segunda-feira, 2 de junho de 2008

Registro 138. Ao meu amigo Rubem Rocha Filho



Não estás aqui! A estranha bruxa da Memória vê
Em cadeiras vazias tua imagem ausente,
E aponta onde sentaste, onde agora deverias estar
Mas não estás.
Shelley


RUBEM ROCHA FILHO (1939-2008)

Toda a teatralidade cabe em uma voz

WILLIAN VIEIRA

Era um "tipo popular" no Nordeste o tal Rubem Rocha Filho. Quase todo pernambucano, em algum momento da vida, travou contato com ele -ao menos com sua "voz de teatro", que emprestava a filmes e peças, campanhas políticas e comerciais de TV. "Tinha o poder da palavra."

Havia até quem com ele aprendeu a ler, nos livros infantis como "Tilico no Meio da Rua". Por isso ligavam os fãs para o programa "Sexta Cultural", em que o autor batia papo com convidados; era para dar parabéns, prestar homenagem ou contar alguma grande história de vida.

A dele não era menor. Carioca formado em ciências sociais, foi logo fazer teatro, dizia, até com Cacilda Becker. Até aceitar o convite para dirigir no Teatro Popular do Nordeste, em 1968. Fez mestrado nos Estados Unidos, doutorado na Inglaterra e, após uma década de 70 à inglesa, escrevendo programas para a BBC de Londres, voltou a Pernambuco.

Dirigiu peças como "O Anjo Azul", atuou em filmes como "Baile Perfumado" e se entregou à "Paixão de Cristo", evento teatral de Nova Jerusalém (PE) -"o maior espetáculo da terra, no maior teatro ao ar livre do mundo". Mas Rocha Filho temia a velhice. Há três anos, após ser premiado em um concurso sobre maturidade, enxotou o discurso da melhor idade. "Só temos medos: solidão, doença, abandono". Morreu quarta, aos 68, de falência múltipla dos órgãos. Solteiro, não tinha filhos.
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Folha de S. Paulo, 2 de junho de 2008.

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Parem os relógios
Cortem o telefone
Impeçam o cão de latir
Silenciem os pianos e com um toque de tambor tragam o caixão
Venham os pranteadores
Voem em círculos os aviões escrevendo no céu a mensagem:
"Ele está morto"

Ponham laços nos pescoços brancos das pombas
Usem os policiais luvas pretas de algodão.

Ele era meu norte, meu sul, meu leste e oeste.
Minha semana de trabalho e meu domingo
Meu meio-dia, minha meia-noite.
Minha conversa, minha canção.

Pensei que o amor fosse eterno, enganei-me.
As estrelas são indesejadas agora, dispensem todas.

Embrulhem a lua e desmantelem o sol
Despejem o oceano e varram o bosque
Pois nada mais agora pode servir.

W.H. Auden

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Registro 137: + Bernardo Linhares

O sol

Ao Poeta Ruy Espinheira Filho

Depois da noite em chamas,
cantando nas espumas,
o mar ainda é rubro
ouriçado de escamas.

Feito uma concha, rosa
secreta sob as ondas,
a lua fecha os olhos
e oculta a própria sombra.

No céu surge outra chama
na chama vários tons
nos tons todas as gamas.

O sol, concha amarela,
transforma a aurora escura
num céu de madrepérola.

Lua

Para Renata Belmonte

Onde o limite é o amor,
o céu espelha
um mar de estrelas.
O fogo todo é cor de rosa.
O cinza, sereno violeta.
Feita perfeita para o gozo,
voa no céu a borboleta.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Regsitro 136: Idéario contracultural

