sábado, 24 de janeiro de 2009

Registro 233: Alinhavos sobre o cotidiano cultural

Tomou posse o novo diretor da Fundação Gregório de Mattos, prometendo “descentralização e deselitização da cultura”. O chavão me dá arrepios. Ao que parece, vamos ter mais uma onda populista na área cultural. Embora o governo municipal esteja em rota de colisão com o estadual, parece que o discurso se afina quando a questão é a Cultura. Identidade preocupante.

Mas vamos lá: uma das ideias do diretor é construir o Teatro Municipal na Praça Castro Alves. Em uma cidade com poucos teatros, a iniciativa é oportuna. Espera-se que o futuro Teatro Municipal não sirva apenas para ser palco de eventos que veem de fora, mas dê espaço para as produções teatrais, coreográficas e musicais geradas aqui na soterópolis. Ah, e que saia do papel.

Um teatro nas imediações da Ladeira Montanha pode contribuir para a revitalização do logradouro, mas isso por si só não garante a mudança da relação que a população tem com o local. Para que a área passe a ser aceita como um local vivo e atraente é necessário muito mais que boas intenções. Cabe ao poder público planejar e executar ações que facilitem o acesso dos interessados ao bens culturais; para isso é preciso de transporte público fácil, rápido, constante e cobrindo horários mais avançados, já que as atividades artísticas muitas vezes terminam mais tarde que o horário de funcionamento do transporte coletivo. Depois disso, pensar e efetivamente em tornar o lugar seguro, o que atualmente não é. Em determinados horários, caso não se tenha transporte particular, ir ao Espaço Unibanco Glauber Rocha é uma temeridade. Depois das 18:00 h, o centro da cidade fica despovoado. Uma cidade fantasma com seus velhos e belos edifícios, ruas sombrias, nenhum restaurante, bar ou lanchonete decente. Além disso, o fedor de urina e fezes impregnado nas calçadas causa mal estar. Uma tristeza!

Mas antes do Teatro Municipal, por que não inaugurar efetivamente o Centro Cultural da Barroquinha? A obra encontra-se em processo de deterioração, depois do eleitoreiro e falso ato inaugural, quando da campanha para reeleição do péssimo prefeito que aí está. Como não entendo dos jogos políticos partidários,que favoreceram a reeleição, deixo de emitir opinião. Mas sinto que algo não cheira bem nessa esfera de alianças e jogadas. É certo que alguns eleitores foram conduzidos às urnas animados com a maquiagem das calçadas da Barra, já em processo de desgaste, visto que a execução foi apressada e de segunda. E não falo isso por conta da montagem das arquibancadas e postes de iluminação para o carnaval, a tal infraestrutura. Muito antes, constatavam-se fissuras enormes no cimento e nos recortes decorativos da sem-graça calçada. Pode-se imaginar como o local vai ficar depois do carnaval. Mas não vamos ser alarmistas.

O Centro Cultural da Barroquinha precisa de um projeto desenvolvido por uma equipe de gestores culturais que entendam do riscado e não fiquem por aí arrotando um discurso que não se efetiva de fato. Acreditamos que esse projeto exista e corresponda não somente ao espaço, mas se abra para as manifestações que dialoguem com tradição e a contemporaneidade nas artes, sem tanta ideologização, como vem acontecendo nos diversos setores da vida artístico-cultural. Esse Centro Cultural deve se abrir para a diversidade e não privilegiar apenas um segmento.

Entre os projetos do recém empossado diretor está a construção da Pinacoteca Municipal. Outra ideia louvável, mas equivocada por conta do lugar escolhido para sua instalação, o Teatro Gregório de Mattos. O belo espaço projetado por Lina Bo Bardi foi deixado às favas e nos últimos anos não cumpriu com sua função. No seu interior instalou-se um boteco de segunda categoria, as exposições não tinham sequer uma curadoria e o espaço estava sendo tratado de qualquer jeito, afastando de lá os espetáculos e os espectadores. Hoje fechado, pretende-se então transformá-lo numa Pinacoteca; um equívoco. Pelo seu tamanho, o edifício não comporta uma pinacoteca, que requer não só espaços para exposição do seu acervo, como locais para exposições temporárias, além de reserva técnica, centro de restauração, setor educativo, biblioteca e salas para abrigar os técnicos, a diretoria e tudo mais que esse tipo de instituição precisa para funcionar de fato e de direito. Ou não existe acervo suficiente para espaço mais adequado ou o que vemos é mais um jogo de cena. Palavras ao vento.

Por que não reformar o Teatro Gregório de Mattos, equipá-lo e colocar à sua frente alguém que entenda de administração de espaços culturais, como um teatro? O edifício está ali a espera de revitalização, para ser oferecido como mais um espaço para abrigar os espetáculos que precisam de pequenos teatros. O modulável projeto de Lina Bo Bardi não pode ser o que não é. Com tantos edifícios desocupados e com perfil mais apropriado para uma Pinacoteca, escolhe-se o Teatro Gregório de Mattos para o seu destino. Tem alguma coisa errada nisso tudo ou não tem? Deixo que o leitor responda.

Outra coisa questionável é somente pensar em Oscar Niemeyer como o arquiteto para o projeto do Teatro Municipal. Nada contra o nosso grande e criativo e superlativo Niemeyer. Ele já nos deu inúmeras provas de sua sensibilidade e competência, ainda que tenha cometido seus pecadilhos. Mas como o assunto aqui é outro, não cabe levantar alguns equívocos do querido arquiteto, reconhecido internacionalmente por sua competência. Ele certamente fará um belo projeto. Ainda assim, deveria se dar oportunidade aos novos e competentes arquitetos, para que eles possam mostrar suas propostas. Arquitetos que saibam fazer teatro, que conheçam o que é um palco e suas áreas necessárias para a montagem de espetáculos e circulação de artistas e técnicos. A maioria dos teatros construídos no país apresentam falhas devido o desconhecimento por parte dos responsáveis do que seja um palco.

Ficamos livres do Museu Guggenheim, lembra-se, caro leitor? Agora teremos uma obra faraônica na encosta.

Já que estou comentando sobre planos, projetos e que tais do governo municipal, aproveito para indagar aos administradores estaduais: por que o Passeio Público encontra-se tão abandonado? E a reforma do Palácio da Aclamação, ficou pela metade?

Outro dia fui ao Teatro Vila Velha para ensaiar. Como cheguei pouco antes do horário marcado, aproveitei para andar pelo Passeio Público, um dos belos espaços que esta cidade tem, mas relegado ao abandono: calçadas, canteiros, estátuas e fonte, destruídas; árvores apodrecendo sem que se tome uma providência, fios cruzando de um poste a outro de qualquer jeito, gramado seco, descuidado. Uma pena. Se olharmos as pinturas e as fotos antigas que retrataram o lugar desde sua fundação, veremos que o Passeio Público foi relegado ao descaso por parte da administração estadual, fato que não se dá na gestão atual. Ali também se encontra uma construção, cuja parede da frente traz escrito “Teatro Popular”, imagino ser a sede de algum grupo ou mesmo um Teatro. Mas olhando pelas vidraças quebradas vemos uma platéia e um pequeno palco, ambos empoeirados, prova de que o lugar não oferece condições mínimas para que se façam atividades. Ao deparar-me com o local, perguntei-me sobre o motivo do abandono. A construção poderia cumprir seu papel, desde que fosse adaptada para as atividades teatrais. Um espaço desperdiçado a espera de alguém com vontade de transformá-lo em um teatro pequeno e bem equipado.

Olhei as ruínas e segui em frente, mas não indiferente ao que via. Aquele espaço no fundo do Palácio da Aclamação está pleno de possibilidades. Andei guiado pela vontade de vê-lo transformado. Fiz planos. Imaginei. A mente tem espaço para esse exercício de criação. Se não me engano, o poeta Manuel de Barros disse: o que eu imagino é o que existe. Tomo as palavras do poeta para dizer que aquilo que imaginei para o Passeio Público e para o tal Teatro Popular existe como uma imagem fortemente viva porque nela acredito.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Registro 232: Outro olhar sobre "A TROCA"

A PRESENÇA DO PASSADO
JORGE COLI
A história é clara, mas o pensamento tão complexo. Nada de conceito teórico, mas uma reflexão intrincada brotando, intuitiva, dentro do filme. A expressão perfeitamente controlada engendra uma força que não se refreia. "A Troca" retoma obsessões que se tecem a partir de tudo que Clint Eastwood filmou. Alguns críticos tentaram, sem sucesso, enquadrá-lo em um único gênero: film noir, melodrama, policial, filme social, filme político. Ele contém tudo isso para formar outra coisa: uma convicção ética que exclui o maniqueísmo.Nos anos de 1970, Eastwood fazia vingadores se levantarem contra a ordem social, comandada por poderosos sempre corrompidos até o cerne. O vingador vingava, não para restabelecer uma ordem justa, mas para destruí-la naquilo que estava ao seu alcance. Encontrava refúgio em comunidades de "outsiders", em meio à gente desprezada, mas leal, sincera, verdadeira: basta ver "O Estranho Sem Nome" ou "Josey Wales - O Fora da Lei"."A Troca" expõe, ela também, a luta individual capaz de enfrentar o complô dos interesses sujos e das mentiras infames. O sonho da comunidade permanece, embora mais tênue e transformado, não mais na antiga utopia comunitária, mas em certas afinidades, algumas éticas, outras mais difíceis de explicar.A palavra afinidade é uma chave no cinema de Clint Eastwood: significa laços invisíveis, muito poderosos, e para além das convenções. Quem viu não se esquece da cena unindo dois mortos que se amaram e se odiaram, em "Meia-noite no Jardim do Bem e do Mal". Há esse estranho filme, "Dívida de Sangue", em que dois personagens se ligam por razões nada racionais. O assassino abjeto de "A Troca" descobre uma surpreendente sintonia com a heroína, Angelina Jolie. Carrascos Os desmandos policiais expostos em "A Troca" são terríveis. O momento no qual, verdadeiro filme dentro do filme, surgem expostas as cumplicidades entre polícia e psiquiatria para abaterem-se com crueldade abjeta sobre as mulheres, é digno do mais alto Foucault. Dirty Harry, personagem do tira durão, machista, matador, que Eastwood interpretou em vários filmes, o primeiro deles dirigido por Don Siegel, ficou bem longe."A Troca" mostra suspeitos sendo baleados como num fuzilamento por razões torvas. A cena, que lembra os abates nos campos de concentração nazistas, remete para realidades como os esquadrões da morte, o Bope, e discursos delirantes do atual governador de Mato Grosso do Sul, que manda a polícia esquecer os direitos humanos. Sinistro Em "A Troca", Eastwood acusa, mas avança, e ultrapassa a denúncia militante graças ao personagem do serial killer. Ele encarnaria o mal absoluto, se o diretor não lhe tivesse concedido dimensão humana.Uma cena de execução judicial por enforcamento, descritiva, detalhada, expõe a barbárie da pena de morte como mais um crime cruel e perverso. O prisioneiro, cantando "Noite Feliz", mostra-se, ele próprio, habitado por uma inconsciência infantil. É um formidável momento de cinema. "A Troca" faz pensar no Kieslowski de "Não Matarás", no Chabrol de "O Açougueiro" e, sobretudo, em "M, o Vampiro de Düsseldorf", de Fritz Lang.Como neste último, a justiça é incapaz de compreender e, sobretudo, de resolver a questão do mal. Luz "Sobre Meninos e Lobos", o filme mais pessimista de Eastwood, centra-se, como "A Troca", na violência sobre crianças. Agora, porém, a última palavra é esperança.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Registro 231

Quando li o artigo de Daniel Finkelstein fiquei assustado com as suas colocações. Procurei entendê-las, mas não encontrei argumentos que sustentassem sua perspectiva. Ao ler a Folha de S. Paulo, edição de 14 de janeiro, encontrei o elucidador texto de Marcelo Coelho, articulista que sempre leio, pois seus textos sempre trazem um ponto de vista com o qual, na maioria das vezes concordo. Por esse motivo, ainda que não tenha lhe pedido permissão, transcrevo-o, pois acho que seu texto é merecedor de um lugar no modesto Cenadiária.

