sábado, 1 de novembro de 2008

Registro 216: A cena aberta, impressões sobre "Hysteria"

Hysteria, criação coletiva do Grupo XIX de Teatro (São Paulo) e Aqueles Dois, adaptação do conto homônimo de Caio Fernando de Abreu, pela Cia. Luna Lunera (Belo Horizonte) foram os dois últimos espetáculos do FIAC que escolhi para ver. Depois do fiasco que foi Good Exist, vindo da distante e simpática Noruega, ver os espetáculos paulista e mineiro foi reconfortante. Aliviado, recebi a experiência estética proposta pelos dois grupos, absorvendo-as sem resitência. Mas não afirmo que os dois espetáculos sejam fáceis de digerir e que não apresentem problemas na estrutura. Entretanto, as duas experiências exigem da nossa inteligência e da nossa sensibildade. Tanto uma como a outra, embora tragam a marca da pesquisa, criam empatia, visto que os elementos constitutivos da encenação podem ser apreendidos pelo espectador medianamente acostumado com ato teatral. No primeiro momento, tanto uma como a outra aguçam a curiosidade, que no desenrolar da ação vai sendo satisfeita. E não precisamos de manuais ou exercícios mentais elaboradíssimos para captar o que a cena propõe e revela.

Hysteria é fruto de um intenso trabalho de busca e se debruça sobre histórias de mulheres confinadas em instituições de tratamento psiquiátrico – Hospício Dom Pedro II, Rio de Janeiro, por volta de 1850. Tidas como doentes por seus pais ou maridos, as mulheres foram retiradas do convívio familiar para se tornarem reclusas em um mundo de dor, mundo controlado sempre por homens, os doutores. Estes, imbuídos do cientificismo positivista que domina o século XIX e boa parte do XX, diagnosticam e aplicam o tratamento contra o que determinam ser uma patologia. Na leitura dos doutos, qualquer comportamento desviante das mulheres é tipificado como caso clínico de histeria. Esclareço que os dotoures não estão em cena, eles são apenas mecionados na pessoa de Dr. Mendes.

Essas mulheres que estiveram mudas por muitos anos agora falam. E o lugar da fala é em Hysteria; aí, elas narram sobre suas alegrias, desejos, sonhos, medos, amores, desesperos, filhos, casamento, sexo e sobre tudo que diz respeito ao humano, particularmente o feminino. Juntam-se a elas as mulheres do século XXI. Elas adentram a sala onde se representará Hysteria não mais como espectadoras, mas como atuantes.

Cabe aos homens o incômodo papel de assistentes/espectadores. Eles, sentados separados das mulheres, formam um grupo compacto, enquanto elas num grande círculo interagem com as cinco atrizes que se esmeram em dar vida aos personagens conduzindo a ação com firmeza. De forma segura, elas agem e conduzem a ação; algumas vezes de maneira autoritária outras de cativante e envolvente afeto. Assim, o grupo que foi ao teatro para assistir termina por fazer parte integrante da ação dramática. Ecos grotowskianos.

Em Salvador, o evento se deu no espaço do Instituto Feminino, hoje um museu, mas outrora tradicional instituição educacional, marcadamente católica e de rígidos princípios morais e educativos. A escolha não podia ser mais acertada. O espaço, com sua carga histórica e simbólica, abriga as vidas confinadas de Nini, Clara, M.J. , Hercília e Maria Tourinho as personagens vividas pelas atrizes Janaína Leite, Evelin Klein, Juliana Sanches, Sara Antunes e Maria Helleno, sob a direção de Luiz Fernando Marques.

A encenação despojada, usa como cenografia o espaço do Instituto e a luz que entra pelos janelões da sala. A luminosidade natural marca a passagem do tempo: o real e o imaginário. Entre um e outro sutis diferenças. Não há refletores, não há cenografia construída. O que há é apropriação do espaço. Os figurinos sem o rigor da reconstituição histórica remetem ao passado, ao desgastado. Tecidos amarelados pelo tempo, tons pálidos, rendas e filós dão a medida da permanência das vidas trancafiadas. São metáforas da delicadeza ultrajada.

À medida que o espetáculo acontecia fui me sentindo constrangido por estar ali como um intruso, um fora-do-lugar. Ao mesmo tempo deixei-me levar pela emoção. A cada instante submergir emocionalmente. Confesso: derramei lágrimas. Tal carga emotiva não suspendeu o juízo crítico. Ele agiu em dois sentidos: primeiramente pensei na condição feminina numa sociedade ainda machista e esse pensamento me levou para as lembranças particulares; repassei a vida das minhas avós, das minhas tias, da minha mãe... de minhas irmãs. Depois, não consegui deixar de pensar no ato teatral, sua concepção, sua construção, sua execução. Mas essa apreciação não se processava friamente distanciada. As imagens, as idéias e, sobretudo as sensações aconteciam sincronicamente ao meu estado psicofísico. Fui agarrado por esse acontecimento teatral tão próximo da vida, como queriam os artistas, que respaldados nos esperimentos das vanguardas históricas defenderam um teatro participativo, de comunhão e integração verdadeiras com a platéia, ali por volta dos anos 60 e 70, quando as idéias da contracultura animaram o teatro, o te-ato.

Pode-se discutir a imposição das atrizes sobre as mulheres sentadas no círculo. Mas penso que nenhuma delas foi obrigada a entrar no jogo. Mas se assim fosse, não era essa a regra institucional higienista vigente na casa de tratamento? Essa e outras questões perpassam o espetáculo. A interatividade proposta pelo grupo pode provocar rejeição por parte da platéia feminina, mas cada qual entre no jogo se quiser. Penso que as portas não estavam aferrolhadas, cabendo a cada uma o direito da recusa.

Ao sair do Instituto Feminino depois de ver as personagens envolvidas nas sombras do fim do dia e perdidas pelos corredores e salas entoando uma cantiga melancólica fiquei com a certeza de que o fenômeno teatral, essa arte sempre ameaçada de morte, está vivo. Ele nos proporciona experiências enriquecedoras, mesmo quando negamos a sua força, por discordamos esteticamente, ideologicamente ou por não encontramos elo entre o que se vê no espaço cênico e o nosso universo cognoscível. No livro-programa, extenso material sobre o espetáculo, Flavio Desgranges, professor de Teatro da ECA/USP, escreve o texto A Posição de Espectador em Hysteria, dando-nos pistas para analisarmos esse ato que se constrói entre emissor e receptor e conclui com algumas perguntas. Uma delas: “Como pensar uma arte teatral efetiva em nossos dias?” O Grupo XIX de Teatro responde com seu trabalho, outros agrupamentos responderão de muitas outras formas. Com isso, alargamos as nossas ferramentas para compreender o fenômeno teatral e separar alhos de bugalhos.

Oportunamente comento Aqueles Dois.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Registro 215: Impressões sobre ENSAIO. HAMLET




“Pra que serve a Arte? Para nos dar a breve mas fulgurante ilusão da camélia, abrindo no tempo uma brecha emocional que parece irredutível à lógica animal. Como nasce a Arte? Nasce da capacidade que tem o espírito de esculpir o campo sensorial. Que faz a Arte por nós? Ela dá forma e torna visíveis nossas emoções, e, ao fazê-lo, apõe o selo de eternidade presente em todas as obras que, por uma forma particular, sabem encarnar a universalidade dos afetos humanos”.

A citação é do livro A Elegância do Ouriço, de Muriel Barbery (2008). Leio e me delicio com os personagens e situações. A fala é de uma zeladora de um prédio, residência de ricos em Paris. Na opinião de uma adolescente – outro personagem fascinante – decidida a cometer suicídio, a zeladora é o ouriço. Mas o que a citação tem com o Ensaio. Hamlet, montagem da Cia. Dos Atores, grupo carioca que apresentou sua criação no palco do Teatro Castro Alves na noite de 27 de outubro? Para mim, tem tudo a ver. A encenação “dá forma e torna visíveis nossas emoções”. Ela nos dá a certeza do sentido de beleza, potencializando-o.

No palco do TCA, concentrou-se em arena a platéia distribuída em três arquibancadas desconfortáveis e a área da representação. Por vezes, o incômodo do assento interferia no meu estado apreciativo, intrometendo-se de maneira traiçoeira. Mas nem isso me afastou da “breve mas fulgurante ilusão da camélia, abrindo no tempo uma brecha emocional que parece irredutível à lógica animal”.