ECOS DE 68
A IMAGINAÇÃO NO PODER

Raimundo Matos de Leão

Loucos, desbundados, beatiniks, rebeldes, revolucionários e todos os que “velam pela alegria do mundo”, quarenta anos vos contemplam! Ainda que esse tempo seja relativamente curto, o passado recente está pleno de significados, de utopias não realizadas, de sonhos postergados, de idéias e desafios hoje institucionalizados pela política da globalização, pelo projeto neoliberal e pela expansão da indústria cultural. Esse “tempo de agora”, ditado pela lógica do mercado, carece de novos reptos. E mesmo que venham a ser capturados, como foram os desafios vanguardistas que irromperam durante os anos 60 e 70, tais estímulos podem escapulir “como ratos do museu”, o que torna sua luta se não vitoriosa, pelo menos útil, como indica Edoardo Sanguineti (2000). Por conseguinte, o confronto entre os novos valores, paradigmas e propostas e os valores estabelecidos é permanente, mesmo que se dê a absorção do novo por parte do sistema. Isso não impede comportamentos desviantes da norma reguladora. Os desvios provocam rupturas.
Essa dinâmica insufla o artista, e não somente ele, no seu inconformismo, mesmo que a voracidade da indústria do entretenimento seja imensa e, de certa forma, negativa para o ato criador. Portanto, um choque de contracultura não traria nenhum prejuízo aos artistas pressionados pelo capital que os obriga a viver entre “o oportunismo e a resistência, entre o utilitarismo burguês e a efetiva dedicação à poesia”, como expõe Leandro Konder em Walter Benjamin, o marxismo da melancolia (1999).
As idéias da contracultura surgem nos Estados Unidos, mas não se restringem ao universo norte-americano, como alguns fazem crer. O movimento configura-se como uma força marcadamente conflitante com o status quo, inconformado com a institucionalização da vida, invadindo fronteiras. Considerada como uma “invasão bárbara”, o ideário contracultural avança contra os valores que sustentam a sociedade mundializada pós-Segunda Guerra, notadamente aquela que vive a política da segurança, conseqüência da Guerra Fria. Ao extrapolar as fronteiras do sítio onde brota, transcultura-se, contagiando setores da juventude em diversas paragens; juventude militante, que por volta do final da década de cinqüenta e mais precisamente nas décadas de 60 e 70 preparam “com amor no coração” a invasão, fustigando os “grossos portões” do establishment.
Iniciada desde a geração beat, as idéias da contracultura contaminam boa parte da juventude no Brasil. Insatisfeitos, os jovens, e não só eles, voltam-se contra a cultura burguesa assentada na superficialidade de uma vida medíocre, em cuja base está o consumo como uma razão da existência. Nos seus desdobramentos e operando com as idéias de Herbert Marcuse, Norman Brown, entre outros, o movimento contraculturalista politiza-se, fortalecido pelos acontecimentos de Maio de 68 na França, quando os estudantes levantam barricadas, decididos a revolucionar as estruturas de poder, tanto nos sistemas de direita quanto de esquerda. Os slogans “É proibido proibir” e “A imaginação no poder”, são pichados nos muros de Paris, alimentando o real e o imaginário dos sujeitos que se articulam sob uma nova subjetividade. Nota-se no interior do movimento a presença das teorias desenvolvidas pelos intelectuais da Escola de Frankfurt. No Brasil, as manifestações de pensamento, sejam elas estéticas, filosófica, sociológicas e antropológicas, vão estar coloridas pelos diversos matizes das reflexões dos frankfurtianos.
Na polifonia da cena, vê-se também o pensamento de Georg Lukács a ancorar o discurso dos que pensam forma e conteúdo na arte sob a chave de que a manifestação artística é apenas um reflexo da realidade. Para os que enveredam nas trilhas da contracultura e procuram responder aos limites impostos pelo sistema, o lume para suas reflexões estético-culturais está, como disse anteriormente, em Marcuse, Benjamin, Horkheimer e Adorno, não se restringindo a esses nomes. Esse corpo de pensadores, vai dar estofo para as posições que transitam entre a crítica à racionalidade e a negação da desrazão, à noção de individuo e sua autonomia, distanciando-o das “teorias que se aliam a uma técnica totalitária e da conservação do poder”, como escreve Olgária Matos em A escola de Frankfurt, luzes e sombras do iluminismo (2005). Entre nós, Luiz Carlos Maciel, distingue-se entre os que escrevem e defendem a mudança dos velhos hábitos e posturas, tornando-se um propagador do pensamento contraculturalista.
Vista também como “a invasão dos centauros” a escalar os sustentáculos do sistema, a contracultura configura-se como imagens de conquistadores enfurecidos em luta “contra as festividades civilizadas em andamento”, conforme Theodore Roszak (1972). Seus postulados colocam em questão a ortodoxia tecnocrata. Investe contra os planos da direita e os da esquerda, em um fluxo que reclama o afastamento das gerações passadas, mesmo que não se saiba onde chegar. No entanto, seu inconformismo não revela inconsciência, nem alienação. A postura negativa com relação aos ditames da ordem social tecnocrata é reveladora da politização dos segmentos da classe média, notadamente dos jovens, atentos que estão para a seguinte premissa: “qualquer que seja o custo para a causa ou a doutrina, é preciso atentar à singularidade e à dignidade de cada indivíduo e ceder àquilo que a consciência exige no momento existencial” (Roszak). Essa premissa, se não congrega tudo e todos, aponta para o entendimento entre segmentos ativistas e a juventude mais afinada com a filosofia hippie, congregada em torno do lema “Paz e Amor”.