Caso você discorde ou concorde pode deixar comentário, procurando ler também o texto anterior que trata da questão em pauta, as ações tenebrosas em Gaza. Esse lugar na Terra Prometida vem se tornando a imagem de um campo de extermínio. Esclareço mais uma vez que não faço a defesa do terrorismo nem de ações que colocam em risco a vida de tanta gente sofrida. O texto de Marcelo Coelho abre a nossa percepção e é uma resposta ao texto de Daniel Finkelstein. Uma resposta lúcida, não sectária nem tendenciosa. Gostaria de ter escrito o texto

SOMOS TODOS JUDEUS
Marcelo Coelho

É MUITO EXALTADO e revelador o artigo de Daniel Finkelstein, colunista do "Times" londrino, que o suplemento "Mais!" reproduziu neste domingo. Um trecho:"A origem do Estado de Israel não está na religião ou no nacionalismo:está na experiência da opressão e do assassinato, no medo da aniquilação total e na conclusão amarga de que não foi possível confiar na opinião mundial para proteger judeus. Israel foi ideia de um jornalista.

Theodor Herzl era o correspondente em Paris da "Neue Freie Press" quando testemunhou manifestações antissemitas violentas contra o capitão Alfred Dreyfus, judeu (...).

Essa experiência levou Herzl a perder sua fé na assimilação. Ele se convenceu de que os judeus só poderiam viver em segurança se tivessem seu próprio país. Muitos judeus resistiram a sua conclusão durante muitos anos. (...) Mas a experiência de judeus de todo o mundo na primeira metade do século 20 (...) acabou confirmando a visão de Herzl.

Assim, quando se pede a Israel que respeite a opinião mundial e confie na comunidade internacional, não se está compreendendo o ponto fundamental. A própria ideia de Israel é uma rejeição dessa opção. Israel só existe porque os judeus não se sentem tutelados da opinião mundial".

Não será uma loucura todo esse raciocínio de Finkelstein? A odiosa perseguição antissemita ao capitão Dreyfus terminou em vitória contra o preconceito. A Segunda Guerra Mundial terminou em vitória contra Hitler. A insegurança dos judeus, no mundo ocidental, diminuiu a quase zero no Pós-Guerra.

A criação de um Estado judeu no Oriente Médio tem sido o único fator a reverter esse processo.

A opinião pública mundial sempre esteve disposta a defender os judeus. Não mais, quando para reagir ao fundamentalismo cego do Hamas e do Hizbollah se matam as irmãs árabes de Anne Frank.

É justamente nesse momento que o articulista do "Times" se sente liberado para dizer que a opinião pública mundial não deve tutelar os judeus. "Opinião pública mundial" termina virando sinônimo, na verdade, do bom senso e da moralidade básica de qualquer ser humano.

Nada entendo de táticas de guerra, mas imagino que o Exército israelense, capaz de brilhantes operações como as de Entebbe e da Guerra dos Seis Dias, poderia conceber meios melhores para debelar os assassinos do Hamas do que mísseis que matam crianças e civis.

Israel dissemina o terror numa população que nem sequer tem condições de fugir. O terror, a fome e a miséria criarão novos militantes que nada têm a perder.Quantas fotos, ao lado daquelas das crianças mortas, não mostram também crianças protestando e jogando pedras contra os judeus? O ódio é incutido desde cedo; semeia-se com bombas de última geração a insegurança de Israel nos próximos 20 anos.Certamente, atos de violência e bombardeios localizados nem sempre são ineficazes. Mísseis caíram sobre o palácio do ditador líbio Muammar Gadafi e isso ajudou a torná-lo minimamente razoável.

Não sei se o mesmo acontecerá depois de Israel destruir tudo o que existe em Gaza. Mas sei que cada criança morta ali é também um atestado da morte moral do Estado judeu.Quiseram construí-lo para segurança dos judeus? A interpretação é pobre, mas vá lá: o fato é que essa segurança pouco existe. Existe mais nas democracias ocidentais, de que o sionismo desconfiava tanto.

Quiseram construí-lo, numa interpretação melhor, em nome da moralidade e da inocência de um povo injustamente atacado e perseguido? Seria melhor cumprir então o que está atrás dessa ideia, e ser antes vítima que perseguidor, antes inocente que assassino.

Para mim, a sorte do judaísmo simboliza a sorte da humanidade toda, na exata medida em que não há Estado a defendê-la. O lar dos judeus, o verdadeiro lar, é um mundo em que todos sejam iguais. É este o lar que quero para mim, que me sinto judeu. Pois são judeus todos aqueles submetidos à perseguição, ao preconceito e ao racismo. Judia é aquela criança carregada pelos pais, morta pelos mísseis de Israel.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Registro 230: Palestina - PAZ - Israel

Como ficar indiferente ao conflito israelense-palestino que irrompeu no alvorecer de 2009, desencadeando ataques mortíferos que resultam na morte de tantos civis? Como ficar passivo diante da morte de tantas crianças? Como se comportar diante de tantas informações e tomar uma posição?

Moralmente, humanitariamente, coloco-me contra a violência da guerra, principalmente quando ela varre da terra vidas humanas, muitas delas contrárias ao conflito. Penso que em meio aos israelenses e entre os palestinos muitos se colocam frontalmente contra o ódio que vem sendo cultivado ao longo dos anos.

Tanto os palestinos quanto os judeus acreditam que a Terra Prometida lhes pertence. Essa terra se estende do Mediterrâneo até o rio Jordão. Terra que povoa o real e o imaginário de todos nós. Nessa estreita faixa de terra, vivem cerca de cinco milhões de judeus e cerca de quatro milhões e meio de árabes, povos tão semelhantes e tão diversos, mas muito próximos. Para os judeus, essa terra tem o nome de Israel, para os árabes é a Palestina. Ambos os povos têm razões para acreditar que a terra lhes pertence.

Vejamos as razões dos judeus: historicamente a região foi um reino judeu; após a revolta contra a dominação romana, de 70 a 135 D.C., a Judéia recebeu o nome de Palestina, denominação dada pelos romanos. Por essa época, os judeus se dispersaram, mas muitos permaneceram vivendo na região.

A cada ano, desde que se destruiu do templo de Jerusalém, os judeus oram para retornar a essa terra. Ao se encerra os festejos da Páscoa, festa que rememora a saída do Egito, o judeus proferem a seguinte frase: “No próximo ano em Jerusalém”. Nas três orações diárias a comunidade judaica, pelo menos os religiosos, volta-se para a direção onde está a cidade de Jerusalém que é sua cidade mais sagrada, como é sagrada também para os árabes, ainda que Meca seja o lugar de peregrinação mais importante. Jerusalém é também uma cidade sagrada para os cristãos do mundo inteiro, embora Roma exerça um papel de suma importância.

Na história do povo judeu registram-se inúmeros momentos de perseguição. Após séculos de trágicas Cruzadas que também causaram danos aos árabes, depois dos progroms e por fim depois da Shoah, a maior parte dos judeus, mas nem todos, acreditam que apenas estarão a salvo de perseguições se existir um Estado de Israel independente, fato que se concretizou em 1948.

Vejamos as razões para que os árabes acreditem que essa terra lhe pertence: os povos árabes que habitam essa terra estão nela desde muitos séculos e suas esperanças aumentaram significativamente após a conquista mulçumana no século VII. A vida e as tradições dos que habitam a região revelam uma forte ligação com os lugares onde seus ancestrais viveram de geração a geração. A cidade de Jerusalém é um centro cultural, social e religioso para os árabes.

Como fazer para que esses povos vivam em paz e construam sua história abolindo as agressões bilaterais? Muitas são as repostas, os argumentos, as perspectivas. Caso sigamos os argumentos de um povo ou de outro podemos fazer uma escolha irrelevante, visto que ambos os povos têm direitos a essa terra. Esses direitos são amplamente reconhecidos pela comunidade das nações. Além disso, devemos considerar que nenhum dos dois povos simplesmente desaparecerá, hoje, amanhã ou depois. Eles estão aí. São muitos, são importantes, são povos com uma história, uma identidade. E a pergunta surge: o que fazer a respeito.

A saída pode estar em quatro soluções possíveis para acabar com o conflito.

1 – Os árabes ficam com toda a terra
2 – Os judeus ficam com toda a terra
A solução 1 e 2 envolveria a eliminação do outro lado pela força. O uso da força extrema geraria ações de deportação em massa e o genocídio. Para isso, árabes e judeus lutariam entre si até a destruição mútua.

3 – Um Estado binacional para judeus e árabes
A solução de um estado binacional pode soar atrativa teoricamente, mas é impossível colocá-la em prática tendo em vista o estado de tensão permanente e os ódios entre os povos. Além disso, esse tipo de solução contraria o desejo de autonomia e autodeterminação de cada um dos povos.

4 – Dois Estados para os dois povos.
A única solução viável de paz duradoura seria através da existência de dois estados independentes, vivendo lado-a-lado, com fronteiras seguras e mutuamente reconhecidas. Essa ideia foi a que uniu os dirigentes dos palestinos e dos judeus em Oslo. Mas o Processo de Oslo falhou, falhou não por ter sido baseado em premissas erradas. Elas estavam corretas na defesa de dois estados para os dois povos, única maneira de se chegar à paz na região O processo fracassou porque cada lado costuma culpar o outro.

Para os palestinos, os argumentos vão nessa direção: a visita de Sharon ao monte do templo, o assentamento de Israel na Cisjordânia e Gaza e os bloqueios israelenses e as punições coletivas. Para os israelenses os argumentos são: recusa de Arafat às propostas de Barak em Camp David, os atentados terroristas e o incitamento dos palestinos à violência e ódio pela educação. Diante desses argumentos podemos julgar quais atos consideramos mais imorais e injustos, ou quem tem razão. Cada lado faz um contagem diferente de sangue e culpas. Cada lado costuma escolher diferentes fatos divulgar ou omitir. É importante levar em conta que boa parte de ambos os lados perdeu a confiança e a crença no comportamento do outro, com a solução de dois estados frustrados com o processo de Oslo.

Para que os povos, palestinos e israelenses, encontrem a medida justa é necessário combater a intolerância, já que existe nos dois lados pessoas que se recusam aceitar os direitos humanos e nacionais do outro. Portanto, esses grupos precisam ser combatidos no interior de sua cultura, cada um arcando com essa responsabilidade. Combater esses grupos é uma solução necessária. Palestinos e israelenses devem dizer não aos seus membros intolerantes e às suas formas violentas. É preciso acabar com o medo do outro. Enquanto houver medo cultivado a insegurança dissemina-se e os dois lados partem para o confronto.

Dei aulas em uma instituição judaica, o Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem. Ali, conviviam brasileiros. Em meio a esse ambiente laico e progressista longe do dogmatismo e afastado do sionismo,
aprendi muito e reafirmei a minha vontade de permanecer do lado daqueles que acreditam nas possibilidades de uma convivência pacífica entre pessoas e culturas diferentes. Tal afirmação não aceita a totalidade dos comportaemntos individuais e cuturais. As teses do multiculturalismo precisam ser olhadas cuidadosamente para que se aponte as vias deformantes e os descalrbos perpretados em nome de uma totalidade que não deve ser aceita plenamente.