É redundante falar em ritual quando se trata de teatro. A representação teatral desde suas raízes até o presente é sempre um ritual. Mas na encenação de Ensaio. Hamlet, o ritual é reforçado e não banalizado; a cerimônia não é convenção, mas elemento textual significativo. Desde a entrada do público instaura-se o clima solene, mas não enfatuado; a platéia vai sendo contaminada por essa atmosfera que se adensa até que as luzes diminuem e as velas iluminam o espaço. Os atores que estão em cena desde a entrada dos espectadores dão continuidade ao ato litúrgico-profano; vestido sobriamente de preto, o elenco prepara a primeira cena introduzindo-nos na trama do texto.

Percebe-se desde o início um mundo fragmentado, universo em desmoronamento. Essa percepção intensifica-se com o avançar da ação. Um mundo em destroços, confirmação da podridão existente no reino da Dinamarca. O espetáculo é concebido como um ensaio. Nele, o texto shakespeareano é desconstruído sem que se perca a sua essência, sua dimensão, poesia, invento, sua monstruosa monumentalidade. Embora fatiada, a tragédia está inteira. Desmonta-se a máquina desse mundo e ele se sustenta, inquietando-nos. A cena desdobra-se em metáforas e os conceitos desaparecem para dar lugar a obra em si, sua leitura versátil

Toda a encenação é pautada na desconstrução-construção.

A cada cena nos embebedamos de beleza. Cada imagem cheia de significados amplia os conflitos, clarifica os subtextos. Os personagens-monumentos criados pelo dramaturgo revelam-se no corpo de Bel Garcia, César Augusto, Emílio de Mello, Felipe Rocha. Marcelo Olinto e Susana Ribeiro. Esse elenco, parceiro do encenador Henrique Diaz, proporciona uma leitura particular e inventiva da tragédia do príncipe dinamarquês. Por eles, penetramos na consciência desse ser lucidamente louco, o atormentado que se rebela contra o estabelecido e morre proferindo: O resto é silêncio.

Os achados cênicos são surpreendentes e mesmo aqueles difíceis de serem decodificados não criam empecilho para o ato fruidor. Absorvemos cada instante do espetáculo. A encenação cai implacavelmente sobre a platéia e ela se vê presa na armadilha das idéias transformadas em imagens precisas, como na sequência da loucura e morte de Ofélia.

Como fugir a tanta beleza? Como fugir dos riscos enfrentados pela Cia dos Atores? Rendemos-nos ao fascínio da invenção, da versatilidade, da coragem de enfrentar a experiência através de procedimentos cênicos inusitados, como o de fazer a cena do duelo final se transformar numa conversar entre os personagens. A imagem de Hamlet envelhecido e fumando é inesquecível; faz lembrar o que diz Harold Bloom (2000): “Quando o vimos pela primeira vez, Hamlet é um estudante universitário que se vê impedido de retomar seus estudos. Não aparenta ter mais do que vinte anos; porém no quinto ato, constatamos que ele tem, no mínimo, a idade de trinta anos (...). Foi a consciência que o envelheceu, a consciência catastrófica da mazela espiritual que assola o mundo (...).

A cena final rivaliza em beleza com a cena da morte de Ofélia. Nela, a atriz ergue um garrafão azul derramando sobre sua cabeça a água contida no recipiente. O barulho do líquido e a reação da atriz proporcionam a sensação do afogamento. Afogamo-nos com a infeliz Ofélia. Outro momento exemplar: na cena do encontro (devolução dos presentes), quando Polônio e o Rei Cláudio escutam o diálogo entre Hamlet e Ofélia. Através de um gravador que transmite em tempo real a voz dos atores, os dois bisbilhotam numa tentativa de controlar o incontrolável. Nesses tempos de grampos e escutas furtivas, a cena além de terrível e engraçada, outro elemento presente na encenação. Diaz não exclui o cômico presente nas tragédias de Shakespeare, mas traz o risível para momentos tradicionalmente tidos como “sérios”.

No livro A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca (1999), Vigotski fala do círculo do tempo, aquela hora “em que a manhã já chegou mas ainda é noite”, vendo nesse momento algo “misterioso e incompreensível”. Para Vigotski, é “a hora mais aflitiva e mística; é a hora em que o tempo desmorona, em que se rasga o seu inseguro manto; é a hora em que se desvela o abismo da noite sobre o qual ascende o mundo diurno; a hora da noite e do dia. Essa é a hora que a alma experimenta ao ler ou assistir à tragédia de Hamlet, o príncipe da Dinamarca. É nessa hora que está submersa a alma do espectador ou do leitor, pois é aí que a própria tragédia tem sua significação e faz-se semelhante a ela: ambas têm uma única alma."

Ensaio. Hamlet, com sua borbulhante criatividade, coloca-nos diante do teatro, teatro de qualidade.

Senti comichões de estar no palco novamente.

O resto é silêncio.

Não comentarei God Exists, The Mother Is Present, But They No Longer Care. A minha irritação pode ferir suscetibilidades. E elegância é fudamental, embora não tenha sido elegante ao sair no meio do espetáculo.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Registro 214: Impressões sobre espetáculos - FIAC Bahia


Desde 24 de outubro realiza-se em Salvador o Festival Internacional de Artes Cênicas – FIAC. A iniciativa é das melhores. E se pensarmos no Festival Latino Americano de Teatro da Bahia levado a efeito em setembro, não temos do que nos queixar. O público interessado e a classe teatral foi e está sendo brindada com inúmeros espetáculos. Uma diversidade cênica enriquecedora. A programação do Festival Latino Americano incluía espetáculos nacionais e de países do continente. Agora, com o FIAC, a pauta se amplia, com a vinda de encenações da França, Noruega, Congo, Portugal, Argentina, Brasil – Rio de Janeiro, Ceará, Minas Gerais, Paraná, Brasília, São Paulo, Santa Catarina, Bahia.

Haja tempo para organizar horários, conciliar atividades. Além disso, há que se ter disposição para correr de um lado para o outro. Mas pra quem gosta de teatro tudo isso se torna irrelevante, principalmente quando o vento que vem da cena nos toca e nos anima.

Não vou falar de todos os espetáculos. As escolhas foram determinadas por critérios de ordem prática, por interesse estético ou simples curiosidade. Deixei de ver Sizwe Banzi Está Morto, texto dos sul-africanos Athol Fugard, John Kani e Wiston Ntshona direção de Peter Brook. De Athol Fugard conhecia Laços de Sangue e Mestre Haroldo. O fato de não ter ido ver uma encenação de Peter Brook é inexplicável, mas não tive vontade.

Corri pra assistir O Cantil, uma adaptação do texto A Exceção e a Regra de Bertolt Brecht realizada pelo Teatro Máquina do Ceará. Direção, dramaturgia e produção de Fran Teixeira. Concisão, poesia e domínio da linguagem cênica marcam o espetáculo cearense. Quatro atores em cena. Dois como bonecos, o Patrão e o Empregado; dois como manipuladores desses homens-bonecos. Perfeição! Por certo exagero meu. A perfeição indica um ponto morto, já que dele não sai mais nada. Não é o que se vê na cena de O Cantil. O domínio técnico está a serviço de uma idéia teatral muito bem resolvida. Certamente, Brecht não cansaria de aplaudir, porque a sua história sobre explorador e explorado explicita-se em cena de tal forma que nem a falta da palavra é sentida, embora no fim do espetáculo eu tenha manifestado a vontade de ouvi-la. Mas depois de refletir sobre o espetáculo, cheguei à certeza de que a palavra transformada em ação bastava. Compreendia-se todo o entrecho da peça adaptada e a relação entre os personagens sem a intromissão do verbo.

No palco aberto e preto, destacam-se os dois personagens vestidos de branco e os dois manipuladores. Dos manipuladores vemos o rosto. Estes são ajudados por dois contra-regras que entram esporadicamente para compor o jogo de cena, retirando alguns objetos ou fazendo aparecer as duas barracas para cena de acampamento. Um carro conduzido pelo Empregado leva sacos também brancos e cestos de vime. A luz é precisa e recorta os personagens em sua viagem. As cenas noturnas são marcadas por um belo e simples céu estrelado. Estabelecida a moldura mergulha-se nessa viagem cujo final já presumimos.