Ao dizer sobre esse estado de comunhão, não se afirma que o movimento contracultural instaurou a confraternização universal. O sistema soube atacar as suas contradições e se apropriar dos elementos contestatórios para manipulá-los a seu favor. Os impasses e as contradições mostram a fragilidade das investidas contraculturais, muito mais que a rigidez ortodoxa do pensamento ocidental sustentou a ação revolucionária das décadas anteriores. Nas batalhas por resolver os problemas decorrentes das injustiças sociais e dar corpo a toda as exteriorizações da vida psíquica, surgem demandas no interior da vanguarda que a contracultura instala. Os dilemas enfrentados por esses segmentos dão margem a que seus críticos se lhe oponham, condenando-os ou simplesmente negando-os, ao tipificar suas manifestações como vazias, alienadas e alienantes. Esse novo modo de viver surpreende por colocar em risco o mundo disciplinado que a juventude naquele momento contesta. Por esse motivo é desqualificado e reprimido.
Ao rejeitar todo um arcabouço de idéias que mantém os pilares da sociedade massificada, os grupos no centro desse arco multicor que é a contracultura persistem firmemente sustentados por um desejo de viver o presente, diluindo-se a noção de futuro como promessa. Intentam práticas sociais alternativas sustentadas pelo discurso e pela ação que propõem um radical afastamento da racionalidade determinada pelo autoritarismo. Nesse arcabouço promove-se “uma base cultural para a comunidade, novos padrões familiares, novos costumes sexuais, novas maneiras de ganhar a vida, novas formas estéticas e novas identidades pessoais no lado oculto da política de poder, no lar burguês e na sociedade de consumo” como atesta Roszak.
No interior da contracultura cria-se um quadro matizado de oposição aos regimes tecnocratas e totalitários, ao pensamento cientificista – uma quase religião –, ao entendimento da política como abstração. Afirmam-se premissas que abarcam discussões e vivências a respeito de aspectos abrangentes da existência. Contesta-se a noção de progresso, aquela que se compraz em avançar sobre os destroços causados pela ação dos vencedores ou pela acumulação quantitativa, como nos lembra Benjamin (1994), ao se posicionar contra “a obtusa fé no progresso”, ideologia que irmana opostos: conservadores e progressistas – iludidos que são pela crença no ideal progressista – pensam que a humanidade avança para além barbárie. Os contraculturalista prefiguram o ideal comunitário e a democratização da vida. Em sua rebeldia, desenham o estado de exceção compreendido pela via positiva, contrário ao estado supressor das liberdades democráticas imposto, por exemplo, pelo governo civil-militar entre nós. No período de sua existência, a contracultura se firma e se propaga no Brasil, mas não como uma decorrência circunstancial, fruto das redes ditatoriais que controlam o País nos idos de sessenta e setenta. Essa visão que toma a contracultura como resultante da circunstância nega a sua força subversiva não apenas nos trópicos, mas em todos os sítios onde os jovens se posicionam contra. Apesar do regime ditatorial, o desbunde desmontou o discurso fechado. “Pelas brechas, pelas rachas” (Torquato Neto) desviou-nos da caretice reinante. Agora, diante das imposições do mercado, do atrelamento da cultura às normas econômicas, da passividade social e do individualismo exacerbado, resta apelar para a redenção messiânica, a iluminação profana, nos termos propostos por Walter Benjamin. A redenção poderá nos devolver o que nos foi e é retirado brutalmente.
Concluindo, toma-se de Olgária Matos o seguinte trecho: “Para reconhecer o instante (...) da revolução, para reconhecer os sinais anunciadores do futuro, necessita-se de ‘presença de espírito’, tal como Benjamin o diz. E este é ‘corpórea presença de espírito’, é sensorial e sensual”. Essa presença de espírito insufla a imaginação, intensifica os poderes de Eros contra Thanatos e fortalece o sujeito em sua luta contra a razão instrumental. Então, o sensível contido na arte se apresenta como uma saída contra o barbarismo. Ações inspiradas de contracultura talvez nos livrem do neoconservadorismo infiltrado nas instituições e na vida, nos alertem contra o que há de falso no discurso progressista. Portanto, a contracultura continua imprescindível na pós-modernidade, não como repetição, mas como inquietação no presente. Memória ativa que transforma o presente.
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O texto foi publicado originalmente no suplemento Cultural do jornal A Tarde, Salvador - Bahia, em 17 de maio de 2008, pp.8-9