Trabalhei com judeus e árabes em diversos elencos e partilhei com eles convivência pacífica, civilizadora, fraterna, que não impedia a divergência.

Hoje, quando vemos grassar entre nós o fundamentalismo político, religioso e étnico, eu me lembro dos meus alunos, dos meus colegas professores, dos meus companheiros de teatro, dos meus amigos árabes e judeus e tenho esperança.
Faz muitos anos, li um artigo de Umberto Eco onde ele dizia que a tolerância tinha um limite. E que era preciso atentar para não abaixarmos a cabeça diante das ações desumanas, com receio do nos tornarmos intolerantes. Faço a defesa daqueles que cobatem a intolerância por saber os caminhos que eles trilham. Esse caminho nega o ódio e o medo.

Muitas das ideias contidas nesse texto foram retiradas de um documento eletrônico, apócrifo, que recebi. Como não tenho conhecimento da autoria, reservo- me o direito de avisar que nem tudo que está escrito aqui é meu. Mas elas se tornam minhas ideias porque nelas acredito.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Registro 229: "A TROCA"

  1. Os críticos especializados em cinema se especializam tanto que viram uns chatos. Não conseguem relaxar e assisti a um filme que não seja "especializado" ou seja filme "cabeça". Falo isso por conta de A Troca, novo filme de Clint Eastwood. A maioria dos críticos especializados torceram o nariz e deram duas ou três estrelas. Eu dou quatro. Não se espante... Vou dar um desconto, visto que sou fã de melodramas e é isso que o filme do "detetive durão" é. E ele faz seu filme com sensibilidade e mexe com emoções e sensações na medida certa, carregando a mão somente na sequência do enforcamento. De resto, o filme é belíssimo, com interpretações boas, uma necessidade para que o melodrama nos arrebate. Angelina Jolie mostra sua capacidade de atriz muitas vezes diminuídas por personagens e ou filmes equivocados. Seus companheiros de elenco se encarregam de ampliar o leque de boas interpretações. O ator que faz o delegado é muito bom, assim como John Malkovih, sempre bem.
  2. O visual do filme, a cidade de Los Angeles no final da década de 20 e começo do anos 30, é preciso. E essa visualidade é sóbria. O diretor alterna o filme com cenas amenas e calmas com cenas tensas e nos empurra para dentro da sua história que não sabemos onde vai dar. Mas como todo bom melodrama, tudo acaba bem. Ou pelo menos nos alivia da tensão. No caso de A Troca, torcemos esperançosamente com a personagem da mãe. Porém, antes que isso aconteça, ficamos atentos e com os nervos à flor da pele à media em vemos o drama da heroína, a mãe que tem seu filho desaparecido e recebe outro no lugar dele. Baseado em fatos reais, o que torna o filme mais denso e conquista nossa simpatia desde o início, o filme A Troca coloca os bons e os maus em confronto, e no final vai ao encontro do humanismo, esse ideario tão ridicularizado, mas que reforça em nós a sua defesa. O melodrama é construído dessa forma - bons de um lado maus do outro - e o confronto dessas forças. Por isso os personagens parecem chapados, o que não são. Clint Eastwood arma o filme seguindo três unidades e através delas vemos os personagens delineando-se e no final, depois das perseguições sofridas, a mãe encontra a redenção. A justiça é feita. E há esperança no ar.
  3. Belo filme.
  • A Troca (Changeling, 2008, EUA) direção: Clint Eastwood; com: Angelina Jolie, Gattlin Griffith, John Malkovich, Colm Feore, Devon Conti, Jeffrey Donovan, Jason Butler Harner, Eddie Alderson; roteiro: J. Michael Straczynski; produção: Clint Eastwood, Brian Grazer, Ron Howard, Robert Lorenz; fotografia: Tom Stern; montagem: Joel Cox, Gary Roach; música: Clint Eastwood; estúdio: Imagine Entertainment, Malpaso Productions, Relativity Media; distribuição: Universal Pictures. 141 min

sábado, 3 de janeiro de 2009

Registro 228: Estamos em 2009


T E M P O

Carlos Drummond de Andrade

Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano
se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez
com outro número e outra vontade de acreditar
que daqui para adiante vai ser diferente...
...Para você,
Desejo o sonho realizado.
O amor esperado.
A esperança renovada.
Para você,
Desejo todas as cores desta vida.
Todas as alegrias que puder sorrir.
Todas as músicas que puder emocionar.
Para você neste novo ano,
Desejo que os amigos sejam mais cúmplices,
Que sua família esteja mais unida,
Que sua vida seja mais bem vivida.
Gostaria de lhe desejar tantas coisas.
Mas nada seria suficiente...
Então, desejo apenas que você tenha muitos desejos.
Desejos grandes e que eles possam te mover a cada minuto,
ao rumo da sua FELICIDADE!!!


Finalmente, 2009. Ainda estou ao sabor da marola dos dias festivos, que para mim foram mais de recolhimento que de embalo. Na passagem do ano, eu convivi com pessoas queridas e não saí de casa. O jantar frugal, seguido de conversas sobre o tempo, a vida, as acontecências, foi digerido com tranquilidade, já que não houve banquete pantagruélico. Embora saboroso, o jantar compunha-se de três pratos. Depois da meia-noite, cama e sono reparador, já que passar o dia providenciando comida, mesmo que simples, cansa. E com esse calor deselegante, só o banho de mar pra me deixar confortável. E foi o que fiz ao cair da tarde do dia 31. Praia vazia, ainda limpa, e lá estava eu apreciando o sol despencando dentro das águas de Ondina, praia gostosa, que não é melhor por conta das barracas, todas ao mesmo tempo com som no mais alto volume, cruzando pagodes, cada um pior que o outro. Haja sociologia da compreensão para dar conta do gosto popular. Mas fazer o quê? Cada um sente e se expressa como quer . No entanto, não vejo qualidade nesse tipo de música, pessimamente tocada, com arranjos repetitivos e simplórios, o infalível cavaquinho sem nenhum invenção. Os cantores, um tenta imitar o outro. Não sabemos qual o pior. Na terra de grandes sambista como Cartola, Batatinha, Ismael Silva, a Velha Guarda da Mangueira e da Portela, Paulinho da Viola, o que se ouve é lixo em vez de boa música.

Dia primeiro do ano. Fui, como sempre faço, caminhar na orla. Não fosse a sujeira deixada pela horda festeira, tudo estaria em conformidade com a manhã de céu azul. Era tamanha a quantidade de garrafas de vidro e de plástico espalhadas por todos os cantos que o lugar parecia um lixão. Não consigo entender os motivos de não conseguirmos manter os espaço públicos limpos. Deixamos nossos rastros como prova de nossa insensibilidade, de falta de educação, de desatenção. E não me venha com a justificativa de que era festa. Além do lixo, fezes e urina. Fossemos como os gatos, não deixaríamos os dejetos expostos.

Hoje, ao caminhar novamente pela orla, vi que a empresa encarregada de montar e desmontar a festa no Clube Espanhol (Réveillon Enchanté) pregou nos coqueiros grossos pinos de metal para sustentar as placas que protegia a entrada do público. Um ação fora do lugar. Enfiar metal no caule do coqueiro já é um absurdo, deixá-lo ali enferrujando é condenar a palmeira. Reclamar pra quem? Um amigo vem me dizendo que ando muito reclamão, um chato, mas como ele é jovem não acrescentou ao vocábulo, a expressão "de galocha". Chato de galocha. Tentei revidar, mas aceitei a reclamação dele, já que as minhas não encontram eco. E como não sou de sair por aí fazendo comício e passeata, recolho-me. Em 2009 tentarei não me queixar.

Fui ao cinema ver Gomorra. Um chute no estômago. Saí da sala completamente estressado. O Unibanco Glauber Rocha é um espaço deslumbrante. Depois do filme percorri seu interior até o terraço, mirante sobre a Praça Castro Alves. Um privilégio ver a praça com o poeta estendendo a mão tendo ao fundo a deslumbrante Baía de Todos os Santos pontilhada de luzes dos inúmeros navios ancorados. O espaço do cinema é de arquitetura moderna, limpa, elegante. Uma livraria atrai quem gosta de livros, mas seu acervo é muito restrito. O café muito gostoso, mas de preço proibitivo. Um café expresso com leite custar três reais me parece um despropósito. Ah, vende-se pipoca, outra ideia fora de lugar. Pensei que estaria numa sala diferenciada, longe do modelo Multiplex. Apreciar um filme com alguém ao seu lado mastigando pipoca é um horror, ainda mais com aquele cheiro de manteiga de segunda, que mais parece de sebo que de outra coisa. Falei com um rapaz muito atencioso, presumo ser o administrador do espaço, que escreveria uma carta para o jornal. Desisti, não vale a pena. Talvez o jornal nem publicasse. Mas penso que o Unibanco Glauber Rocha não combina com pipoca!

Acho que a promessa de não reclamar foi por terra!

Para aqueles que não aguentam a realidade, não recomendo Gomorra, tal a secura com que o cineasta Matteo Garrone expõe o submundo da Camorra. Quem está acostumado com a glamour dos filmes sobre a Máfia produzidos pelo cinema americano, caia fora. Em Gamorra, não há estetização da violência, nem justificativas para os crimes, há somente selvageria, bestialidade, beco sem saída e tudo isso atraindo crianças e jovens. E tudo pelo vil metal. Um círculo vicioso do mais alto grau de banditismo, crime organizado infiltrando-se em todas as esferas do social. Barra, não muito distante da nossa. O cenário, um cortiço, onde se passa maior parte da ação é de arrepiar. Quem idealiza a Europa e em particular a Itália, sofrerá um choque. Mas o choque serve para nos tirar da passividade, mesma a reflexiva.

Em 2008, mais precisamente no dia 29 de dezembro, Luiz Felipe Pondé escreveu um belíssimo texto na Folha de S.Paulo; Deus, é o título. Transcrevo o último parágrafo: " A teologia feminista diz que 'a Deusa' existe para punir o patriarcalismo. A teologia bicha (Queer Theology) se pergunta: por que Jesus viveu entre rapazes, hein? Alguns latino-americanos vêem Nele um primeiro Che, hippies viam um primeiro Lennon, outros, um consultor de sucesso financeiro. Ufólogos espíritas dizem ser Ele um extraterrestre carinhoso.Prefiro o cristianismo antigo (prefiro sempre as religiões velhas). Um Deus que sente dor e morre por amor a quem não merece é um maravilhoso escândalo ético. O Cristo antigo é um clássico. Melhor do que essas invenções da indústria teológica de vanguarda, feitas para o consumo moderno".

