domingo, 7 de setembro de 2008

Linha de Passe, o filme de Walter Salles e Daniela Thomas, está em carta em boa hora, já que ilumina algumas sombras do nosso cinema, dos nossos dilemas diante dos caminhos que a vida brasileira segue. É sempre bom apreciar um filme bom e Linha de Passe é mais que isso, é especial. Os cineastas contam fragmentos da vida, pedaços reunidos em um painel denso, humano e nada idealizado. Ponto para eles, ponto para nós espectadores que absorvermos o discurso acionando as nossas maquinetas de compreensão: sensibilidade e racionalidade. São esses também os ingredientes utilizados pelos criadores do filme para adentrar na periferia de São Paulo e olhar aquela família singular composta por uma mãe grávida, cujos filhos não convivem com a figura paterna porque ela não mais existe entre eles, somente em fotografias, documentos de um passado apreciados pela mãe nos momentos de solidão. Compõe a família um garoto negro, filho caçula, preocupado em saber da existência paterna, pois é o único que não sabe quem é o pai. Os outros, embora saibam da existência do genitor, são filhos de pais diferentes.

Não farei um resumo detalhado do seu enredo simples, mas não simplista. Para situar o leitor, localizo o centro de onde parte os acontecimentos do filme.

Cada filho dessa família tem um desejo que se configura na vontade e nas ações para realizá-lo. O mais novo é Reginaldo (Kaique de Jesus Santos), obcecado, vive a procura do pai que ele sabe ser motorista de ônibus. Dario (Vinícius de Oliveira) sonha tornar-se jogador profissional. Sua batalha é tentar passar na seleção realizada por olheiros dos médios e grandes times, mas vai sofrer os limites da idade. Ao completar 18, já não interessa. É velho para o mundo do futebol. Denis (João Baldasserini) trabalha como é moto-boy, tem um filho com uma namorada, com quem não vive. Dinho (José Geraldo Rodrigues), é arrimo de família, ajuda a mãe no sustento da casa, trabalhando como frentista. Dinho é evangélico, freqüenta a igreja e atua junto ao pastor. A mãe, Cleuza (Sandra Corveloni, Palma de Ouro de Melhor Atriz em Cannes, 2008), grávida pela quinta vez, sem que se saiba quem é o pai, trabalha como empregada doméstica e está grávida.Torcedora do Corinthians, assume o papel materno e paterno sustentando o lar num equilíbrio delicado.

Walter Salles e Daniela Thomas, tomam essas situações e não carregam a mão no drama. A secura perpassa o filme desde sua exposição inicial até o último instante. Eles não deixam espaço para o sentimentalismo lacrimoso ou piegas. Ao mesmo tempo, tratam seus personagens carinhosamente. Sem idealizá-los, mostram como eles são, como eles reagem no interior das circunstâncias e como cometem pequenas falhas. Os diretores orquestram a história de vida de cada um dos personagens durante alguns meses. Nesse tempo, os acontecimentos narrados prefiguram sempre a iminência do dramático. Optando pela ficção, mas cruzado-a com o documental, fazem isso com habilidade, ainda que deixem lacunas, principalmente na amarração final na trajetória de cada filho. A opção por deixar em aberto pode não satisfazer a maioria dos espectadores, principalmente aqueles que estão acostumados a filmes cujas histórias se desenrolam obedecendo à clássica estrutura de começo, meio e fim. Essas omissões não chegam a perturbar o conjunto da obra. Ao finalizar a narrativa, ou melhor, as pequenas narrativas que formam o todo de Linha de Passe, Walter Salles e Daniela Thomas deixam que o espectador complete os finais. Para isso oferecem pistas ao longo do filme.

Sobre as interpretações, é notável sua condução. Os diretores retiram dos seus intérpretes o melhor. E não apenas do quinteto central, muito bem afinado, já que bem escolhidos. Eles são a alma do filme. Em meio às ótimas interpretações ressalta a criação de Sandra Corveloni. Sem grandiloqüência, visto que o personagem não pede esse registro, a atriz constrói Cleuza com pequenos gestos, olhares reveladores do que se passa em seu íntimo e falas cujas entonações precisas revelam a compreensão do personagem e do lugar onde ele está situado.
O elenco secundário, formado por atores com experiência em teatro, torna os personagens críveis, ainda que as suas participações sejam pequenas. Mas destacam-se as atuações de Fernando Bezerra, o preparador de Dario, de Gabriela Rabelo, a senhora paralítica, de Denise Weinberg, a patroa de Cleuza, além de Luiz Serra e Norival Riso.
Um destaque do filme é a escolha por São Paulo como locus da ação. A cidade, sua imensidão, seu descontrole, servem de moldura para história tratada com sensibilidade já demonstrada pelos diretores em outros filmes. A direção de arte soube captar com precisão os ambientes, da mesma forma que a música que se faz ouvir sem estardalhaço, mas cria o clima sonoro para que os personagens se exponham à luz dos refletores e para a câmera que capta as nuances de suas interpretações.

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