Registro 135: Carolina chegou por e-mail

Carolina

Bernardo Linhares

São rosas na bruma
buquê de gaivotas
por cima das águas
bordadas de espumas.

Com linha da costa
de seda tão pura
costuro tua moda
na vela do barco.

Ternura mais funda
os fios da corrente
revelam teus laços...

Cortando o silêncio,
um amor imenso
navega no vento.

sábado, 8 de março de 2008

Registro 134: Homegam a Dona Aracy

Conheci dona Aracy em casa de Dr. Edu e dona Bia, levado por um amigo da família e também por um dos filhos, o saudoso Plínio de Carvalho Tess. Convivi com os Tess por pouco tempo, mas durante o curto período, percebi ser um clã especial. Tenho gratas recordações do acolhimento, da gentileza e do carinho que me devotaram. Dos Tess, recebi, entre outras coisas, a obra completa de Guimarães Rosa, um presente inestimável. De dona Aracy , eu ganhei um autógrafo no exemplar de Grande Sertão.
Reproduzo o texto de Fabiana Canosa aproveitando-o para homenagear a mulheres no Dia Internacional dedicado a elas. Esclareço que a homenagem se estende a todos os dias, porque as mulheres, como os homens, as crianças, os índios, os pais, as mães, os negros, não precisam de uma data especial para homenageá-los.
Que o exemplo de dona Aracy cale fundo em todos que desejam um mundo justo, sem preconceitos. Que possamos todos respeitar as diferenças étnicas, religiosas, sexuais, culturais. Dizer não ao estado de violência diariamente é a condição para amenizá-la ou, quem sabe, exterminá-la da face da terra.
Raimundo
A MULHER QUE DRIBLOU O NAZISMO
Fabiana Caso