No artigo que escreveu para A Tarde (03.01.2009, p. A3), Fernando Conceição afirma que tivemos um Barack Obama na figura expressiva do professor Milton Santos. Tivemos, mas o enxotamos quando de seu exílio pelo governo civil-militar. Penso como Conceição que o geógrafo seria um bom político, mas o professor Milton Santos, em sua sabedoria extraordinário, sabia que essa função não lhe cabia. Para ser político perde-se a medida e navega-se ao sabor das imposições e interesses do partido. Por mais que seja um homem de fibra, intelectual e moral, ao ingressar na política o cidadão termina contaminado por esses jogos que vemos a cada dia serem jogados pela classe política brasileira. As exeções desaparecem no mar de lama. Depois, não nos interessa as exceções. Gostaríamos que a regra fosse a da transparência, da firmeza diante dos problemas que afligem a nação, da hombridade... Et Cetera. O professor Milton Santos sabia e muito de Política, mas a falta de entusiasmo para a política advinha do conhecimento que tinha dessa função e desse lugar. O seu ceticismo e desconfiança, como indica Fernando Conceição, são provas de alto saber, são provas de alguém que sabia ver mais longe e por isso permaneceu atuando onde atuou. Lucramos nós. Um professor, não um "ator político", esse era Milton Santos. Aproveito para questionar esse modismo de qualificar qualquer personalidade como ator. Esclareça-se: ator é o profissional que no palco ou na tela do cinema e da televisão encarrega-se de interpretar personagens. Os sociólogos de plantão resolveram qualificar os sujeitos, os indivíduos, os homens e as mulheres como atores sociais, retirando com isso a especificidade do vocábulo. Não me parece que Milton Santos interpretava personagens. Ele era um professor, bacharel em direito, geógrafo, um homem que não quis ser político. Um sábio.

Por enquanto é só!

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Registro 227: Para todos... 2009

RECEITA DE ANO NOVO

Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo...

Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las
na Gaveta.

Não precisa chorar de arrependimento
pelas besteiras consumadas nem
parvamente acreditar que por decreto

da esperança a partir de Janeiro
as coisas mudem e seja claridade,
recompensa, justiça entre os homens

e as nações, liberdade com cheiro e
gosto de pão matinal, direitos respeitados,
começando pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo que mereça
este nome, você, meu caro, tem de
merecê-lo, tem de fazê-lo novo,

Eu sei que não é fácil mas tente,
experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Registro 226: Retirado da gaveta

A CENA PARA ALÉM DOS CONCEITOS
TEATRO DRAMÁTICO E PÓS-DRAMÁTICO

Foi puro prazer assistir aos dois espetáculos apresentados pelo grupo CLOWNS DE SHAKESPEARE, do Rio Grande do Norte, no Festival Latino Americano de Teatro da Bahia, acontecimento artístico-cultural que se deu na primeira quinzena de setembro em Salvador, evento realizado por Oco Teatro Laboratório.

O grupo potiguar trouxe dois espetáculos para o Festival. Fábulas, uma especial adaptação para o palco das fábulas de Esopo e La Fontaine, selecionadas por Monteiro Lobato. Os Clows Marco França, Nara Kelly e Rogério Ferraz, dirigidos por Fernando Yamamoto, encarregam-se com grande maestria dos diversos personagens (animais), sem que precisem utilizar de disfarces ou figurinos ilustrativos para presentificá-los na cena. Espetáculo destinado às crianças, não se deixa prender na classificação caduca de teatro infantil.

O segundo espetáculo, a encenação de Muito Barulho Por Quase Nada, de W. Shakespeare, comprova mais uma vez a qualidade do grupo. Tanto um trabalho quanto o outro são pistas para uma dimensão da cena teatral brasileira atual. Apreciar as duas montagens é perceber o diálogo entre o regional, o nacional e as pontes lançadas para fora do nosso quintal. Por essas vias de mão dupla correm idéias e práticas vivificadoras.

Leitura cênica muito oportuna, os dois espetáculos demonstram a qualidade do teatro fora dos eixos – como sugere Cleise Mendes –, eixos compreendidos aqui como territórios hegemônicos do fazer teatral no Brasil, lugares por onde passa uma suposta supremacia da invenção e qualidade da produção cênica. Essa suposta superioridade do eixo Rio/São Paulo é quantitativa, não qualitativa, como demonstra as duas encenações aplaudidas longamente pela platéia, gratificada pela engenhosidade das concepções cênicas e, sobretudo, pela presença dos atores e atrizes.

Os espetáculos criados em Natal são comprovadamente realizações estéticas bem acabadas, produzidas fora do circuito do teatro profissional dos centros economicamente hegemônicos do país, mas ainda assim altamente profissionais.

É certo que identificamos nos dois espetáculos elementos teatrais colhidos aqui e ali, mas trabalhados de forma criativa pelos integrantes dessa trupe vivaz e comunicativa. No entanto, a essência do seu trabalho indica um conhecimento de suas raízes, da tradição e do “novo”, tomados de maneira consciente e reelaborados no palco, de forma que as encenações vistas no espaço do Teatro Vila Velha cumprem os seus propósitos diante de um público cativado, não pelas facilidades e modismos, mas por perceber a somatória de informações que o teatro sem fronteiras mostra.

O diálogo que se dá entre o clássico e o popular, nos variados gêneros incluídos nesses universos, tomam forma na maneira como as fábulas de Esopo e La Fontaine são transpostas para o palco, na abordagem que se dá ao texto de Shakespeare, nas interpretações sob multíplice registros, no intenso lirismo e no domínio dos códigos que regem o teatro, sem que se dê o aprisionamento aos ditames de uma cartilha. Juntam-se a esses elementos os figurinos precisos, bem idealizados e confeccionados, sem preocupação realista, histórica ou arqueológica. Ainda que em suas linhas se encontrem resquícios dos excessos deslumbrantes do barroco e das indumentárias características de certos folguedos populares, a concepção não trilha o caminho da verossimilhança. Nota-se em seus traços a influência do desenho de Gabriel Vilela, sem que se note cópia, mas releitura de uma estética marcadamente brasileira. As indumentárias são confeccionadas em tons claros, uma opção que faz ressaltar o uso das cores quentes a animar a palheta em que predomina o branco.

Com relação ao tratamento dado ao texto, comprova-se a sua força e sua eficácia enquanto signo no interior de outros signos, os da representação. Essa comunhão entre a palavra e o gesto, entre a palavra, a luz, os figurinos e o espaço cenográfico, mostra-se bem articulada por Fernando Yamamoto, em Fábula, e por ele e Eduardo Moreira, em Muito Barulho Por Quase Nada. Suas opções geram significados e sentidos no interior do palco e da platéia, frutos de uma pesquisa para encontrar modos de dizer e se fazer compreender, uma das finalidades do teatro em sua constante re-invenção estética e cultural.

Se a montagem da comédia de Shakespeare é relevante no sentido de confirmar a sua indiscutível feitura para o palco, a encenação de textos não dramáticos, como as fábulas, autoriza a afirmativa de que o palco está aberto para variadas experiências sem que uma anule a outra. Ver as encenações realizadas pelos Clowns de Shakespeare é apreciar um resultado profícuo do teatro construído sobre a emancipação dos seus elementos, combinados de maneira que se imbriquem e se mantenham também visíveis em sua unicidade. Da mesma forma, percebe-se na cena os hibridismos, atestados de que o pensar-fazer teatro segue por veredas às vezes planas e às vezes tortas, mas sempre surpreendentes.

A vitalidade das montagens em pauta e de outras que estão sendo realizadas, tanto em Salvador quanto em outras praças, pode colocar em discussão questões relativas às hierarquias e seus rompimentos na cena. Por essa via, defende-se o princípio do não regulamento estético da cena, evitando a dicotomia entre os conceitos teatro dramático ou pós-dramático para atestar ou não a sua qualidade e atualidade de comunicação. Parece-me que essa oposição pretende considerar o teatro dramático tendencialmente conservador e o pós-dramático como o top de linha. Portanto, os espetáculos fora dessa tendência estariam condenados à obliqüidade do olhar.

É certo que o teatro mudou. E seus contornos ainda difusos não podem ser amarrados em camisas-de-força, visto que as antinomias ainda se fazem ver no terreno prescritivo que envolve as duas tendências, ainda que, historicamente, o teatro dramático apresente uma somatória de questões já absorvidas pela cena. Por outro lado, a historicidade não esgotou o potencial inventivo do teatro dramático, ainda que a cena a partir dos anos setenta tenha desconstruído o fabular, mas não a ação dramática, essência do teatro a alimentar de poesia o palco aberto e os espectadores ávidos de emoções estéticas ou de outra natureza. Não me refiro aqui ao “teatro de distração”, aquele preocupado apenas com o entretenimento.

A crise da dramaturgia, e não um mero acomodamento, prefigura novos experimentos e novos procedimentos cênicos revitalizadores da prática teatral, fato confirmado pelas diversas encenações postas em movimento no palco do Teatro Vila Velha. Os aspectos expressivos que reverberam nos dois espetáculos motivadores dessa reflexão, já que não nos foi possível ver a totalidade do programa ofertado, potencializam as soluções encontradas pela via processual que a pesquisa requer. Esse caminho revela-se na cena e faz com que os significantes tornem-se presentes, conformando caráter, ilusão e representação para além do mimético, quando entendido como cópia, rebaixamento da mímesis, o que não é o caso, visto que a minha compreensão de mímesis passa por outro filtro, o aristotélico e também o benjaminiano. Para os interessados, recomenda-se o texto de Jeanne Marie Gagnebin, Do Conceito de Mímesis no Pensamento de Adorno e Benjamin, em Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e História (Imago, 1997, p. 81-104)

Uma postura menos triunfalista com relação ao pós-dramático e menos finca-pé no teatro dramático nos salvará dos hermetismos que rondam a cena, constituindo-a de produtos que estão “mais para gato do que para lebre”. Não é o caso, em se tratando dos espetáculos comentados.

A proposta formal de a Fábula e de Muito Barulho Por Quase Nada se constitui de invenção alicerçada por elementos reconhecidos pelos espectadores, sem que esse reconhecer implique no fechamento das encenações em uma fórmula gasta pela intromissão dos esquemas midiáticos. A tendência pós-moderna de atrelamento da arte teatral aos ditames pasteurizados da cultura midiática não prevalece nas duas encenações. Não posso me arrogar o direito de falar pelos espectadores, mas observo que as reações no interior da sala atestam a receptividade da experiência, configurada pela cumplicidade partilhada. A presença do intérprete como detentor dessa mediação não rebaixa o compartilhamento, mas provoca uma relação extra-cotidiana: palco e platéia mesclam energia.

Tanto em Fábula quanto em Muito Barulho Por Quase Nada, o exercício dos intérpretes se dá em múltiplos registros; aglutinam-se estilos conforme pede a situação armada pelo autor e pelo encenador. Essa riqueza possibilita, por parte do atores, a exploração dos recursos corporais e vocais assentados sobre matrizes reconhecíveis e reelaborados no jogo cênico. César Ferrário, Marco França, Nara Kelly, Eduardo Galvão, Helena Cantidio, Renata Kaiser e Rogério Ferraz, que constituem o elenco da comédia shakespeareana, cumprem muito bem o que se propõem. A presença cênica desses intérpretes revela a “essência do clown (...) desde os elementos técnicos, de tempo e olhar, de relação com a platéia, até a forma ‘pessoal e intransferível’ de ver o mundo, sempre distorcida pela lente do lirismo”, conforme o texto do programa. As personagens elaboradas com desenvoltura e presentificadas na cena ganham força e articulam-se à poética do texto e à poética da encenação, como indica Anne Ubersfeld em Para Ler o Teatro (Perspectiva, 2005): “não mais como a cópia-substância de um ser”, mas como lugar, como mediação. A essência do clown liberta os atores da estereotipia e do efeito fácil que a especificidade pode acarretar.

