sexta-feira, 16 de março de 2007

Registro 4: Ainda sobre Tchecov

ANTON CHEKHOV
AUTOR PROFETIZA O FIM DE UMA ÉPOCA
[1]


Mariangela Alves de Lima


No primeiro ato de O Jardim das Cerejeiras o espaço indicado é um quarto cuja função se alterou pelo uso, mas ao qual as pessoas da casa se referem como “o quarto das crianças”. Ainda está escuro, as janelas estão fechadas e a rubrica determina a estação do ano. Este ato se passa em maio, no luminoso verão do Hemisfério Norte onde as noites são curtas e os dias longos. As cerejeiras estão em flor, mas só poderemos vê-las depois, quando estivermos informados sobre o significado dessas árvores para a família que habita a casa e sobre a ameaça que paira sobre o cerejal. Ao abrir-se a cena para o último ato da peça, a ação está outra vez localizada no “quarto das crianças”, agora despojado do mobiliário e tendo a um canto as malas empilhadas dos antigos proprietários da casa. As crianças que outrora viveram nesse aposento cercado de flores do verão e pelos frutos do outono permaneceram no universo descuidado da infância. Lhuba e Leonid, os irmãos arruinados pela ociosidade e pela imprevidência com que administraram a propriedade rural que deveria prover sua subsistência, estão de partida para uma nova vida. Ela voltará a Paris deixando para trás as filhas e ele, um cinquentão, trabalhará pela primeira vez.

No entanto, entre o verão e o outono, sem que nenhuma ação sensata se desencadeie para reverter a catástrofe econômica, enquanto o desagradável tema de como salvar a propriedade endividada, os personagens de Anton Chekhov modificam-se em suaves gradações, como se respondessem ao inevitável ciclo da natureza. Ao fim, para a aristocracia e para os serviçais rompeu-se o laço econômico e sentimental com o mundo rural. O novo proprietário é o homem moderno que antecipa com prazer o ruído dos machados abatendo as velhas árvores que darão lugar a construções modernas. De qualquer forma, o que desaparecerá não tem mais utilidade prática, é um jardim. Deixou há duas gerações de ser um pomar com a função de nutrir e prover os que dele cuidavam. Para a nova ordem que se instala, o sentimentalismo é um luxo.

Enquanto escrevia a peça, Chekhov comentava, na correspondência a amigos, sobre a sua comicidade. Quando a enviou para ser encenada pelo Teatro de Arte de Moscou, onde estreou em janeiro de 1904, advertiu que deveria ser interpretada como comédia. Se considerarmos a concepção canônica do gênero é ainda mais difícil aceitar essa recomendação do autor. As primeiras imagens estivais da peça são demasiadamente sedutoras e nos fazem participar do sentimento de que esse velho mundo, que se esfacela pela força do determinismo histórico e cuja injustiça “é preciso expiar através do sofrimento”, apelo patético da agonia. Seus habitantes não são cruéis ou desprovidos de encantos, são apenas insensatos e anacrônicos e nos compadecemos deles porque não compreendem. Ignorantes, comportam-se às vezes como personagens trágicos, ou seja, homens bons a quem o destino golpeou injustamente.

Ao enfatizar a graça da peça, é possível que o autor se referisse a um ritmo ou a uma forma de interpretação que contrariasse o fatalismo. O que os personagens centrais sentem e percebem como destino é desmentido pelo modo como agem. A bela Lhuba, tão gentil com os hóspedes e com os que a servem, despende uma moeda de ouro enquanto, na cozinha, os criados passam fome. seu irmão, dado a rompantes sentimentais e elegíacos desvia-se para o assunto do jogo de bilhar cada vez que é confrontado com uma discussão mais séria, que exigiria empenho e definição.

Em cada um dos personagens há enfim, um cacoete ou uma obsessão rompendo o fio da narrativa, que se introduz como um sinal de que é impossível, entre essas pessoas, manter o crescendo da ação dramática essencial para a tonalidade trágica. O que lhes acontece pertenceria por direito à categoria do drama: perderam suas raízes, estão lançados sem nenhuma rede de proteção em um mundo para o qual estão inteiramente despreparados. No entanto, o modo como se constitui o ser dessas criaturas, a alternância com que sofrem e contornam o sofrimento, sugere a adaptação de todo o organismo vivo às condições alteradas do meio ambiente. Nós os seguimos de dentro do quarto à pradaria do segundo ato, depois os vemos dançando uma quadrilha, afrancesada, enquanto ocorre o leilão da propriedade e, por fim, os reencontramos no território da infância e estão todos diferentes. Os mais velhos aquietados, sem as folhas verdes das ilusões, mas também sem a angústia da esperança, os jovens com o vigor dos que se preparam para instalar a nova ordem que substituirá a Rússia imperial.

Fundam-se sobre a sólida evidência do texto as interpretações que consideram essa obra de Chekhov como uma crônica da sua época e uma percepção quase profética da agonia do regime imperial. O novo proprietário é um filho de servos e, embora afeiçoado aos seus amigos aristocratas, exala ao fim um ressentimento de classe. O pomposo estudante Tromiov deixa a cena em direção a Moscou para assumir seu lugar na “vanguarda da humanidade que marcha em direção à verdade suprema”. Tampouco se enganam os que vêem nesse círculo de personagens à deriva entre as convulsões da História um emblema das mortes e renascimentos que, ao longo da existência, deixam marcas de crescimento na psique de cada indivíduo. O que talvez valha a pena considerar, nessa delicada construção em que o destino individual se entrelaça ao de toda uma sociedade, é que as velhas máscaras dramáticas do herói e do vilão, da tragédia e da comédia, não servem bem à representação desse movimento intencionalmente fluido. Quem se aproximar dela como se tratasse de um “drama psicológico” ou de uma competente “crônica histórica” terá eludido a articulação entre aparentes fragmentos de conservação.

Chekhov precaveu-se contra o luto sublime que poderia envelopar, como um manto de mau gosto, as suas cerejeiras evanescentes. Não contava, talvez, com a possibilidade de que a sua classificação da peça dentro do gênero cômico estimulasse saltitantes vaudevilles. Já aconteceu.

[1] LIMA, Mariangela Alves de. Anton Chekaov: autor profetiza o fim de uma época. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo – D3, 1 de novembro de 2000.

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