Com esse espetáculo o Teatro Máquina coloca em cena os dados de sua pesquisa artística e revela que a magia do teatro não se dá por truques ilusionistas, visto que constrói a sua cena utilizando-se de conceitos do teatro brechtiano, relendo-os de maneira muito particular, sem a submissão que muitas vezes ocorre quando a leitura das teses do dramaturgo alemão é feita ao pé da letra e de maneira mecânica.

O segundo espetáculo apreciado veio de Portugal, sob a responsabilidade da Companhia do Chapatô. Com a Sala do Coro lotada e barulhenta até começar a função, prenúncio de que o espetáculo prometia descontração e muitas gargalhadas, assistimos O Grande Criador, criação coletiva dirigida por John Mowat. O espetáculo, uma brincadeira com passagens do Antigo e do Novo Testamento, humaniza os personagens da história sagrada e retira das situações uma comicidade direta e comunicativa, fato que agarra a platéia desde os primeiros minutos. Não há novidade na proposta. O gênero aproxima-se muito do brasileiro Teatro Besteirol, difundido a partir da cena carioca e paulistana desde a década de 80.

Durante a encenação, cujo ponto forte é a interpretação de Jorge Cruz, José Carlos Garcia e Rui Rebelo, lembrei-me de Folias Bíblicas espetáculo do grupo paulista Pod Minoga, dirigido por Naum Alves de Souza, em 1977. Na montagem com forte acento lúdico, encenava-se as passagens da Bíblia como números de um espetáculo realizado por um grêmio de bairro.

O grupo português concentra no jogo dos atores e na qualidade de suas interpretações o foco do espetáculo. Aí está o atrativo e sua força, demonstrada ao longo de 80 minutos e impagáveis cenas, como a do dilúvio ou a cena em que Cristo joga futebol com uma vassoura, entre outras.

Para mim, o que fica do espetáculo é isso: três atores utilizando-se de seus recursos corporais e vocais de forma extremada, interagindo com a platéia de maneira segura e hábil. Pergunto-me: não teria o teatro português outro trabalho para ser escolhido pelos organizadores do FIAC? Quero ver mais da cena portuguesa.

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domingo, 12 de outubro de 2008

Registro 213: De Mário Quintana


A vida são deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas.
Quando se vê, já é sexta feira.
Quando se vê, já terminou o ano.
Quando se vê, já se passaram 50 anos!
E agora é tarde demais para ser aprovado.
Se me fosse dada, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas.
Dessa forma eu digo: não deixe de fazer algo que gosta devido a falta de tempo, a única falta que terá, será desse tempo que infelizmente não voltará mais.
Mário Quintana

Registro 212: Para Nilda Spencer

Nilda Spencer

PAREM OS RELÓGIOS, MAS NÃO CESSEM OS APLAUSOS


Raimundo Matos de Leão


No Jardim da Saudade (10.10.2008), em meio à relva, árvores e canto de pássaros, os amigos artistas e não artistas levaram Nilda Spencer para outra morada. Quem sou eu para dizer que essa é a sua última morada? A nossa vã razão diz que sim, mas os mistérios são insondáveis. E do mistério se fez a arte que Nilda Spencer praticou durante cinqüenta e dois anos, a arte do intérprete. Como atriz, deixou nos palcos, nas telas do cinema e da televisão a marca do seu ofício, iniciado de maneira sistematizada quando da criação da Escola de Teatro, mas exercido antes em apresentações amadoras. Também foi pianista, atividade que sucumbiu aos encantos da arte teatral.

A primeira vez que vi a atriz em cena foi no inesquecível espetáculo Essa Noite se Improvisa, de Pirandello, sob a direção envolvente de Alberto D´Aversa, italiano de boa cepa, aportado no Brasil via Escola de Arte Dramática de São Paulo e Teatro Brasileiro de Comédia – TBC. Findava o ano de 1967 e a montagem encerrava o ano letivo da Escola de Teatro. Em cena, alunos e professores desvendavam para o público o meta-teatro pirandeliano. Nilda Spencer não era o destaque do elenco, primazia que cabia a Sônia dos Humildes, Dulce Schwabacher, João Gama, professores e ao aluno Harildo Déda, visto que seus personagens proporcionavam-lhes memoráveis interpretações. Ainda sim, Nilda Spencer obtinha seu quinhão em meio ao numeroso elenco. Com a dignidade de quem sabia que não há pequenos papéis no teatro, desempenhava uma das filhas da família retratada pelo dramaturgo italiano. Nilda no papel de Totina apresentava-se com empenho e dedicação.



Ela já fora protagonista feminina em Calígula de Albert Camus – direção de Martim Gonçalves – e em A Falecida, de Nelson Rodrigues, encenada por Carlos Murtinho. Destacara-se em Major Bárbara de Bernard Shaw, sob a direção de Luiz Carlos Maciel, entre outras realizações.


Esse sistema de rodízio de papéis importantes entre os alunos da Escola de Teatro foi uma prática instituída por Martim Gonçalves e fazia parte do seu projeto artístico-pedagógico. Mesmo que algumas injustiças tenham sido cometidas nas escolhas dos elencos das peças do repertório de A Barca, companhia criada no interior da Escola de Teatro da então Universidade da Bahia, os programas atestam tal prática. Foi no interior desse sistema que Nilda Spencer e seus colegas da primeira turma de formandos, em 1959, aprenderam e vivenciaram as diversas funções inerentes ao espetáculo. Os alunos, como ela, estiveram no palco e nas coxias revezando-se nas funções de intérprete, contra-regra, recepcionista, assistente de direção, entre outras. Foram protagonistas e coadjuvantes.


Ao ingressar na Escola de Teatro em 1968 estive próximo da professora e atriz, sempre elegante, calçando sempre sapatos de saltos altíssimos, uma compensação para sua baixa estatura. Tal artifício que a vaidade feminina não dispensava, era posto em segundo plano, visto que a esfuziante vitalidade de Nilda Spencer aumentava-lhe o porte. Anos mais tarde, ao reecontrá-la no camarim da Sala do Coro – TCA, onde fazia a protagonista de Ensina-me a Viver, ao abraçá-la vi o quanto era pequena e frágil, fruto da idade. A exuberância da mulher madura transmutara-se em graça e calma de quem sabe ter aproveitado a vida. Ao abraçá-la, não imaginávamos que se despedia do palco fazendo Maude, comemorando quarenta e cinco anos de carreira.


Estive uma única vez em cena com Nilda Spencer; foi na montagem de A Companhia das Índias, texto de Nelson Araújo, com direção de Orlando Sena. A atriz interpretava Rosélio Villarotas um ex-ministro de Eldorado, republiqueta sul-americana saída da imaginação do dramaturgo. Nilda Spencer compunha com muita habilidade o personagem; sem fazer dele uma caricatura do masculino, aproveitava-se dos recursos farsescos que a montagem de Sena possibilitava em sua moldura tropicalista, ganhando a cena de maneira hilariante. Ostentando grosso bigode, ela incorporava ao seu corpo o gestual masculinizado sabendo lidar com os estereótipos para criticar a macheza latino-americana e definir a personalidade de Vilarotas. Impagável!



Quando da escolha do elenco para a encenação de A Casa de Bernarda Alba, Possi Neto convidou Nilda Spencer para interpretar Maria Josefa. Ela não aceitou e o papel coube a Carmem Bittencourt, que retornou como atriz ao palco da Escola de Teatro depois tê-lo deixado com a turma que se desligou da instituição para criar a Sociedade Teatro dos Novos. Por esse motivo, não tive o prazer, como assistente de direção, de acompanhar o processo de criação da atriz. Presenciei o de Carmem Bittencourt, claridade em cena. E penso: com teria Nilda Spencer criado a louca-lúcida mãe de Bernada? Ele realizaria um belo feito, tenho certeza.