Em plena era nazista, imagine uma mulher linda, de tipo físico latino, com forte apelo sensual, que passava zunindo em seu veículo pelas ruas de Hamburgo, na Alemanha. Os guardas paravam o carro, mas ficavam boquiabertos com a figura altiva que saía de dentro dele, falando um alemão perfeito e sem sotaque. Inertes, constatavam, então, que ela era funcionária consular, com imunidade garantida. Mal sabiam que, por vezes, ela transportava judeus - para os quais conseguia vistos de entrada no Brasil e até mesmo o navio em que embarcariam.
Não bastassem essas proezas, Aracy de Carvalho foi casada com um dos maiores escritores brasileiros: João Guimarães Rosa. No próximo mês, ela completa 100 anos de vida - assim como faria o escritor. Mora na capital paulista com seu filho, o advogado especializado em Direito Corporativo e Internacional, Eduardo Carvalho Tess, e a nora Beatriz Carvalho Tess. Tem quatro netos e oito bisnetos.
Até os 90 anos, ela morava sozinha no apartamento que dividiu com o marido no Rio de Janeiro, mas, há cerca de sete anos, sofre do Mal de Alzheimer. Por uma ironia do destino, alguém com tanto para contar já não fala, não anda e reconhece o filho apenas algumas vezes. Mas sua memória ficará viva: no momento, duas pesquisadoras estão finalizando uma biografia que vai contar a fascinante história de dona Aracy, enquanto outras brasileiras estão executando pesquisas na Alemanha para um documentário sobre o tema.
Pioneira em todos os aspectos, Aracy é filha de mãe alemã e pai brasileiro. Nasceu em Rio Negro, no Paraná, mas se criou em São Paulo. Como as moças da época, casou-se cedo, com o alemão Johannes Edward Ludwig Tess, com quem teve o filho Eduardo. Mas, insatisfeita, optou pelo desquite e emigrou para a Alemanha. “Um dos motivos foi o clima não muito favorável para uma mulher desquitada no Brasil”, conta o filho Eduardo. “Meu pai era alemão, um tipo nórdico, e minha mãe tinha personalidade muito latina.”
Com o filho de 5 anos, ela aportou na Alemanha em 1934 e foi morar com uma tia em Hamburgo. Como falava fluentemente alemão, francês e inglês, conseguiu um emprego como chefe de vistos no Consulado do Brasil naquela cidade. Logo o regime nazista e a perseguição aos judeus passaram a revoltar Aracy, especialmente depois da chamada Noite dos Cristais - um atentado às sinagogas, comércios e aos próprios judeus, em 1938. Eduardo lembra de ter visto as vidraças quebradas do comércio judaico.
Foi no Consulado que Aracy conheceu o então diplomata João Guimarães Rosa, que tinha o cargo de vice-cônsul. Na época, a Alemanha vivia um racionamento de comida e, aos semitas, era dada uma quantidade menor de alimentos. Aracy passou a alimentá-los com a cota extra que recebia no Consulado: ia de casa em casa distribuindo comida. Dizem que Guimarães Rosa a acompanhava nessas distribuições, mesmo morrendo de medo pelo que poderia acontecer com sua mulher.
Ela foi bem mais longe. Como a entrada dos judeus estava proibida no Brasil pelas leis do Estado Novo, conseguiu vistos para cerca de 100 famílias, segundo as contas de seu filho. A partir de 1937, obtinha atestados de residência para os judeus em Hamburgo e, assim, conseguia a emissão de passaportes sem o J de identificação. Colocava-os em meio à papelada para o cônsul assinar, sem levantar suspeitas.
Eduardo era pequeno na época e, por questões de segurança, foi enviado de volta para morar com a avó em São Paulo - o próprio governo alemão começou a evacuar as crianças por causa dos bombardeios. Mas, segundo contaram ao filho, nessa bonita missão protetora, sua mãe teve o auxílio de um instrutor da auto-escola onde aprendeu a dirigir, que também era policial. “Dizem que era ele que conseguia os atestados de residência em Hamburgo.” Em uma das homenagens a ela, Aracy disse que fez tudo isso “simplesmente porque somos todos irmãos”, lembram Eduardo e Beatriz. “Ela era guerreira e corajosa, sabia se posicionar”, resume seu filho.
RELATO
Uma das pessoas salvas por dona Aracy também vai completar 100 anos em novembro. Ela se chama Maria Margareth Bertel Levy (depois que seu nome polonês foi trocado no passaporte) e hoje vive no mesmo bairro que dona Aracy. Lúcida e meiga, fala com carinho sobre a benfeitora, de quem acabou se tornando uma amiga para toda a vida. “Fui pedir um visto para entrar no Brasil no Consulado e conheci Aracy. Foi amor à primeira vista.”