A somatória de pontos positivos que as duas encenações apresentam provoca reflexões para além daquilo que os conceitos prescrevem, ainda que eles ajudem na decodificação do objeto estético. Nem por isso, a apreciação das encenações de Fábula e de Muito Barulho Por Quase Nada se deu munida de uma lupa para achar as digitais dos que se mantém aferrados ao teatro dramático, com a intenção de condená-los. Da mesma maneira, não se rastrearam as premissas do pós-dramático para se atestar as qualidades das encenações postas em movimento pela liberdade e experimentação necessárias para que o teatro se mantenha como expressão do seu tempo, “nos quais o espectador pode ensaiar como viver a experiência da instabilidade e da fragilidade da identidade de forma produtiva e prazerosa”, como indica Erika Fisher-Lichte em Transformações texto publicado na revista Urdimento (2007).

Acontecimentos como este Festival servem para estabelecer encontros. No caso do Latino Americano, possibilitou a confluência de encenações realizadas em Cuba, Equador, México, Peru, Recife, Porto Alegre, Salvador, São Paulo e Natal. O pensar-fazer teatro se alimenta desse intercâmbio, e a cultura daqui e de fora é vista como um veículo de informações transmitidas. Não apenas isso, eventos dessa natureza proporcionam a produção de informações realmente transformadora.

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O texto foi escrito quando da apresentação dos espetáculos. Fiquei aguardando sua publicação em um jornal local. Por motivos alheios à minha vontade, o texto não foi publicado ficando na gaveta - expressão mais antiga, não?! Resolvi publicá-lo em virtude da qualidade do grupo Clowns de Shakespeare e registrar sua passagem por Salvador.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Registro 225: Tempo de Natal


Não entendo o que acontece em Darfur. Não quero entender o que há em Darfur. Para entender Darfur, eu preciso fazer tantos jogos mentais e daí encontrar uma justificativa. Dê-me um motivo qualquer, para que eu possa entender Darfur. Basta um, pequeno, improvável, justo, racional, qualquer um que seja. Eu lhe peço pelo amor de Deus ou dos Deuses, caso queira.

Não existe nenhuma justificativa.

Se houver, damos assentimento ao bestial.

Mas não são bestas os que ali estão, seviciando, estuprando, matando semelhantes-diferentes.

São humanos.

????????????????

Como fazer poesia depois de Dafur?
Depois da Armênia, depois Auschwitz e do Gulag, China, Camboja, Ruanda, Bósnia, fizemos poesia e ela parece não tocar corações e mentes.

Eu não quero entender o que acontece no Sudão.

Mas eu preciso.

O resto é silêncio

E poesia.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Registro 224: Apanhado no jornal e outras coisas...

  • Essa é de autoria de Daniel Pizza. Ele escreve no Estado de S.Paulo, no Estadão de domingo. Sinopse intitula-se a sua coluna. Vale a pena dar uma olhada de vez em quando. No domingo, 21.12.2008, ele escreveu sobre os melhores do ano e no final da sua coluna disse: "Por que em vez de terem prendido Caroline Piveta da Mota, que pichou a mureta da tal "Bienal do Vazio", a polícia não age contra os pivetes que assaltam os cidadãos à luz do dia? Ou melhor, se for para punir o ataque ao patrimônio público, por que não prendem a diretoria da Fundação Bienal, que cometeu atentado a um evento que sempre se gabou de ser o terceiro maior das artes plásticas contemporâneas.
  • Sobre o teatro ele escreve: "Como aos concertos, pude ir a poucas peças neste ano; ao contrário deles, dei azar com elas. Entre outras, fui ver três textos importantes por respeitadas equipes: A Moratória, de Jorge Andrade, pelo grupo Tapa; Senhora dos Afogados, direção de Antunes Filho; e Hamlet, com Wagner Moura. Desigualdade de interpretações e equívocos nos conceitos foram as marcas.
  • Fui ver Ilhas coreografia do espanhol Victor Navarro para o Balé do Teatro Castro Alves, datada de 1981, agora dançada pelos alunos da Escola de Dança da Fundação Cultral do Estado da Bahia. Em 1980 trabalhei em Geni (Marilena Ansaldi e José Possi Neto), cuja coreografia era de Navarro. O coreógrafo que esteve junto ao Balé Cidade de São Paulo além de criativo é uma pessoa adorável. Pena não ter tido a oportunidade de falar com ele depois do belíssimo Ilhas. É que no programa constava Engenho, fruto da parceria do BTCA Residência, com o ICBA/Goethe Institut e o coreógrafo alemão Félix Ruckert. Não aguentei vinte minutos, da chatíssima coreografia, cujo problema não está na execução, mas na concepção. Fui embora e não matei a saudade. Ilhas, a coreografia, é precisa, envolvente, muito bem concebida e bem dançada. Para mim que não vi sua estréia, considero-a como um trabalho de agora. Não há firula, nem estranhos conceitos para sustentar o que se viu no amplo palco do Teatro Castro Alves, aliás muito bem usado. Navarro explora o espaço, ilumina os corpos sem grandes efeitos, mas compõe uma luminosidade onírica para que os dançarinos (?), bailarinos (?) exponha a elaborada construção de movimentos num fluxo crescente que faz a platéia pulsar e no final aplaudir de pé. De curta duração, a coreografia deixa saudades, vontade de vê-la mais vezes. Ilhas não devia compor o programa com Engenho, cansativa repetição de movimentos e correrias sem nenhuma engenhosidade. Quando da chegada de Félix Ruckert houve certa expectativa com relação ao que ele faria com o BTCA, tal a crise provocada pela Secretaria de Cultura, que tentou resolver problemas do passado, criando outros, num ato persecutório aos bailarinos afastados por gestões anteriores. O coreógrafo alemão estava disposto a trabalhar com bailarinos "fora de forma", mas não foi feliz. O problema é que certa corrente da dança, a que se diz pós-moderna, presumo, tem se afastado da dança moderna, renegando-a. Tal afastamento nos condena a ver experimentos que de dança não são nada. Sobre o palco o que se vê é uma amontoado de idéias, e muitos conceitos. Isso cansa.
  • A noite de Natal está chegando. Paz na Terra aos homens e mulheres de boa vontade. Esperemos...

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Registro 223: Em meio à correria de fim de ano

  • Por mais que tente me manter afastado da euforia festiva que toma conta de tudo e de todos no final do ano, termino levado por essa febril confusão, por esse compromisso em providenciar lembrancinhas, presentinhos, sorrisinhos e que tais. Chega. Não aguento mais. Quero ficar quieto no meu canto, ouvindo música: a da natureza e a criada pelos humanos, mas não seus alaridos.
  • Leio o jornal do dia e espanto-me com a notícia que de que a moça que pichou o prédio da Bienal, ainda que tenha sido suspensa sua prisão, continua presa. O pior de tudo é que o senhor Ivo Mesquita curador da 28. Bienal argumenta que a garota pichou um prédio tombado. Tornou-se então uma criminosa. Não quero fazer a defesa da pichação, mas considero hipócrita a sua posição. Assim também pensa o artista Roberto Aguilar. Ainda bem!
  • Se olharmos para as nossas cidades a cata de prédios tombados para ver como se encontram, perceberemos que nem todos merecem os cuidados que deveriam ter por parte do poder público, das instituições privadas e dos particulares insatisfeitos com o tombamento. Não quero radicalizar, exceções existem. Mas nesse imenso universo que é o patrimônio de pedra e cal, muita coisa sofre a ação nefasta de todos nós. Ação muito mais terrível do que a pichação de uma espaço vazio, uma proposta conceitual (haja conceito para dar conta!) no interior dessa coisa em crise que é a Bienal de São Paulo. Em crise por conta das administrações equivocadas e das curadorias que entram no jogo do mercado. O fato é que os donos das galerias ocuparam o centro das atenções mostrando seus artistas em espaços outros que não os do pavilhão. Além disso, no imenso território brasileiro existem muitos artistas produzindo fora do circuito oficial e fora do negócio de arte e não conseguem furar o cerco. Mas como chegar até eles se os curadores estão comprometidos com conceitos fechados e, pior ainda, submetidos ao jogo perverso do mercado de arte?
  • Mas voltando ao caso da jovem Caroline Piveta da Mota, me parece draconiana a punição, tendo em vista que criminosos de mão cheia estão por aí flanando e os que chegam a ser presos ficam menos de vinte e quatro horas no xilindró. Portanto, dois pesos, duas medidas. A Justiça é cega, mas somente na alegoria. Na vida real , ela pisca os olhos e sabemos para onde.
  • A pichação no interior do "vazio", proposta mais besta, deve ter sido apagada, restituindo-se a ordem e o progresso no interior da Bienal. Mas o fato é que o ato de Caroline provocou a ira daqueles que tentam nos impor um absurdo, deixando patente que o vazio não é da arte, mas das cabeças, que no momento, pensam sobre as artes visuais. Não exageremos, vozes discordantes e qualificadas apontaram a aberração que se viu. Um equívoco atrás do outro, desde o tobogã até o espaço vazio. Mas o evento chega ao fim e esperamos que a próxima edição da Bienal venha de fato provocar alguma coisa que não seja o evento midiático logo esquecido.
  • Inaugurou-se o Unibanco Glauber Rocha no lugar do ex-Cine Guarani, espaço mítico para os amantes do cinema. Ali, nas manhãs de sábado, sob o comando do crítico Walter da Silveira, assisti os filmes que ele exibia como parte da programação do Clube de Cinema da Bahia. Naquele tempo da delicadeza, enchia-se a sala para ouvir as palavras do crítico sobre o filme a ser exibido em seguida. Por fim, saíamos do escurinho do cinema preenchidos de imagens, impregnados de narrativas, enriquecidos de arte criativa. Enfrentávamos o sol do meio-dia na Praça Castro Alves, em meio aos que nela circulavam sempre bem apresentados, porque ir ao Centro da cidade requeria um certo jeito, um traquejo, um embelezamento. Isso não era prerrogativa de endinheirados. O povo, essa entidade que nos consome e nos dá rasteira quando queremos estudá-la, sabia da sua elegância e desfilava ladeira acima, ladeira abaixo, enchendo de vida uma praça charmosa que não é esse horror que vemos agora. As pessoas exibiam sua indumentária sem luxo nem riqueza, mas de uma dignidade que não se vê atualmente nas ruas de Salvador. Éramos muito mais educados, gentis, cordiais. Não pensem que as tensões e as insatisfações estavam suspensas e que alienados sorríamos como Polianas.
  • Espero que o Cine Glauber Rocha sirva de estímulo para outras iniciativas naquele sítio de topografia tão singular. E que elas sejam realmente de bom gosto, que criem harmonias e também contrastes, mas que não revelem estupidez e arrogância modernosa. Que a Praça viva! Que a estreiteza burocrática, imediatista não imponha sua vontade sobre nós. É preciso ouvir diversas vozes. O Teatro Gregório de Matos precisa de reforma e revitalização. O Centro Cultural da Barroquinha precisa funcionar sob o comando de alguém que saiba animar artística e culturalmente o pedaço.
  • Canções de Amor filme de Christopher Honoré é fina flor estranha que nos pega de surpresa, mas ganha quem está disposto a absorver não somente a história, mas a forma como ele escolheu para contá-la. História de perda e encontro, com uma sequência final muito bem construída. Construída com delicadeza. A frase final, "Ama-me pouco, mas por muito tempo", soa aos nossos ouvidos, pelo menos aos meus, de maneira aliciadora...

domingo, 7 de dezembro de 2008

Registro 222: Uma coisa leva a outra..