Mais tarde, estando em São Paulo, e excursionando pelo Brasil (1981) com a peça Escuta, Zé Ninguém, criação memorável de Marilena Ansaldi e Celso Nunes, fui abraçado por Nilda Spencer no camarim do Teatro Castro Alves. Não esqueço esse abraço. Era o abraço de quem se reconhecia em mim, pois sabia que contribuira para a minha formação como ator, que passara um tanto do seu saber e me vira engatinhar no palco. Senti o caloroso e generoso abraço e agradeci, afetuosamente, tudo aquilo que aprendera com ela.


Que a nossa memória dê conta dessa vida no palco e que não esqueçamos a forma com que Nilda Spencer desdobrou-se em tantas máscaras para revelar o seu ser de atriz, de mulher. Ela agora “dança no sétimo céu”, rindo maliciosamente da nossa transitoriedade.

domingo, 5 de outubro de 2008

Registro 211: Sobre anjos


Queridos anjos de Deus

Iya Agbeni Xangô (Cléo Martins)

Vocês, meus leitores e leitoras, acreditam em anjos?
Eu, sim. Creio com toda a força do pensamento, palavras e coração. Acredito nestes luminosos seres angelicais e também em alguns outros tantos vivíssimos pelas ruas, estradas e avenidas.
Podemos ser anjos, para nosso próximo, ou, a depender da escolha, diabinhos bem ruinzinhos... Se a opção for involuntária, que Deus tenha misericórdia. Caso consciente, ai, ai...
Sempre nos cabe o desejo de seguimento da Verdadeira Luz.
Os iorubás acreditam na escolha do ori (a cabeça espiritual).
Mais do que nos traçados do destino (predeterminação), a escolha é sempre de nós outros e outras viventes.

Quinta passada, dois de outubro, dia do aniversário de minha amiga Lourdes Massa, foi a festa dos Santos Anjos. Dois de Outubro. Dia dos famosíssimos guardiães desde o abandono do útero materno.


Os anjos se encontram presentes no judaísmo, islamismo e cristianismo.

No Catolicismo festejam-se os Anjos fiéis ao Senhor: mensageiros do Amor de Deus e combatentes do Mal.


São os nossos protetores desde a chegada ao mundão até a morte.
De muitos e dentre todos se destacam os magníficos Miguel, Rafael e Gabriel.

Miguel Arcanjo é o guerreiro combatente dos Caídos - os anjos rebeldes das profundezas do desamor onde Deus não habita. Conhecida a imagem do Arcanjo festejado no final de setembro a pisar no líder das legiões infernais.


São Miguel é referido tanto no Velho Testamento (livro de Daniel) quanto na Nova Aliança: Epístola de Judas e Apocalipse de São João: "Houve então uma batalha no céu: Miguel e seus Anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com seus Anjos, mas foi derrotado, e não se encontrou mais um lugar para eles no céu".(Ap, 12:7).

Rafael quer dizer "Deus cura" na língua hebraica, na qual médico é rophe.
É o Arcanjo do Senhor contra as dores e mazelas humanas.
Não há referência expressa a Rafael no Novo Testamento.
É citado no Livro de Tobias. (Livro de Tobit, na tradução ecumênica da TEB)
Somente no capítulo 12 do referido texto o Arcanjo igualmente festejado aos 29 de setembro (com Miguel e Gabriel) se dá a conhecer: "Eu sou Rafael, um dos sete santos anjos que assistem e têm acesso à majestade do Senhor".(Tb 12,15)
Apesar de não expresso nos escritos néo-testementários a tradição tende a identificá-lo com o anjo da ovelha. (João 5,2).

Gabriel (Força de Deus, em hebraico) é o Anjo da Anunciação.
É tido como o Arcanjo da Esperança; da Revelação, sendo comumente associado a uma trombeta: a Voz de Deus transmissora das Boas Novas.
Foi quem também anunciou ao profeta Daniel a vinda do Mashiah - Messias. O Ungido: Cristo, em grego.
"Apareceu Gabriel da parte de Deus e me falou: dentro de setenta semanas [de anos] (70 anos x 7, ou seja, 490 anos) aparecerá o Santo dos Santos." (Daniel 9:24-26).
A ele foi confiada a missão dentre as missões: anunciar o nascimento do Filho de Deus.
Por isso, é muito admirado desde a antigüidade.
Foi quem apareceu a Zacarias para lhe comunicar a paternidade em idade proveta.
Há mais de uma referência no Evangelho de Lucas: meu predileto dentre os sinóticos.
"Eu sou Gabriel, o que está na presença de Deus" (Lucas 1:19). "Foi enviado por Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia, a uma virgem chamada Maria, e chegando junto a ela, disse-lhe: Salve Maria, cheia de graça, o Senhor está contigo". (Ela ficou confusa, mas disse-lhe o anjo:) "Não tenhas medo, Maria, porque estais na graça do Senhor. Conceberás um filho a quem porás o nome de Jesus. Ele será filho do Altíssimo e seu Reino não terá fim".

Também existem anjos encarnados, minha gente.
Há doze anos fui de Salvador até São Paulo em meu carro, com alguns amigos. O automóvel quebrou no meio do nada. Distante duas horas de Itabuna.
Comecei a sentir pânico. Impossível a comunicação por telefone celular.
De repente, não mais que de repente, surgiram Renato e seu sobrinho Renatinho no precário caminhão cheio de frutas.
Vendo nosso desespero providenciaram rudimentaríssimo "cambão". Renatinho assumiu o escort.
O guincho partiu - sem exagero - sete vezes sob sol causticante de rachar asfalto.
Todas as sete vezes Renatinho e Renato consertaram o cambão com sorriso nos olhos límpidos e nos lábios a mesma frase dirigida a mim (aos prantos) – "Cléo; que mulher sem fé é esta; não percebe que a gente está aqui pra consertar quantas vezes for preciso?!?"

Não aceitaram dinheiro.
Já em Itabuna, bem mais pacificada, tirei os óculos de sol e dei-os a Renatinho.
Tio e sobrinho desapareceram com a sutileza da chegada.
Nunca mais soube deles...
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Publicado originalmente na edição de 3 de outubro de 2008, no jornal A Tarde - Salvador - Bahia.

Registro 210: Leituras...

Ainda tocado pela intensidade amorosa de Carta a D. - História de um amor, de André Gorz (Annablume /Cosacnaif), deixo-me levar pelo livro de Doris Lessing, O sonho mais doce (Companhia das Letras). Não consigo desgrudar de páginas tão intensamente amorosas, compreensivas, mas de uma ironia e criticidade feroz. No final da década de 70 tentei ler a autora, Prêmio Nobel 2007, mas não consegui entrar no seu universo. Rendo-me agora. Transcrevo o resumo da quarta capa: " Jovens de origens e filosofias diversas se refugiam num casarão confortável de Hampstead, bairro chique londrino, para usufrir da comida farta e do ambiente liberal que Frances Lennox, espécie de mãe substituta, propicia. Sentados em torno da grande mesa da cozinha [que mesa, que cozinha!], os adolescentes sorvem também cada gota da retórica do camarada Jonny, ex-marido de Frances, membro do Partido Comunista, pai ausente e eterno revolucionário [repleto de frases feitas e discursos edificantes]. Eles escutam os discurso de Jonny e devaneiam. Querem a utopia. A Revolução.
(...) Num contraponto doloroso, ela nos dá, de um lado, uma Londres que tem tudo, e de outro, uma África que tem fome de tudo."
Lessing é demolidora e sem mascarar enfia o dedo em nossas feridas abertas, aquelas provocadas pelos sonhos não realizados. Os sonhos que se perderam na fumaça da peroração e algaravia dos que se colocam na vanguarda em prol das transformações sociais, políticas e econômicas, mas ficam apenas no nível da idéias. E essas idéias um tanto repisadas não causam nada, esvaziam-se. Por outro lado, ela nos mostra possibilidades no interior de um mundo em ruínas.
Leitura cativante, ela nos prende avassaladoramente, seja pela linguagem, seja pelos persoangens que nos apresenta em suas trajetórias por aquelas décadas que o século XX se viu sacudido e esperou colher mudanças advindas da decantação. O painel que se afigura ao leitor é triste, mas há sempre a possibilidade do encontro, encontro que vai se dar no nível individual, mas que rejeita o individualismo. Doris Lessing traz para as páginas de O sonho mais doce seres humanos destroçados, alguns desprezíveis, mas a maioria aceitáveis com suas idiossincrasias próximas das nossas.

sábado, 4 de outubro de 2008

Registro 209: Onde eu nasci...