Naquela época, em Hamburgo, o marido de Margareth estava escondido em um lugar que apenas ela sabia. No dia em que ele deveria embarcar no navio, Aracy deixou o seu carro com placa consular na porta do prédio de Margareth, para ela ir pegá-lo, caso houvesse qualquer imprevisto. “Ela guardou minhas jóias em sua casa e nos acompanhou até o camarote do navio. Lá, escondeu o saquinho com as jóias na descarga do banheiro. E só desceu quando já estavam retirando a ponte”, lembra. Margareth conseguiu retomar o contato com Aracy porque tinha o endereço da mãe dela, Sida Mobius de Carvalho (que faleceu aos 104 anos).
Entusiasmada, a amiga lembra de outra família “salva”, que não falava uma palavra sequer de português. “Quando foram embarcar para o Brasil, Aracy deu a eles o endereço da tia dela em São Paulo, que falava alemão. Acho que ficaram até devendo dinheiro para ela”, fala. “Ela era um anjo. Uma mulher linda e sensual que só queria fazer o bem para as pessoas em apuros.” Depois de décadas trabalhando com o marido, que era dentista, Margareth ficou viúva há cerca de 20 anos. Não tem filhos, mas a família de Aracy continua cuidando dela até hoje: Eduardo e Beatriz fazem visitas diárias.
Pelo seu feito, Aracy é a única mulher brasileira que tem o nome no Museu do Holocausto, em Jerusalém. Lá, há uma árvore plantada em sua homenagem no chamado Jardim dos Justos, onde são citados outros protetores famosos, como Oskar Schindler. O rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP), Michel Schlesinger, que esteve no Museu há pouco tempo, comenta: “Aracy foi uma dessas pessoas que não silenciaram diante do regime nazista, que sentiram que tinham uma missão e colocaram a própria segurança em segundo lugar para que os semitas fossem salvos. É admirável, porque ignorou a proibição. A coisa mais fácil era deixar passar.”
AMOR NA TERRA NATAL
Aracy voltou ao Brasil com Guimarães Rosa em 1942, depois de um tempo em Baden Baden, onde viveram com as porções racionadas de comida e sem calefação. Casaram-se por procuração no México - as leis brasileiras não permitiam o casamento de dois desquitados. Em terra natal, Aracy abriu mão da carreira diplomática por causa do amor a seu Joãozinho, apelido carinhoso pelo qual chamava o escritor. Era proibido que duas pessoas casadas trabalhassem na mesma embaixada.
Depois do período em que o escritor trabalhou na embaixada de Bogotá, na Colômbia, os dois foram para o Rio de Janeiro, onde passaram a maior parte da vida, rodeados por muitos cachorros e gatos. A família conta que Aracy ficava sentada ao lado de Guimarães enquanto ele escrevia - invariavelmente, lia trechos para ela. “Minha mãe dava palpites e sugestões”, diz Eduardo. Não foi à toa que ele deu Grande Sertão: Veredas para a mulher, com a seguinte frase: “À Ara - minha mulher, muito amada, minha companheira para sempre - com a vida e o carinho do seu Joãozinho”.
Nos anos sombrios da ditadura militar, Aracy voltou a praticar sua solidariedade. Com Guimarães, ajudou o amigo do casal Franklin de Oliveira a se exilar. Já viúva, ficou sabendo que o compositor Geraldo Vandré estava sendo procurado e o escondeu em seu apartamento por quase três meses. Eduardo lembra dessa época. “Tínhamos medo de que as crianças acabassem entregando.” Vandré ainda ficou escondido na casa da mãe de Aracy, Syda, em São Paulo, antes de cruzar fronteiras.
A linda história de Aracy encantou a então pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP), Neuma Cavalcante. Ela era responsável pelo acervo de Guimarães Rosa, mas ficou intrigada com essa mulher, para quem tinha dado o livro Grande Sertão: Veredas. Quando descobriu que protegera os judeus no nazismo, resolveu escrever uma biografia sua, juntamente com a professora licenciada da USP, Elza Mine. “Quando Grande Sertão foi traduzido para o francês, Guimarães escreveu para o tradutor, dizendo que não tinha dedicado o livro, mas dado para Aracy.”
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Publicado originalmente pelo jornal O Estado de S. Paulo, 02 de março de 2008.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Registro 133: 1808 E O TEATRO BRASILEIRO