  • Dei de ouvir Beatles constantemente. Música para ouvir, pra dançar, pra sonhar com céu lantejoulado de diamantes e campos de morangos. Acredite; esses momentos prazerosamente curtidos não estão carregados de nostalgia paralizadora, embora plenos de passado rememorado são revitalizadores. Sinto-me recarregado para me transformar. "Metamorfose ambulante". Penso então no que diz Claudio Magris, autor de O Senhor Vai Entender, ainda não lido nem adquirido. Diz ele: "A memória olha pra frente; carrega consigo o passado, mas para salvá-lo, assim como são recolhidos os feridos e os mortos que ficaram para trás, pra levá-lo de volta à pátria, à casa natal que cada um, afirma Bloch, acredita em sua nostalgia ver na infância e que, entretanto, se encontra no futuro, em um futuro livre e liberto" (O ESTADO DE S. PAULO, 30 de novembro de 2008). Ecos benjaminianos.
  • Citei Magris na abertura do Primeiro Encontro Latino-Americano de Teatro - Trânsitos na Cena Latino-Americana Contemporânea organizado por Hector Briones e Cacilda Póvoas. Durante o evento (3 a 5 de dezembro) no Teatro Vila Velha um grupo de pesquisadores da Argentina, Brasil Chile, Costa Rica, Cuba, Equador, Peru e Venezuela ligados ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - UFBA apresentaram comunicações a respeito do fazer teatral em seus respectivos países. Essas comunicações fazem parte da publicação lançada pela Edufba no encerramento do Encontro. Utilizei do tempo concedido para falar desse diálogo entre próximos-distantes e da importância de ouvirmos o Outro para alargar as fronteiras, não somente as teatrais, mas a de convívio e aprendizado. Magris me ajudou na referência que fiz à memória, visto que as falas estavam impregnadas de memória positiva, aquela que nos lança pra frente, ainda que estejamos tratando do passado, para muitos aterrador. Se pensarmos que o fazer teatral na América Latina esteve sob o jugo de governos ditatoriais (um aspecto recorrente em todos as comunicações) que nem sempre compreendem o significado da arte, mais especificamente da arte teatral, o valor positivo que salta das memórias é que elas não estão impregnadas da obsessão que leva ao ódio vingativo. Talvez pelo fato dos participantes serem jovens, não há traço de rancor quando relatam as lutas dos seus conterrâneos para manter a atividade teatral viva e atuante durante os regimes de exceção que aterrorizaram a região na vigência da Guerra Fria fator que resultou na quebra democrática e no endurecimento dos regimes.
  • A iniciativa do Encontro é salutar. Pôde-se tomar conhecimento de realidades semelhantes e diferentes sobre o teatro que se fez e faz além das fronteiras, limites que podem ser alargados no momento em que passamos a dividir experiências, procedimentos e encaminhamentos para a cena.
  • Recebi de Fanny Abramovich, juntamente com a revista Continuum editada pelo Itaú Cutural alguns cartões para a minha coleção e um marcador de livros; nele, uma frase de Oscar Wilde: "Não sou jovem suficiente para saber tudo". Fina ironia!
  • Veio também um guia com indicações de lançamento de livro, discos e DVD's. Cinco filmes de Ingmar Bergman acabam de ser lançados: Da Vida das Marionetes, O Rito, O Olho do Diabo, Depois do Ensaio e Uma Lição de Amor. Ah, dois de Sokúrov, cineasta russo, também estão na praça, Arca Russa e Pai e Filho. Vi o último; um filme estranho. Sokúrov descreve a relação entre pai e filho de uma maneira estranhamente bela, ambígua, desconcertante. Saí do cinema com uma sensação de não ter captado algo dessa história encenada vagarosamente, quase sempre em primeiro plano e closes de atores inquietantemente belos. Vale a pena conferir.
  • Danuza Leão em entrevista ao no Caderno 2 (A Tarde, 4.12.2008) deve ter mexido com os brios baianos. Lá pras tanta ela diz: "Agora tudo tem promoter na Bahia" e vai alfinetando a vida social/cultural da soterópolis. O gozado é que Danuza veio desse ramo, mas ela tem lá suas razões. Pasteurizaram tudo! E dá-lhe mesmice nos acontecimentos!
  • As festas de fim de ano se aproximam. Sempre gostei delas, principalmente quando criança e também na adolescência. Na minha família, o Natal era festa de porta aberta, sempre pra fora, receptiva. Meu pai, festeiro de marca maior, gostava de fazer festas natalinas para a cidade. Armava presépio grandioso no salão da principal escola da cidade (ou na rua) e aí recepcionava as crianças e idosos que recebiam brinquedos os primeiros e cobertores os segundos. Semanas antes, quantas vezes acompanhei meu pai percorrendo a periferia da cidade para distribuir uma senha, garantia do ingresso no recinto do presente. Depois que fazia esse evento, abria o salaão para quem quisesse apreciar o presépio que muitas vezes ajudei a montar.
  • Na infância, eu costumava visitar as casas em que tinham presépios, encantando-me sempre com as soluções de cada um. Fascinava-me ver a cenografia e a mistura inusitada de objetos e imagens contemporâneas que se juntavam àquelas tradicionais remissivas ao nascimento do Menino. Geralmente montados nos cantos da sala, ofereciam-se ao olhar do espectador como um palco italiano. Muitas vezes fui surpreendido com presépios montados no centro da sala, levando-me a uma visibilidade circular, como se o espetáculo fosse em arena. A geografia desses presépios, às vezes grandiosa, era construída com caixas, panelas, tábuas, tijolos e outros objetos cobertos de musgos catados na caatinga, musgos vermelhos, alaranjados e verdes que impregnavam o ar com um cheiro característico do campo do sertão. Os mais requintados, achavam seus proprietários, eram feitos com papel pintado de cinza imitando rochedos e gruta onde a cena do nascimento era recolhida. Alguns eram feitos de pedra salpicadas de tinta azul escuro, vinho e branca, resultando num efeito interessante e rompendo com a realidade dos objetos, mas sem escondê-los, num efeito mimético de recriação. Areia fina e de brancura imaculada marcava algumas regiões dessa paisagem, enfeitadas com conchas e búzios.
  • Na adolescência, eu e meus amigos, ficávamos na praça fazendo o footing até a hora da Missa do Galo, que geralmente não íamos. Reminiscências. Os Natais da minha infância não eram regidos por esse consumo desenfreado. Tanto eu quanto meus irmãos ganhávamos roupa nova, um presente muito simples... No jantar havia peru. Ah, havia sempre queijo do Reino na sua tradicional embalagem. Para nós, Natal sem queijo do Reino não era Natal. Não precisava nem de presente!

domingo, 30 de novembro de 2008

Registro 221: O que vai em mim e o que vai por aí

  • Ando meio preguiçoso. Ando trancado, ensimesmado, afastado. Cultivo as minhas idiossincrasias, tentando não afetar os outros; nem vontade de falar eu tenho. "Ando meio desligado e nem sinto os pés no chão", diz uma das letras dos Mutantes... Quando eu era jovem gostava de ouvi-los. Ainda gosto e muito.
  • Por que escrevo? Para não me entupir. Tenho ouvido Bach. Me acalma. Recebi a visita de um sobrinho-afilhado. Veio trazer o convite de casamento. Os jovens ainda casam com pompa e circunstância. Ao ouvir Bach, ele comentou: "A música é introspectiva", mas queria dizer que eu estava na fossa (esse termo é geracional), conclui. Qual o termo atual para fossa?
  • MUITO, aquele encarte do jornal A Tarde (não me peça opinião sobre ele), edição de hoje, traz uma reportagem sobre aquelas moças (Sarajane, Carla Visi, Márcia Short, Cátia Guimma e Márcia Freire) que fizeram sucesso em cima do Trio Elétrico e foram defenestradas para o país das ostras. Uma pena! São talentosas as moças...tanto quanto as congêneres que vieram depois ou ao mesmo tempo e estão aí megainvestidas A reportagem não diz tudo. Mas posso imaginar o buraco onde estavam e onde estão. Imagino que por culpa dos outros e delas também. No mesmo encarte, a diretora da fundação Cultural do Estado da Bahia, fala, fala e não diz nada... aproveitável. Do mesmo jeito o doutor Francisco Bosco... um amontado de frases feitas. Salva-se a indicação que ele fez ao pai, João Bosco: ler Dois Irmãos, de Milton Hatoum. Salva-se também No verão, melhor é ser aut+ista, de Aninha Franco. Garota esperta essa Aninha!
  • Recebi o telefonema de uma amiga-irmã que reside no balneário Rio de Janeiro, a cidade mais linda do Brasil. Ela pediu ajuda para resolver um dos trechos desses intermináveis formulários para patrocínio cultural - financiamento para teatro. Ela quer montar um texto e vem labutando com o MINC e agora vai labutar com uma dessas empresas de telefonia. O trecho referido era sobre a contrapartida social: "O que seu projeto vai fazer para democratizar a cultura?" Balela para aplacar a má consciência da dita empresa e agradar o governo populista que inventou essa história de contrapartida social.. Conversamos e ela me disse que vai precisar de uma cirurgia para retirar um tumor. Não fez drama nem estava apavorada.
  • A Cidade do Salvador continua suja e barulhenta na mesma proporção.
  • Berlin Alexanderplatz, o enorme filme de Reiner Werner Fassbinder foi lançado em DVD. Vale a pena ver no silêncio da sala de estar, sem a inconveniência de se irritar com o "educado" público que escolhe as sala de cinema para conversar, namorar, comer pipoca e balas, conferir e atender o celular. Ô luzinha irritante! O pior é quando você reclama, os ditos se sentem injustiçados, agredidos, numa flagrante inversão de valores!
  • Ler tem sido o maior prazer. E como! Prazer solitário mesmo. Daí me pergunto: essa história de que a narrativa e o livro estão fadados a morrer faz parte de uma campanha orquestrada para gerar interesse por outras mídias e suas formas de expressão? Interessa a quem discutir e difundir tal idiotice? Desviar grana, só pode ser. Nada substitui o prazer da escolha do livro, de abrir sua páginas, sentir no tato o papel, deixar o cheiro penetrar as narinas e os olhos se encantar com a capa, a diagramação e depois disso mergulhar no imenso oceano das palavras. Esse contato é de uma sensualidade indescritível porque muito particular. Depois de alguns anos imerso nos livros teóricos, em virtude das obrigações acadêmicas, retomo ao febril e estoteante gosto pela ficção. Leio um livro a cada semana. Registro os que li na seguinte ordem: Um Sonho a Mais, de Doris Lessing; Pastoral Americana, de Philip Roth; As Brasas, de Sándor Márai; Diário de Escola, de Daniel Pennac; , de Josef Roth (deixou-me enchacardo de lágrimas. Ah, vi Milágrimas, o belo espetáculo de Ivaldo Bertazo na TV SESC. O pessoal que faz dança-conceitual contemporânea devia olhar com olhos de querer ver para aprender ou reaprender a dançar). Agora começo a leitura de Menino de Lugar Nenhum, de David Mitchell, depois de ler a biografia de Ruth Rachou, escrita por Bernadette Figueiredo e Izaías Almada, despertando-me doces e engraçadas lembranças. Recomendo todos. Mas faça a sua escolha guiado (a) por outras opiniões. Reafirmo o prazer da leitura e não vou teorizar sobre isso. Prazer que eu aprendi com tia Edna, professora da escola primária em Baixa Grande e Feira de Santana. Ela perdia-se na leitura e ganhava o dia! Deixo-me de herança esse gosto pela leitura. Quando leio, não vejo a hora passar. Quando me envolvo nas teias de um autor, deixo-me agarrar...
  • Por falar em livro, a Edufba + Eduneb reeditaram de Silio Boccanera Júnior O teatro na Bahia da Colônia à República (1800-1923). Certa feita, tive acesso ao livro na sua primeira edição. Por necessidade, não resisti, fiz uma cópia. Agora tenho a segunda edição (2008).
  • Cleise Mendes, foi minha orientadora no mestrado e doutorado, lançou A Gargalhada de Ulisses, a catarse na comédia , livro derivado de sua instigante tese.
  • O livro que escrevo vai saindo lentamente. Ainda sem título, seus personagens assaltam as minhas horas dedicadas a outras atividades. Ocupo-me deles sem pressa. Tenho outros livros na fila, esperando a resposta das editoras. Espera angustiante.
  • Os alunos do curso de Artes Cênicas da Faculdade Social fizeram trabalhos interessantes no Seminário Interdisciplinar e na Mostra Didática das disciplinas Encenação e Interpretação III. É lamentável que o curso esteja acabando, mas temos três semestres pela frente e muito trabalho e cena e solos e performances. Dionísio é mais!
  • Para aguentar domingo só mesmo escrevendo. Êta dia chato! Principalmente pós-meio-dia.
  • No Estadão de hoje, mais precisamente no caderno Cultura, José Marcos Coelho escreve Sons de uma América Desconhecida e nos informa sobre Elliot Carter, compositor americano que aos 90 anos continua compondo. Reconhecido somente nos "círculos da vanguarda - sobretudo européia", ele é um ilustre desconhecido em sua terra natal. Lá para as tantas, Coelho pergunta: "Será que o critério fundamental para se aferir a qualidade da música de um compositor contemporâneo é avaliar em que medida o público a compreende e aceita? Isso seria nivelar por baixo, com certeza". Diante do que tenho visto por aí, fico tentado e reconhecer que a norma é essa, meu caro Coelho. Mas a minha parca abertura mental diz que NÃO. Se assim fosse Arte e Artistas (com maiúscula, propositadamente) estariam perdidos para sempre. E não estão! Em meio a arte errada (vide http://www.cadernosgrampeados.zip.net) cultivada por um grupinho que se acha o supra-sumo da vanguarda e as aberrações avalizadas pelo grande público massificado, pérolas são cultivadas.
  • Por falar em publicão, durante uma sessão do espetáculo Hamlet (Shakespeare, Aderbal Freire Filho) no Teatro FAAP-São Paulo, uma espectadora sentada na primeira fila levantou um cartaz com a seguinte frase: "Eu sou sua piscininha. Jogue-se aqui". Os dizeres, fora de hora e de lugar, foram dirigidos ao ator Wagner Moura, que, pasmem, parou para ler o cartaz, perdendo a concentração e rompendo com o ritmo da encenação. Em que lugar fomos parar?
  • Pérolas aos porcos!
  • A polêmica Tom Zé x Caetano Veloso, cansa! É certo que Tom Zé foi limado no auge do Tropicalismo ou depois. O que aconteceu de fato nunca veio a público. Graças ao seu talento e a Arto Lindsey, Tom Zé ocupa o lugar que merece. Agora faz sucesso, mas acho que o rancor amarga ainda a sua alma. Pra quem cuidou de rosas no jardim do condomínio onde residiu, o sentimento que guarda, ainda, não lhe cai bem. Mas tudo gera dinheirinho na caixinha de dona baratinha e a polêmica serve pra isso. Um pouco de bossa devia guiar os passos dos dois, que se mostraram muitas vezes elegantes!
  • Por que escrevo? Para estender pontes entre meu coração e o coração de quem se dispõe a ler o que escrevo
  • Chega! Por hoje é só. Como dizia Sílvio Lamenha: Poesia é axial!