Baixa Grande - Bahia
A casa de meu avô. Quando me dei conta do mundo,
a árvora já não existia em à casa

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

sábado, 20 de setembro de 2008

Registro 207: Ida e volta

Laços brancos que nem pombas pousam sobre as árvores,
marcos sagrados ao longo do caminho.
Sigo de ônibus... pelas janelas vejo a vida que passa.
Penso naqueles que foram abatidos pela intolerância
de ontem, e sobretudo de agora.
Intolerância gerada pelo capital da fé.

Irmãozinho, o que interessa é a grana.

Meu coração, terra sagrada, abriga o indizível

As máscaras vazias poluem a cidade
são caretas assustadoras.
De suas bocarras saem sorrisos congelados.
Palavras matraqueadas
De-co-ra-das, des-co-ra-das.
Batatadas
Desvitalizadas

Saio da livraria cuidando amorosamente
de Cartas a D.
Basta o primeiro parágrafo...

Parado no ponto de ônibus, eu me lembro de
Ensaio sobre a cegueira, o filme.
Branco

sábado, 13 de setembro de 2008

Registro 206: Comentário sobre Linha de Passe

Recebi a mensagem que transcrevo.
Mantenho a autora no anonimato por não ter consultado-a sobre a publicação. Seu comentário sobre o filme Linha de Passe é direto, curto e sábio.
"...fui ver, ontem, o filme do Waltinho/Daniela ...mein Got, meu São Judas ! Capotonte !!! Arrepiante !!!! Fiquei sufocada, sem ar, quase toda a projeção. Que atores , que olhos dizentes, que direção sábia, que atriz , que roteiro sem chance pra nenhuma respirada dum pinguinho de fantasia, que embate com a realidade, que poucas palavras/palavrões mais do que suficientes, que clima asfixiante que nenhum carinha da chamada esquerda cria, que banho de falta de perspectivas, de é -isso-mesmo- não -tem-escapatória - não -tem -sonho - que -vire- de verdade- Uau, uau !!!!!!!"

domingo, 7 de setembro de 2008

Registro 205: Linha de Passe Adianta a Bola do Cinema Brasileiro


Linha de Passe, o filme de Walter Salles e Daniela Thomas, está em carta em boa hora, já que ilumina algumas sombras do nosso cinema, dos nossos dilemas diante dos caminhos que a vida brasileira segue. É sempre bom apreciar um filme bom e Linha de Passe é mais que isso, é especial. Os cineastas contam fragmentos da vida, pedaços reunidos em um painel denso, humano e nada idealizado. Ponto para eles, ponto para nós espectadores que absorvermos o discurso acionando as nossas maquinetas de compreensão: sensibilidade e racionalidade. São esses também os ingredientes utilizados pelos criadores do filme para adentrar na periferia de São Paulo e olhar aquela família singular composta por uma mãe grávida, cujos filhos não convivem com a figura paterna porque ela não mais existe entre eles, somente em fotografias, documentos de um passado apreciados pela mãe nos momentos de solidão. Compõe a família um garoto negro, filho caçula, preocupado em saber da existência paterna, pois é o único que não sabe quem é o pai. Os outros, embora saibam da existência do genitor, são filhos de pais diferentes.

Não farei um resumo detalhado do seu enredo simples, mas não simplista. Para situar o leitor, localizo o centro de onde partem os acontecimentos do filme.

Cada filho dessa família tem um desejo que se configura na vontade e nas ações para realizá-lo. O mais novo é Reginaldo (Kaique de Jesus Santos), obcecado, vive a procura do pai que ele sabe ser motorista de ônibus. Dario (Vinícius de Oliveira) sonha tornar-se jogador profissional. Sua batalha é tentar passar na seleção realizada por olheiros dos médios e grandes times, mas vai sofrer os limites da idade. Ao completar 18, já não interessa. É velho para o mundo do futebol. Denis (João Baldasserini) trabalha é moto-boy, tem um filho com uma namorada, com quem não vive. Dinho (José Geraldo Rodrigues), é arrimo de família, ajuda a mãe no sustento da casa, trabalhando como frentista. Dinho é evangélico, freqüenta a igreja e atua junto ao pastor. A mãe, Cleuza (Sandra Corveloni, Palma de Ouro de Melhor Atriz em Cannes, 2008), grávida pela quinta vez, sem que se saiba quem é o pai, trabalha como empregada doméstica. Torcedora do Corinthians, assume o papel materno e paterno sustentando o lar num equilíbrio delicado.

Walter Salles e Daniela Thomas, tomam essas situações e não carregam a mão no drama. A secura perpassa o filme desde sua exposição inicial até o último instante. Eles não deixam espaço para o sentimentalismo lacrimoso ou piegas. Ao mesmo tempo, tratam seus personagens carinhosamente. Sem idealizá-los, mostram como eles são, como eles reagem no interior das circunstâncias e como cometem pequenas falhas. Os diretores orquestram a história de vida de cada um dos personagens durante alguns meses. Nesse tempo, os acontecimentos narrados prefiguram sempre a iminência do dramático. Optam pela ficção, mas dão um tratamento quase documental ao material. Fazem isso com habilidade, ainda que deixem lacunas, principalmente na amarração final na trajetória de cada filho. A opção por deixar em aberto pode não satisfazer a maioria dos espectadores, principalmente aqueles que estão acostumados a filmes cujas histórias se desenrolam obedecendo à clássica estrutura de começo, meio e fim bem amarrados. Essas omissões não chegam a perturbar o conjunto da obra. Ao finalizar a narrativa, ou melhor, as pequenas narrativas que formam o todo de Linha de Passe, Walter Salles e Daniela Thomas deixam que o espectador complete os finais. Para isso oferecem pistas ao longo do filme.

Sobre as interpretações, é notável sua condução. Os diretores retiram dos seus intérpretes o melhor. E não apenas do quinteto central, muito bem afinado, já que os atores foram bem escolhidos e adequam-se aos personagens. Eles são a alma do filme. Em meio às ótimas interpretações ressalta a criação de Sandra Corveloni. Sem grandiloqüência, visto que o personagem não pede esse registro, a atriz constrói Cleuza com pequenos gestos, olhares reveladores do que se passa em seu íntimo e falas cujas entonações precisas revelam a compreensão do personagem e do lugar onde ele está situado.

O elenco secundário, formado por atores com experiência em teatro, torna os personagens críveis, ainda que as suas participações sejam pequenas. Mas destacam-se as atuações de Fernando Bezerra, o preparador de Dario, de Gabriela Rabelo, a senhora paralítica, de Denise Weinberg, a patroa de Cleuza, além de Luiz Serra e Norival Riso.

Um destaque do filme é a escolha de São Paulo como locus da ação. A cidade, sua imensidão, seu descontrole, servem de moldura para história tratada com sensibilidade já demonstrada pelos diretores. A direção de arte soube captar com precisão os ambientes, da mesma forma que a música que se faz ouvir sem estardalhaço, mas cria o clima sonoro para os personagens se exponham à luz dos refletores e para a câmera que capta as nuances de suas interpretações
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Linha de Passe, o filme de Walter Salles e Daniela Thomas, está em carta em boa hora, já que ilumina algumas sombras do nosso cinema, dos nossos dilemas diante dos caminhos que a vida brasileira segue. É sempre bom apreciar um filme bom e Linha de Passe é mais que isso, é especial. Os cineastas contam fragmentos da vida, pedaços reunidos em um painel denso, humano e nada idealizado. Ponto para eles, ponto para nós espectadores que absorvermos o discurso acionando as nossas maquinetas de compreensão: sensibilidade e racionalidade. São esses também os ingredientes utilizados pelos criadores do filme para adentrar na periferia de São Paulo e olhar aquela família singular composta por uma mãe grávida, cujos filhos não convivem com a figura paterna porque ela não mais existe entre eles, somente em fotografias, documentos de um passado apreciados pela mãe nos momentos de solidão. Compõe a família um garoto negro, filho caçula, preocupado em saber da existência paterna, pois é o único que não sabe quem é o pai. Os outros, embora saibam da existência do genitor, são filhos de pais diferentes.

