domingo, 25 de março de 2007

Registro 19: Sobre crianças


CRIANÇA LAMBISCANDO. Pela fresta do guarda-comida entreaberto sua mão avança como um amante pela noite. Uma vez familiarizada com a escuridão, tateia em busca de açúcar ou amêndoas, uvas passas ou compotas. E assim como o amante abraça a sua amada antes de beijá-la, da mesma forma o tato tem um encontro preliminar com as guloseimas antes que a boca as saboreie. Como o mel, punhados de passas e mesmo o arroz, como todos entregam-se lisonjeiramente à mão! Quão apaixonante esse encontro de dois que finalmente se subtraíram à colher. Agradecida e selvagem, como uma moça que se rouba da casa dos pais, assim a geléia de morangos se oferece aqui à degustação, sem o pãozinho e como que sob o livre céu de Deus, e mesmo a manteiga retribui com ternura a ousadia de um pretendente que tomou de assalto o seu quarto de menina. A mão, o jovem Don Juan, penetrou logo em todas as celas e aposentos, deixando atrás de si camadas que escorrem e quantidades que fluem: virgindade que se renova sem queixas.

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única: extratos. In: Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002, p. 105-106.

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