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Registro 220: O Diário de Judith Malina

  • Em meio à pesquisa para elaboração da tese Transas na Cena em Transe: teatro e contracultura na Bahia (PPGAC - UFBA, 2007), deparei-me com a publicação, pelo Jornal da Bahia (1971), do diário escrito por Judith Malina quando presa no DOPS, Belo Horizonte, no período em que o Living Theatre veio ao Brasil a convite de Zé Celso e Renato Borghi. Originalmente, o texto foi publicado pelo jornal Diário de Minas.
  • O longo diário foi reproduzindo em seis números do Jornal da Bahia e estão arquivados na Biblioteca Central numa situação deplorável, visto que tem sido manuseado de qualquer jeito. Além disso, não recebem a atenção dos responsáveis pela guarda de tais documentos, embora os funcionário tentem manter o acervo. Mas o que falta na verdade é o investimento do poder público com vistas a preservá-lo. Papel velho não dá voto nem status. Parece interessar somente a essa gente obsessiva, os pesquisadores.
  • Por conta das condições dos jornais e temendo a perda do material, xerocopiei página por página e em seguida digitei o texto de Malina na forma como o encontrei. Isso acarretou lacunas, mas preservo o documento que me custou horas de trabalho. Sou péssimo digitador. Ah, eu devia ter feito um curso de datilografia, não é prof. George Mascarenhas?!
  • Através do Guia da Folha (31.10.2008) soube da publicação do Diário de Judith Malina pela Secretaria de Cultura de Minas Gerais - Arquivo Público Mineiro. Corri atrás da edição. Agora, conto com a totalidade do texto e espero usá-lo. Afora o Diário, documento inestimável para que se possa entender a passagem do Living por Ouro Preto, lugar onde residiu o grupo depois da impossibilidade de trabalhar com o Grupo Oficina, toma-se conhecimento de mais um dado da repressão efetivada pelos orgãos de segurança sob a égide do governo Médici. No período, a perseguição, a tortura e morte atingiu os militantes de esquerda, os dissidentes e as hostes contraculturais, todos empenhados em questionar e protestar, a seu modo, contra a supressão da liberdade e o regime ditatorial.
  • A bela edição mostra o empenho da comissão editorial e da Secretaria de Cultura em reunir o material, agregando outras informações sobre o Living Theatre. Fartamente ilustrado, impresso em papel Couchê, o livro oferta-se ao leitor como um objeto muito bem concebido graficamente. Consta de seu sumário, o Diário, os artigos Coisas que ficaram muito tempo por dizer, de Heloísa Staling, A reinvenção do teatro, de Adyr Assumpção, Sobre o Living no Brasil de Ilion Troya e uma cronologia das produções do Living Theatre do mesmo autor.
  • Recomendo o livro, uma pena que o mesmo não é comercializado, o que priva o acesso a ele.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

REGISTRO 219: Receita

21 DICAS PARA QUEM QUER SER UM ARTISTA (DE TEATRO)CONTEMPORÂNEO

As dicas não são de minha autoria. Recebi de Celso Júnior, diretor, ator, professor de teatro. O humor corrosivo das dicas não compromete a lucidez de cada uma. Ao contrário, aumenta-lhes a eficácia, principalmente nos tempos que correm. Divirta-se... e pense.

1. Monte uma cena toda em preto e branco, utilizando apenas alguns detalhes destoantes. (Outra dica pra não errar: acessórios vermelhos)

2. Termine o espetáculo assim como ele começou, pra passar uma idéia de ciclo.

3. Apoie sua montagem num jogo, de preferência num tabuleiro de xadrez, onde cada atorrepresente uma peça. Claro, conclua com xeque-mate.

4. Nomeie seu espetáculo de 'Processo' e não o termine NUNCA!

5. Nomeie seu espetáculo de 'Performance', mesmo não sabendo o que isso é direito.

6. Utilize uma mesa que se transforme em tudo; ora cama, ora porta, ora parede... e mesamesmo.

7. Nada de figurinos pesados: todo mundo de cinza e descalço.

8. Monte um clássico e faça a readaptação no nordeste ou na favela.

9. No cenário, o chão deve ser de barro, areia, mato ou café. Algo simbólico e que suje bastante.

10. Excite os 5 sentidos do público (ou 6, se conseguir), embora isso se resuma a acender um incenso, jogar água na platéia, servir vinho, encostar numa parede e mandar tomá-los no cu.

11. Misture dança, teatro, música e artes plásticas e não faça nenhum dos quatro direito.

12. Coloque algum aparelho elétrico ligado. De preferência uma cafeteira.

13. Diga que todo o seu processo com os atores se baseou em view point.

14. Convide alguém famoso pra dizer que indica a peça no programa, mesmo sem ele nunca ter assistido.

15. Monte em arena e delimite o espaço público-platéia com giz. Ah, se quiser sofisticar, filme e exiba as reações do público ao vivo num telão.

16. Ensaie seus atores com yoga, karatê, ginástica olímpica, box, capoeira e meditação. Menos com teatro.

17. Crie maneiras de interagir com o público. Entregue fones de ouvido tocando um lounge bem blasê e/ou alguém texto de auto-ajuda, enquanto os atores fazem partituras de movimento.

18. Crie a sua própria trilogia.

19. Coloque algum ator fazendo um depoimento pessoal no microfone.

20. Pra ser contemporâneo, tem que ter secreção. Peça para o ator suar bastante ou cuspir em cena.

21. Por fim, limite o número de espectadores, de preferência 3, e lote todos os dias.

É infalível!

domingo, 16 de novembro de 2008

Registro 218: Uma foto fetiche, uma estréia auspiciosa

O presente texto foi motivado por dois fatos; ter recebido de minha grande amiga, a atriz Cleide Queirós, a foto que ilustra esse registro e a estréia de Álbum de Família, de Nelson Rodrigues, espetáculo de conclusão de curso dos alunos de Artes Cênicas da Faculdade Social, turma que ingressou em 2004. Álbum de Família, com direção do professor e dramaturgo Paulo Henrique Alcântara estreou no Teatro Vila Velha e cumpre temporada até 18 de novembro.

Os acontecimentos fizeram-me recordar a passagem pelo Teatro Popular do SESI, quando fiz Oromar, um dos personagens de A Falecida. A presença de Nelson Rodrigues na platéia deixou o elenco expectante. No final do ensaio geral ele subiu ao palco para falar com todos nós e posar para a foto. Guardo-a como um fetiche. Na estréia, o autor compareceu acompanhado por sua esposa e irmãs. Uma família rodriguena.

Quando cheguei a São Paulo no começo da década de 70, o Teatro Popular do SESI – TPS, uma realização do saudoso diretor Osmar Rodrigues Cruz, mantinha-se em atividade desde 1962, quando as atividades teatrais realizadas pelo órgão patronal foram oficializadas sob o nome de Teatro Popular do SESI. Seu idealizador tomou para si a empreitada de juntar às suas idéias sobre teatro popular as de Jean Vilar e Romain Roland.

O TPS, até a inauguração de sua sala de espetáculo no prédio da FIESP (1977), alugava os bons teatros da cidade, mantendo em cartaz um repertório eclético de peças consagradas da dramaturgia universal e textos nacionais de qualidade. Textos e que não fossem de encontro ao pensamento da instituição patrocinadora. O TPS não cobrava ingresso e um dos seus objetivos era oferecer bons espetáculos para os trabalhadores da indústria, ampliando o seu público ao longo de sua existência e tornando-se uma referência para São Paulo. Sempre que uma peça estava em cartaz, filas enormes se formavam na porta do Teatro do SESI para trocar a filipeta distribuída ao longo da semana pelo ingresso do dia.

Os elencos do TPS tinham emprego garantido por muito tempo, já que as peças ficavam em cartaz durante anos. Na maioria das vezes, os atores eram aproveitados nos espetáculos seguintes, mantendo-se o contrato e a carteira assinada, fato que garantia os direitos trabalhistas e os reajustes salariais conforme as diretrizes do SESI.