Não farei um resumo detalhado do seu enredo simples, mas não simplista. Para situar o leitor, localizo o centro de onde parte os acontecimentos do filme.

Cada filho dessa família tem um desejo que se configura na vontade e nas ações para realizá-lo. O mais novo é Reginaldo (Kaique de Jesus Santos), obcecado, vive a procura do pai que ele sabe ser motorista de ônibus. Dario (Vinícius de Oliveira) sonha tornar-se jogador profissional. Sua batalha é tentar passar na seleção realizada por olheiros dos médios e grandes times, mas vai sofrer os limites da idade. Ao completar 18, já não interessa. É velho para o mundo do futebol. Denis (João Baldasserini) trabalha como é moto-boy, tem um filho com uma namorada, com quem não vive. Dinho (José Geraldo Rodrigues), é arrimo de família, ajuda a mãe no sustento da casa, trabalhando como frentista. Dinho é evangélico, freqüenta a igreja e atua junto ao pastor. A mãe, Cleuza (Sandra Corveloni, Palma de Ouro de Melhor Atriz em Cannes, 2008), grávida pela quinta vez, sem que se saiba quem é o pai, trabalha como empregada doméstica e está grávida.Torcedora do Corinthians, assume o papel materno e paterno sustentando o lar num equilíbrio delicado.

Walter Salles e Daniela Thomas, tomam essas situações e não carregam a mão no drama. A secura perpassa o filme desde sua exposição inicial até o último instante. Eles não deixam espaço para o sentimentalismo lacrimoso ou piegas. Ao mesmo tempo, tratam seus personagens carinhosamente. Sem idealizá-los, mostram como eles são, como eles reagem no interior das circunstâncias e como cometem pequenas falhas. Os diretores orquestram a história de vida de cada um dos personagens durante alguns meses. Nesse tempo, os acontecimentos narrados prefiguram sempre a iminência do dramático. Optando pela ficção, mas cruzado-a com o documental, fazem isso com habilidade, ainda que deixem lacunas, principalmente na amarração final na trajetória de cada filho. A opção por deixar em aberto pode não satisfazer a maioria dos espectadores, principalmente aqueles que estão acostumados a filmes cujas histórias se desenrolam obedecendo à clássica estrutura de começo, meio e fim. Essas omissões não chegam a perturbar o conjunto da obra. Ao finalizar a narrativa, ou melhor, as pequenas narrativas que formam o todo de Linha de Passe, Walter Salles e Daniela Thomas deixam que o espectador complete os finais. Para isso oferecem pistas ao longo do filme.

Sobre as interpretações, é notável sua condução. Os diretores retiram dos seus intérpretes o melhor. E não apenas do quinteto central, muito bem afinado, já que bem escolhidos. Eles são a alma do filme. Em meio às ótimas interpretações ressalta a criação de Sandra Corveloni. Sem grandiloqüência, visto que o personagem não pede esse registro, a atriz constrói Cleuza com pequenos gestos, olhares reveladores do que se passa em seu íntimo e falas cujas entonações precisas revelam a compreensão do personagem e do lugar onde ele está situado.
O elenco secundário, formado por atores com experiência em teatro, torna os personagens críveis, ainda que as suas participações sejam pequenas. Mas destacam-se as atuações de Fernando Bezerra, o preparador de Dario, de Gabriela Rabelo, a senhora paralítica, de Denise Weinberg, a patroa de Cleuza, além de Luiz Serra e Norival Riso.
Um destaque do filme é a escolha por São Paulo como locus da ação. A cidade, sua imensidão, seu descontrole, servem de moldura para história tratada com sensibilidade já demonstrada pelos diretores em outros filmes. A direção de arte soube captar com precisão os ambientes, da mesma forma que a música que se faz ouvir sem estardalhaço, mas cria o clima sonoro para que os personagens se exponham à luz dos refletores e para a câmera que capta as nuances de suas interpretações.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Registro 204: Laranjas

No livro W ou a memória da infância, de Georges Perec (*1936 +1982), uma bela e triste a narrativa, encontrei a seguinte nota de rodapé: "A palavra orange ("laranja", em francês) é formada de or ("ouro") e ange ("anjo"), o que explica a formulação da advinha (N.T.)". A explicação é dada a propósito da reflexão que o personagem faz a respeito da prova da existência das coisas, no caso a hicória (madeira canadense usada para fazer esqui), cuja raridade era uma das provas de sua existência. O personagem, um menino, fala de coisas ausentes "acerca das quais nos perguntávamos como podiam existir", tal como as laranjas. E na forma de uma adivinhação explicita: "primeiro é um metal precioso, depois um habitante dos céus, o conjunto uma fruta deliciosa...*)" (p. 128). A nota de rodapé explica a formulação e a palavra explicada expressa essa imagem envolvendo ouro e anjo. Como já gostava, e muito, de laranjas, não sei se passei a gostar mais um pouco da fruta. O certo é que elas tornaram-se mágicas para mim, principalmente quando doces e cheias de sumo refrescante. Retirei a imagem que ilustra o texto no ideiasideias.blogs.sapo.pt/1842.html; não encontrado o crédito, registro o lugar de onde veio o quadro com as laranjas tão auríferas e luminosas a despertar em mim tantos desejos. O poder da imagem.
A quem interessar, recomendo a leitura do livro de Perec que nos tinha dado A vida, modo de usar, publicado pela Companhia das Letras (1991). Encontrei W ou a memória da infância, esquecido no meio de uma porção de livros em oferta. Apostei no nome do autor, já conhecido, e mais ainda no título. Para quem acabou de ver os jogos Olímpicos em Pequim, mergulhar no universo opressor narrado por Perec terá uma medida do que é a imposição, o autoritarismo, o pensamento único em um país de nome W onde tudo e todos cultuam de forma impositiva o triunfalismo esportivo. E, coitado daqueles que não conseguem a vitória. Mesmo aqueles que se tornam vencedores, um dia serão retirados do pódio para sofre as terríveis humilhações impostas aos derrotados. Uma metáfora do nazismo, a narrativa nos remete ao questionamento de Adorno: "Como escrever poesia depois de Auschwitz?" Perec, filho de pais mortos pela repressão nazista, consegue romper com a interdição que a pergunta de Adorno coloca e resgata a si e aos pais. Arthur Nestrrovski escreve na orelha do livro e afirma que o autor responde à pergunta, "mesmo em face da impossibilidade de dar conta do que se passou; autores para quem escrever é uma das maneiras - talvez a única - de sobreviver à experiência e às memórias da guerra. Primo Levy e Louis Begley são nomes que vêm à mente, aos quais se junta o de Georges Perec

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Registro 203: Os meus livros, eles estão por aí...

O mais recente: Sob o signo das luzes Livros são como filhos. A imagem é gasta, mas significa muito. Eles crescem. Criam pernas, melhor, asas. Levantam vôo em busca de mãos, de olhos, de mentes que queiram acolhê-los.

Abertura para outra cena, o moderno teatro na Bahia. Derivado da pesquisa realizada no mestrado.
Livro para quem gosta de História do Teatro.

Um muro no meio do caminho, parafraseando Carlos Drummond, para brincar com a capacidade da criança inventar e dar outro sentido para uma objeto tão isolador que é o muro.

Bacanas..., foi bom escrevê-lo. Vira de ponta cabeça a noção de bacana e de famoso.


Quatro peças para crianças estão reunidas nessa colcha de retalhos... Quem conta um conto Gosto de todos. Um deles está esgotado, foi o segundo: Um muro no meio do caminho

ACRELÍRICO é irmão gêmeo de Um campo de morangos para sempre. Um dia quero transforma Acrelírico num romance

Brincadeiras, a primeira peça, encontra-se publicada juntamente com os textos premiados no concurso de dramaturgia de 1977, do Instituto Nacional de Teatro - INACEN.
Outros textos de teatro para criança estão reunidos sob o título de uma das peças, Quem conta um conto aumenta um ponto.
Que tem uma edição lindamente ilustrada.


De cara para o futuro. Se existe um alter ego, talvez ele esteja em suas páginas.
Primavera pop! foi o primeiro livro para o leitor jovem.


