discussão proposta envereda por uma via que determina o apagamento de um modelo e sua substituição por outro, um fator que pode colocar os encenadores em uma camisa-de-força, visto que todos devem ser, de agora em diante, pós-dramáticos, e assim conceber suas encenações. É certo que a teatralidade contemporânea vem sendo explodida ao longo do tempo. Podemos tomar a encenação de Ubu Rei de Alfred Jarry, em 1896, como um ponto luminoso nas muitas revoluções sofridas pelo teatro. Assim como este momento ímpar, outros surgiram ao longo da história do espetáculo, figurando transformações radicais e encenações autorais. Talvez seja esse o desafio maior, criar uma obra autoral e fazê-la chegar aos espectadores, independente de um modelo camisa-de-força.

Nesta panorâmica, corro o perigo da redução, mas o que quero fazer aqui é levantar pontos para uma reflexão por parte de quem se interessa em assumir a condição de encenador em um momento histórico de grande mobilidade, de tantas alternativas e redefinições que fornecem possibilidades para a escritura cênica.

Diante de tantos apelos, surge outro desafio: aquele que nos é colocado constantemente, o do engajamento em uma corrente estética, política ou espiritual. Não delongarei o assunto, visto que cabe a cada encenador optar por uma dos campos que acabei de citar, ou por todos eles. Mas é preciso que reflitamos sobre a diversidade de pensamento que engendra uma série de produtos artísticos reverberadores de sentimentos e ideias que desejam a transformação, seja da arte ou do sujeito. Pensando nas teorias desenvolvidas, segundo Guy Debord (1997) em A sociedade do espetáculo, tudo aquilo que era vivido tornou-se representação, ou seja, espetáculo, e este acúmulo de representação gera em nós a sensação de que não podemos intervir e modificar as coisas. Tal comportamento gera uma certa passividade, identificada no interior da pós-modernidade. Lutar contra esta passividade talvez seja um desafio do encenador em direção ao engajamento, mas de modo tal que este engajamento não nos leve ao radicalismo da exclusão. No momento em que o discurso da inclusão é pauta em todas as reuniões e conversas, é necessário discutir a intolerância para sabermos o que é preciso tolerar, e isso  sem que se turve o olhar, para não sermos restritivos ou complacentes demais.

Vejo também como desafio do encenador no século XXI o exercício do papel de pedagogo. É preciso que ele exerça este papel, o do encenador-pedagogo, principalmente quando prepara atores em seus espetáculos. Esta função foi posta em prática no passado por Constantin Stanislavski, e resultou nos avanços que conhecemos sobre a preparação de intérprete, como também das técnicas de encenação. E por falar em técnicas, não é possível conceber um encenador que não as domine minimamente. Deixando claro que as técnicas não devem ser um limitador no seu processo de criação, cabe então, como um desafio, a capacidade do encenador de utilizar as técnicas, percebendo-as enquanto procedimentos que renderão frutos  quando da concepção do seu trabalho, e de sua transposição para tridimensionalidade da cena. A ênfase está na construção da poética, sendo a técnica um meio para a criação.

Quero alertar para a conjunção teoria e prática, não necessariamente nesta ordem, pois vejo neste binômio algo interligado. Cabe ao encenador dar conta dos princípios que regem os estudos teatrais, não desviando a teoria da prática, para não tornar os processos criativos em elucubrações que fazem do palco outro lugar. Deve-se dar conta do trânsito entre as fronteiras, movendo-se com sabedoria para evidenciar o que o teatro tem de mais interessante:  a relação entre alguém que age e outro que a observa.

Cabe ao encenador do século XXI se perguntar a cada momento: para aonde vai o teatro? No artigo O Teatro na Encruzilhada (1998.), Richard Schechener, estudioso da Performance, coloca a pergunta no plural: “Aonde vão os teatros?”, visto que os aspectos do teatro são múltiplos e não evoluem ao mesmo tempo. Portanto, há espaço para gêneros e formas diversas. Nesta diversidade, cabe ao encenador manter a qualidade de suas propostas, sejam elas conformadas de maneira realista-naturalista, ou sob o signo da vanguarda, do experimentalismo, mas sem perder de vista que a experiência teatral é a do espetáculo ao vivo. Por fim, o desafio maior é encontrar os meios para concretizar o sonho e o desejo de cada um.

Finalizando, cito um trecho que recolhi de um artigo escrito pela atriz Fernanda Torres, publicado na Folha de S. Paulo, em 21 de fevereiro de 2011. Diz ela:

Em Surfando no Caos, autobiografia do guru do LSD da América nos anos 1970, Timothy Leary prevê que, no futuro, os relacionamentos virtuais dominarão de tal maneira a humanidade que a presença de alguém em carne e osso será um acontecimento de dimensões míticas. Intrigante observação. Se o psicólogo americano estiver certo, a velha invenção dos gregos, o teatro, será o grande diferencial das gerações futuras, seja na vida artística, política ou filosófica. Em um mundo ainda nervoso, tenso, populoso e avidamente dominado pela tecnologia, nada superará o poder da presença orgânica da natureza encarnada, sólida, calorosa e profunda. E assim, o humanismo entrará novamente em voga.”

Deve encenador fazer do seu espetáculo o lugar dessa humanidade.


REFERÊNCIAS

DÉBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FERNANDES, Sílvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
RAMOS, Luiz Fernando. Théâtre du Soleil sintetiza potência da literatura e do cinema. In: Folha de S. Paulo, Ilustrada. São Paulo, 2011.
SCHECHENER. Richard. O teatro na encruzilhada. Correio da Unesco, ano 26, n.1, jan., 1998.
TORRES, Fernanda. Iremos tocar a baleia Moby no meio da sala. In. Folha de S. Paulo, Ilustrada. São Paulo, 2011.

O presente texto sofreu acréscimos após sua apresentação no Fórum, mas mantém as ideia defendidas durante a exposição. 

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