Assim que passei a fazer parte da classe teatral paulistana, percebi que os espetáculos do TPS eram considerados “teatrão”, portanto conformados a uma estética “careta”. Os atores que contratados eram (des)qualificados de “funcionários de teatro”, gente conformada, sem grandes vôos artísticos. Essa atitude preconceituosa disseminada entre setores da classe teatral revelava a atitude preconceituosa de quem olha para o próprio umbigo, como se dele surgisse a única referência estética de qualidade. Muitas vezes ouvi críticas debochadas sobre aqueles que trabalhavam nas produções do TPS. Eu mesmo fui contaminado por essa atitude; deixei-me levar pelas idéias daqueles que não aceitavam a proposta estética de Osmar Rodrigues Cruz, até que fui indicado por Flávio Império para o elenco de A Falecida, de Nelson Rodrigues, encenação estreada em 1979. Confesso que a princípio me senti desconfortável, já que ia fazer parte dos “funcionários de teatro”.

Embora soubesse que aquela estrutura não preenchia a minha inquietação de artista, logo percebi que teria boas condições de trabalho e que podia aprender com um profissional que sabia muito bem o que queria dos seus atores. Osmar Rodrigues Cruz mostrou-se sempre conhecedor do palco e fazia o ator render, indicando-lhe tempos, ritmos e efeitos necessários para a cena. Além disso, eu podia contar com a genialidade de Flávio Império, artista que realizou para o TPS os mais belos e inteligentes cenários dos últimos anos de uma deslumbrante carreira. Portanto, busquei o que me interessava enquanto artista, além de saber que ganharia um bom salário, obtendo também assistência médica.

No mais, pela primeira vez participei de uma produção que estreava com tudo pronto. Nos quinze ensaios antes da estréia, o espetáculo estava no palco, com a iluminação, cenários e figurinos. Não faltava nada e o elenco sentia-se seguro para explorar as possibilidades dos elementos cênicos. Até aquela data, depois de onze anos de carreira, eu não passara por essa experiência. Em sua maioria, as produções não davam conta de todos os elementos do espetáculo, o que tornava o ensaio geral um sobressalto e a estréia um momento para além da tensão esperada.

Vi bons espetáculos dirigidos por Osmar Rodrigues Cruz: Caiu o Ministério, de França Júnior (1973), Leonor de Mendonça, de Gonçalves Dias (1974), O Poeta da Vila e Seus Amores, de Plínio Marcos (1977), Chiquinha Gonzaga, Ó Abre Alas, de Maria Adelaide Amaral (1983), O Rei do Riso, de Luiz Alberto de Abreu (1985), O Santo Milagroso, de Lauro César Muniz, Muito Barulho por Nada, de Shakespeare (1986). Esses espetáculos eram cercados de apuro técnico, acabamento e qualidade artística, comunicando-se com seu público e contribuindo para a formação de platéias. As montagens com elenco numeroso, contava sempre com nomes consagrados, intérpretes conhecidos que se encarregavam dos principais papéis e atores talentosos nos segundos e terceiros papéis.

Saí do Teatro Popular do SESI para fazer Geni (1980), um projeto de Marilena Ansaldi e José Possi Neto, mesmo sabendo que ator que saísse dos espetáculos do TPS antes do final do contrato dificilmente voltaria a trabalhar na instituição, visto que essa era a norma vigente. A inquietação e a promessa de um trabalho mais arrojado motivaram a minha decisão.

Para minha surpresa, em 1982, fui chamado por Osmar Rodrigues Cruz para fazer parte do elenco de Coitado de Isidoro, peça na qual faria o protagonista. Ao ler o texto – depois de ter a carteira de trabalho assinada – caí do cavalo. A comédia era muito ruim, um texto sem nenhum valor dramatúrgico, destinado ao núcleo do Teatro Popular do SESI em Santo André e para excursionar pelo interior. Acredito que o próprio Osmar sabia que o texto era ruim. E até hoje não sei quais os motivos que o levaram a encenar tal coisa. Mas a situação, embora incômoda para mim, foi se tornando mais favorável, já que aprendi com Osmar Rodrigues Cruz a fazer comédia, um gênero que eu recusava representar. Desde meu aprendizado na Escola de Teatro da Ufba, eu não me sentia capaz de fazer ri a mais benevolente platéia. O pavor do ridículo foi diminuindo à medida que Osmar dirigia a mim e aos meus companheiros de elenco. Mesmo assim, por várias vezes durante a temporada, fui acometido de pavor antes de entrar em cena. Mas acontecia algo mágico: o espetáculo era bem recebido pelo público que ria de tudo que os atores faziam em cena. E a bobagem, Coitado do Isidoro, funcionava às mil maravilhas e eu dava conta do recado, livre dos meus receios e solto em cena. Agradeço a Osmar Rodigues Cruz e a Fancisco Medeiros, seu assistente naquele período, a possibilidade de descobrir uma qualidade que eu não imagina ter como intérprete.

Para conhecer o trabalho de Osmar Rodrigues Cruz, dono de uma portentosa biblioteca, cujos livros sobre teatro enchiam a maior parte das estantes, eu recomendo a leitura de Osmar Rodrigues Cruz, Uma Vida no Teatro (Hucitec, 2001), de sua autoria juntamente com Eugênia Rodrigues Cruz, sua filha. Sobre a encenação de A Falecida, ver o livro de Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues, Dramaturgia e Encenações (Perspectiva, 1992).

Álbum de Família, a encenação de Paulo Henrique Alcântara, emoldurada operisticamente, revela um elenco de jovens atores que encerram um período do seu aprendizado para iniciar outro, o da vida profissional. Muito bem dirigidos pelo professor-diretor, o rendimento geral do elenco é notável, com destaque para alguns intérpretes, aqueles que conseguem se destacar sem que se perca o equilíbrio necessário para apreensão do todo. Creio que esse destaque deve-se ao fato desses alunos-atores compreenderem melhor o personagem, entregando–se aos esteios da concepção cênica e, sobretudo, por escutarem de forma sensível as sugestões do encenador e de Juliana Rangel encarregada da preparação vocal e corporal do elenco.

Contracenando com Vivianne Laerte, atriz convidada, os formandos do curso de Artes Cênicas da Faculdade Social– Alexandre Moreira, Andressa Manso, Iriane Santana, Isabella Gusmão, Mariana Brandão, Newton Olivieri, Pedro Augusto, Vagner Marques, Vanessa Meyer e Viviane Veiga – puderam aproveitar a experiência de uma atriz profissional, e isso se reflete em cena. Cena densa, superlativa, qualidade que o texto de Nelson Rodrigues explora ao limite da saturação e que Paulo Henrique Alcântara não ameniza, mas exacerba. A potência do texto de Nelson Rodrigues é escancarada pelo encenador sem nenhum pudor. O elenco, dentro de suas possibilidades, sustenta com segurança o clima pesado, fazendo a platéia reagir de maneira positiva. Não estivesse o elenco ciente da proposta de Paulo Henrique Alcântara o resultado poderia ser desastroso. O que não é. Recebe-se aquele mundo extremamente doente sem rejeição ao espetáculo. O riso aparece no momento certo, provocado pelas famosas frases do autor.

A opção do encenador deixa o espetáculo em um único tom, do início ao fim, quebrando-se a atmosfera grandiloqüente somente na cena de Glória e Teresa, quando o sopro do lirismo rebaixa o diapasão constante do espetáculo. Esse rebaixamento não quebra o ritmo, não afrouxa a tensão e inunda a cena de outra luminosidade. A encenação ganharia outras modulações se Paulo Henrique Alcântara dosasse a intensidade, sem deixar de seguir a sua opção pela impostação operística, um enquadramento coerente com o universo da peça, classificada por Sábato Magaldi como um das Peças Míticas. As outras são: Anjo Negro, Dorotéia e Senhora dos Afogados. Parece-me que o encenador se deixou levar pelas obsessões do autor, exacerbando um conteúdo já em si desmesuradamente arrebatado. Essa substância exposta de maneira tão chapada levou Sérgio Milliet (1) à seguinte conclusão: "Tão límpida é a casuística psicológica que, por vezes, sua literatura descamba para a ilustração psicanalítica e deixa de nos empolgar como obra-de-arte em si, que a arte não explica mas sugere, não resolve nem analisa problemas (o que cabe à ciência), mas aponta a sua inexorável existência".

O espetáculo mostra-se empostado como um ritual com tintas expressionistas, coerente também com a concepção que amarra o espetáculo. O cenário de Rodrigo Frota, muito bem concebido e adequado, os figurinos de Rino Carvalho, a trilha sonora de Luciano Bahia e principalmente as interpretações, definem a qualidade do espetáculo e são apreendidos pelo espectador como parte integrantes de um todo muito bem elaborado. Os elementos cenográficos, portas-altares, lembram também gavetas de cemitério, e baús, são signos fortes dimensionando o conteúdo do texto, embora a utilização dos baús seja tímida. O uso do espaço da sala do Teatro Vila Velha é bem realizado, expandindo-se a cena para além do palco italiano, lugar onde se concentra maior parte da ação. A luz, concebida com precisão por Fernanda Paquelet, colabora para a atmosfera trágica que a cena requer. Quanto aos figurinos, algumas objeções, visto que a idéia é boa, mas a realização fica a dever. Os figurinos dos personagens, Senhorinha (imensa calda do vestido), Guilherme (jaquetão com uma cruz nas costas), Glória (quando volta do internato) e Jonas, receberam um tratamento que se revela um equívoco. Isso não acontece com os demais, posto que foram concebidos e bem realizados, mostrando-se teatralmente fortes e ajudando os atores na composição de seus personagens e na movimentação em cena. Destaque para as roupas de Tia Rute, Heloísa, Teresa.

Os aspectos pontuados como negativos não desmerecem de nenhum modo a encenação. Produção cuidadosa, ofereceu condições para que o encenador realizasse no palco as imagens que concebeu a partir da leitura que fez do texto de Nelson Rodrigues. Paulo Alcântara soube construir uma forte e bela encenação, com momentos intensos e inesquecíveis. Os execessos não comprometem a organicidade da cena. Sem negar o autor escolhido, o encenador não fica subserviente ao texto. Revela sua paixão pelo autor, mas não se coloca timidamente diante do monumento que é o "Anjo Pornográfico". Ao mexer na estrutura da peça, ele ressalta pontos e com isso ganha fôlego. Encenação corajosa, desmesurada, não demonstra tibieza. Penso que os alunos-atores e Viviane Laerte saem enriquecidos dessa experiência. Não é sempre que intérpretes têm condições de fazer os personagens de uma peça como os de Álbum de Família, um aprendizado para qualquer ator/atriz. Infelizmente, ainda não chegamos ao ponto de poder encenar, profissionalmente, textos do calibre de Álbum de Família, mantendo-os em cena com a regularidade necessária para uma apreciação mais profunda do legado dos nossos dramaturgos e de sua adequação ao gosto das platéias. Platéias que podem fazer escolhas e não apenas aceitar o corriqueiro, o descartável, aquilo que não exija muito do seu tempo, de sua sensibilidade, do seu raciocínio. Uma temporada teatral não se faz apenas por um tipo de espetáculo, mas se sustenta e se afirma pela diversidade que não deve ser fruto da imposição mercadológica nem pela imposição do dirigismo cultural de minorias que se querem salvacionistas. A montagem de espetáculos de qualidade artística, cuja densidade dramática é ressaltada pela inventividade da encenação, termina por educar o público,torná-lo mais sensível e aberto para a densidade proporcionada por experiências que se afastam da mesmice.

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1 MILLIET, Sérgio. Álbum de Família. In: Magaldi, Sábato (org.) Nelson Rodrigues: teatro completo. Rio de Janeiro: Nova Auilar, 2003, p. 207-208.