Um campo de morangos, fala de engajamento e desbunde e dediquei aos meus colegas do Colégio Estadual da Cahia - Central . Gosto muito dele, pena que a editora não soube trabalhar o livro! Ainda desejo muitos campos de morangos para todos. Batalho por uma nova edição.
Da costa do ouro, foi escrito para questionar a intolerância, o preconceito, o medo do Outro. Tem como pano de fundo a Revolta dos Malês, levante de escravos em Salvador. Braçoabraço, muito lido. A transformação pela arte. A vida de uma menino abandonado, morador de rua e seu encontro com o circo.
O primogênito. Com a peça Brincadeiras ganhei um prêmio. Enquanto trabalhava no espetáculo Souzalândia, eu escrevi a minha peça, mergulho na infância que brinca. As editoras que acolheram meus livros: INACEN, Salesiana, Saraiva, Melhoramentos, Fundação Cultural do Estado da Bahia, SM, Edufba, Paulinas, FTD

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Registro 202: Seminário Memória do Teatro Baiano


A OUTRA COMPANHIA DE TEATRO Seminário História do Teatro Baiano nas Décadas de 60, 70, 80 e 90.
Nos dias 02 e 03 de setembro, A Outra Companhia de Teatro realiza no Teatro Vila Velha o seminário História do Teatro Baiano nas Décadas de 60, 70, 80 e 90. Contemplado com o Prêmio FUNARTE de Teatro Myriam Muniz / 2007, o evento pretende discutir e recontar a história do teatro da Bahia dos anos 60 ao fim dos anos 90 a partir da memória de artistas que produziram e atuaram nesse período.
O seminário é dividido em quatro mesas distribuídas ao longo dos dois dias de atividades. Cada mesa representa uma década e será composta por um mediador e três artistas que produziram e atuaram em alguma produção teatral do período. As mesas são as seguintes:
Mesa Anos 60: 02/09, das 09:00 às 12:00.Mediada por Jussilene Santana.Participantes confirmado: Harildo Déda e Sonia Robatto.
Mesa Anos 70: 02/09, das 14:00 às 17:00. Mediada por Cleise Mendes. Participantes confirmados: Hebe Alves, Deolindo Checcucci e Raimundo Matos Leão.
Mesa Anos 80: 03/09, das 09:00 às 12:00. Mediada por Luiz Marfuz. Participante confirmado: Hebe Alves, Antônio Godi e Paulo Dourado.
Mesa Anos 90: das 14:00 às 17:00.Mediada por Fernando MarinhoParticipante confirmado: Chica Carelli, Meran Vargens e Carmem Paternostro.
Será fornecido certificado para os participantes com 75% de presença.As inscrições começam no dia 18 de agosto e pode ser feita através do e-mail:
aoutra@teatrovilavelha.comMaiores informações pelo telefone: (71) 3083-4617.

SERVIÇO:O QUE: História do Teatro Baiano nas décadas de 60, 70, 80 e 90 – A Outra Companhia de Teatro

QUANDO: 02 e 03 de setembro (terça e quarta)ONDE: Teatro Vila Velha

QUANTO: Gratuito

INSCRIÇÕES / INFORMAÇÕES: (71) 3083-4600

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Registro 201: Alzira Power

Fui assistir no Teatro ISBA, Alzira Power, texto de Antônio Bivar, preparando-se para completar 40 anos. A peça teve sua estréia em 6 de agosto de 1969, Brasil pós-AI5; no elenco Yolanda Cardoso e Antônio Fagundes, direção de Emílio di Biasi.

A montagem atual conta com Cristina Pereira e Sidney Sampaio no elenco. Direção Gustavo Paso.

Bivar, toma dois personagens para jogar sobre a platéia o escárnio de uma geração que se viu reprimida, e descrente dos ideários postulados pela cultura de esquerda configurado pelo nacional-popular, parte para outros caminhos, cujos códigos subjetivos indicam a recusa e apontam para a desagregação. Embora distante no tempo, o texto continua firme em suas proposições e recebe uma inspirada direção de Gustavo Paso. Diante do real baseado em valores degradados, as atitudes de Alzira, a princípio incoerentes, tornam-se coerentes. O seu voluntarismo desencadeia humor e fantasia na cena. Sua investida rebelde contra o acomodamento choca, mas a personagem termina por se impor e no jogo criado por Bivar, Ernesto, o corretor, sai perdendo. Um aviso; capta quem quer. Com esse material, Gustavo Paso orquestra o espetáculo de maneira poética, agilizando a escritura cênica de forma que o conflito se desenvolve num crescendo. A exposição das idéias e dos desejos dos personagens desenvolve-se dando lugar para as explosões temperamentais de Alzira e de desespero de Ernesto. Ao longo desse encontro de opostos há lugar para o lirismo, o melodramático, Tudo bem dosado pela sensível mão do diretor.

O humor escrachado, dosado de ironia, marca o encontro de Alzira, a solteirona que atrai para seu apartamento o jovem corretor Ernesto. Caído numa armadilha, o personagem enfrenta a loucura da mulher solitária que desmonta suas certezas e aponta-lhe o comodismo classe média. Comodismo de quem aceita a vida sem questionamentos, além daqueles que determinam a sobrevivência. Alzira, contraditória, revela-se uma personagem que investe sua delirante loucura contra os limites, as regras, o opressor. Durante uma hora de intenso confronto, em que as regras do bom senso e do politicamente correto são explodidas, as personagens se atraem e se repelem num jogo em que a mulher termina por dominar a situação. O domínio de Alzira sobre Ernesto se dá pela transparência com ela se revela para ele. Desbragadamente furiosa ela investe contra as certezas do jovem e quando ele tenta virar o jogo, ela dá a volta por cima.

Com esse material explosivo e dois personagens confinados em um apartamento, o diretor soube orquestrar uma espetáculo intenso, tragicômico, permeado de lirismo. Sem atualizar o texto, sua encenação aproxima o texto de Bivar da platéia atual, tornando-o atemporal, ainda que lance mão de efeitos - gravação de programas de rádio das décadas de quarenta e cinqüenta e trilha sonora - que parecem datados, mas que de forma bem manipulada criam empatia e enchem a cena de uma delicadeza que só faz aumentar o absurdo da situação criada por Bivar.

Em um cenário, cujo vermelho impera como um signo da violência que a situação figura, Gustavo Poso arma o espetáculo surpreendendo a platéia com efeitos visuais, em que figurino, luz e objetos cênicos servem de moldura para que Cristina Pereira dê largas ao seu talento de atriz. A intensidade com que ela se entrega na construção de Alzira, a Alzira Porra Louca, um dos títulos da peça, mas censurado pela repressão policialesca da época, é imediatamente percebida pelo espectador desde a longa cena inicial quando a atriz, de maneira metódica, se prepara para enfrentar a chegada do visitante. Papel defendido com garra por Iolanda Cardoso, a criadora primeira de Alzira, encontra em Cristina Pereira uma atriz pronta para representá-lo. Alternando comicidade e contensão, suavidade e explosão, a atriz estabelece uma poderosa comunicação com a platéia. Generosa, a atriz cria oportunidades para o seu companheiro de cena, o jovem ator Sidney Sampaio. Os dois criam a necessária empatia para que o texto de Bivar, com seu final surpreendente e provocativo, chegue até a platéia sem muitas ranhuras.

Amoral, como em toda sua dramaturgia, o autor esbanja talento e maneja habilmente a situação, solucionando-a de maneira fatal, num golpe de teatro, única saída para almas dilaceradas presas nas malhas do cotidiano opressor, dos sonhos postergados e da rotina mortal. Tudo isso construído com altas doses de humor e crueldade ferina, mas sempre deslizando para a zombaria demolidora. A direção de Gustavo Paso explora o texto no que ele tem de originalidade, mas não sem mantém refém a ele. Paso compreende a peça de Bivar e imprime a sua leitura de maneira que o texto passe incólume a mais uma prova do palco depois de anos de sua estréia. Poder-se-ia dizer que por ser uma dramaturgia fruto de um momento especial, já bafejada pelos ares da contracultura, a peça estaria presa ao circunstancial. Não é o que se vê no palco. Ainda há um sopro de rebeldia, de novidade, de atualidade em Alzira Power ou O Cão Siamês, título da peça, indicativo do absurdo da situação em cena, mas que não resvala par ao incompreensível. Ainda que concebido sob a mais ferrenha censura, o discurso é direto e suas ambigüidades tornam saborosa essa dramaturgia - conhecida como "Nova Dramaturgia" - merecedora de novas encenações.

A “Nova Dramaturgia”, é o termo utilizado por Sábato Magaldi para enfeixar os trabalhos de Antônio Bivar, José Vicente, Leilah Assumpção, Consuelo de Castro, Isabel Câmara, acrescento o de Timochenco Webb, jovens autores que estrearam no final da década de 60 e que obtiveram com seus primeiros textos a receptividade da crítica e do público. No artigo datado de agosto de 1969, o crítico faz um balanço da temporada teatral e aponta o surgimento desses autores, todos eles escrevendo para o palco e expondo sob uma nova chave as questões do seu tempo. Afastados do realismo social que prefigurou a fase anterior da dramaturgia, aquela feita nos moldes proposto pelo Seminário de Dramaturgia promovido pelo Teatro do Arena, esses autores colocam nos textos a experiência vivida, adotam o confissão e escancaram a vida da metrópole onde vivem. Nota-se na diversidade de seus trabalhos o influxo de Plínio Marcos, autor que se torna vísivel ao mesmo tempo que os citados, mas que corre em raia própria, mas sem deixar de servir de esteio para os novos dramaturgos.


quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Registro 200: Sob o Signo das Luzes


O lançamento aconteceu na Bienal do Livro - São Paulo. Embora eu não estivesse presente, o livro está na praça. Em Sob o Signo das Luzes, décimo trabalho publicado, entre prosa e dramaturgia, conto a história de Eleutério um garoto que vive em Salvador quando da Conjuração de 1798.
Em Salvador, final do século XVIII, o adolescente Eleutério trabalha como como aprendiz de alfaiate. Inquieto, esperto, ouve com atenção as conversas, embora não entenda direito o que dizem aqueles homens que falam palavras em francês. Logo ele vai descobrir que toda aquela agitação na cidade são os lances finais de um movimento revolucionário. Liderados por alfaiates, os rebeldes lutam por liberdade, inspirados nos princípios da Revolução Francesa. Eleutério é testemunha de uma momento histórico, a chamada "Revolta dos Alfaiates. Enquanto isso, precisa decidir seu futuro. Essa é a sinopse do livro, meu primeiro trabalho para a FTD.
Para escrever o livro, pesquisei e inventei. Ele é fruto do cruzamento da História com a Literatura, um procedimento que adotei em Da Costa do Ouro (Saraiva, 2004), livro que fala da Revolta dos Malês. Tanto em um como no outro procurei ver o passado à luz do presente. Sem falsear os acontecimentos, dei largo curso a imaginação ao criar os personagens fictícios.
O livro é destinado ao leitor jovem, mas isso não impede que outros leitores se interessem pela trama, cujo fato histórico desenrola-se envolvendo Eleutério que em seu processo de descoberta do mundo e do Outro vai em busca de sua autonomia.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Registro 199: Contribuição de Dimitri Ganzelevitch


Tudo por causa de um LP

Cheguei para morar na Bahia em 1975.
Há, portanto, 33 anos que a mesma pergunta, com exagerada freqüência, vem bater á minha porta. “Porque veio morar aqui?” Uns com tom de profunda incredulidade. “Quem me dera, a mim, estar no hemisfério norte!”, outros com uma pontinha de suspeita. “Seria mais um Ronald Biggs?”.
Ninguém muda assim, do dia para o outro, de cultura, de clima, de idioma, de comportamento, sem motivo.
Hoje chegou a vez de desvendar o segredo.
Foi pela força de um disco. Um LP como se falava na época

Minha mãe, separada de meu pai, viveu durante 25 anos com um português, em Lisboa. Antonio Lopes Ribeiro era cineasta, crítico de cinema, poeta, escritor. Irrequieto, magro, nervoso, fazia sempre grandes discursos com muitos gestos, fumando um cigarro atrás do outro. Teve imensa responsabilidade na minha formação intelectual de adolescente.
Na sala reinava um magnífico aparelho de som, um Grundig. Rádio e toca-discos. Nele podíamos ouvir, não só os modernos 33 rotações, de vinil, mas também os velhos 78, em frágil bakelite. Havia de tudo, desde Chopin, Brahms, Chaliapine e Caruso até Amália, Piaf, Carmen Miranda e Dick Farney. Que bela voz tinha este Dick! Parecia veludo...
Antônio viajava muito. Uma vez veio do Brasil, onde encontrara cem personalidades do mundo do cinema e da música, com as malas entupidas de discos. Entre vários discos havia um, com uma caricatura mostrando um forte mulato de camisa listrada e chapéu de palha. Dorival Caymmi. Uma seta indicava “Maracangalha”.
As canções de Caymmi foram, para mim, uma viagem num mundo mágico, quente, doce e colorido. Alegre e poético também.

A vida dá suas voltas.
Meu tio Boris trabalhava para a Unesco no Rio de Janeiro. Convidou-me para conhecer o carnaval. Na minha bagagem, uma carta de apresentação para Orígenes Lessa, autor do “O Feijão e o Sonho” e grande especialista em literatura de cordel. Sua companheira, Maria-Eduarda, era filha do conde Marim, algarvio com muito honra. Me desafiaram. “Vamos ao casamento do filho de Jorge Amado, em Salvador. Porque não vem com a gente?” Porque não? Fui.
Foi grande a emoção de encontrar, na casa do famoso escritor, o autor de “Eu vou para Maracangalha” e de tantas pérolas da música brasileira. Pouco mais fiz do que apertar timidamente sua mão e olhar para ele a cada minuto. Parecia, com seu cabelo grisalho, ter um brilho especial. Mas, naquela manhã, a verdadeira estrela da casa era Débora, a cobra de Paloma Amado.
Durante uns cinco dias, passeamos pela cidade, muitas vezes ciceroneados por um jovem poeta, muito mulherengo, Ildásio Tavares. Lembro de uma seresta nas areias do Abaeté, com velas plantadas em pequenas covas ao abrigo da brisa. A beira da lagoa parecia um céu estrelado ao avesso. Tão inocentes, em 1971, aquelas areias...

A vida continua dando suas voltas.
Vi morar na Bahia em 1975 e descobri então que o colorido cartão postal também tinha um avesso, branco e preto, bastante mais fastidioso. Teria que preencher os espaços vazios com meus próprios pincéis para resistir a uma realidade que seria, ao princípio, dura e sem piedade. Aprendi a viver.
Em 1983 encontrei novamente o magnífico mulato, já de cabelo branco, novamente na casa da rua Alagoinhas. Novamente apertei, tímido, sua mão. Afinal o que é que um pobre imigrante simplório nas suas certezas de europeu banhado em Molière e Debussy, mas incapaz – até hoje – de sambar ou contar uma piada, teria ousado falar com um Dorival Caymmi?
Os anos passaram, fiz minha esta terra que tanto critico aqui, confesso, e que tanto defendo quando a atacam lá fora. Segui meu caminho por verdes vales e poeirentas caatingas, lamaçais e águas mornas. Sempre guardei na memória a honra de ter apertado, por duas vezes, a mão de um homem que podia levar um ano para fazer uma só canção, mas ofereceu ao mundo pérolas de mares fundos, onde belas sereias valsam com pescadores enamorados.
Perdi, nas mudanças, o disco até um amigo rastafari, amante de boa música e comerciante esclarecido do Pelourinho, sabendo de minha procura, me oferecer um velho exemplar, idêntico ao de minha lembrança de adolescente.

Hoje abro a televisão para enfrentar a triste noticia.
Dorival Caymmi acaba de morrer aos 94 anos, rodeado por uma maravilhosa família que consegue viver de música sem nunca ter caído nos fáceis sucessos descartáveis que agora poluem nossa sociedade consumista e desmemoriada.
Hei de ir, ainda este ano, mesmo sem Amália, a Maracangalha.
Se Deus quiser.

Salvador, 16 de agosto de 2008
Dimitri Ganzelevitch

segunda-feira, 18 de agosto de 2008