A FAMÍLIA REAL ABRE AS CORTINAS DO ESPETÁCULO TEATRAL NO PAÍS

Raimundo Matos de Leão

Doutor e Mestre em Artes Cênicas – UFBA. Escritor, coordenador e professor do Curso de Artes Cênicas da Faculdade Social.

Comemorações de efemérides históricas tornam-se momentos para se rever à luz dos atuais estudos historiográficos as ocorrências positivas e negativas dos acontecimentos passados, retirando-os do continuum para salvá-los da petrificação. Faz-se um movimento em torno da chegada da corte portuguesa ao Brasil em 1808: publicações, eventos e muita polêmica vão marcar o aniversário de 200 anos da chegada de dom João 6º aos trópicos. Primeiramente na Bahia, onde aportou em 22 de janeiro e permanecendo em Salvador até 26 de fevereiro, depois a corte segue para o Rio de Janeiro, capital da colônia, cidade que vai beneficiar-se com a chegada dos portugueses, passando em seguida ao estatuto de metrópole do Vice-Reino de Portugal e Algarves.
Além do que a farta documentação nos legou, pode-se imaginar o efeito causado pela presença da corte, tanto na Bahia quanto no Rio de Janeiro: certamente um reboliço no real e no imaginário dos sujeitos que presenciaram tal acontecimento.
Informe-se que a esquadra que adentrou a Baía de Todos os Santos estava incompleta devido à tempestade, mas uma das três naus que aportaram em suas águas trazia o regente, fato que propiciou a realização de festejos religiosos e comemorações em torno da figura do príncipe. Até aí, nenhuma novidade; fazer festas religiosas espetaculares, mescladas de elementos profanos, traço identitário do “catolicismo teatral”, é uma prática que o século XIX não deixará de cultivar, embora julgada pela aristocracia como manifestação do “populacho”, por isso de mau gosto.

As manifestações teatrais no Brasil, nos três primeiros séculos da colonização, estão marcadas pela hibridização de elementos da liturgia católica, legado da tradição portuguesa, das festas indígenas e da cultura africana transculturada. O conjunto dessas expressões sustenta essa trajetória irregular do teatro, até que se definam as linhas estruturantes do fenômeno entre nós.

No Rio de Janeiro, local escolhido para sediar a corte lusitana, além das festividades, a permanência da nobreza acarretou a desocupação de residências para dar abrigo aos europeus que chegavam. Em função da corte, os espaços públicos e privados deixam-se contaminar pelos modos do viver europeu, modificando-se o cenário social da cidade balneária. Como parte da corte absolutista e parasitaria, os nobres instalados no Rio de Janeiro vão transformá-lo, com seus hábitos e costumes, numa cidade portuguesa. Essa transformação na paisagem humana logo vai ser assumida pela população local, criando-se todo um aparato normativo que passa a reger as relações em sociedade. Para o bem ou para o mal, o brasileiro entra em uma nova ordem impulsionada pela abertura dos portos às nações amigas, intensificando-se com isso o processo de transculturação, em marcha desde os primórdios coloniais. É bem verdade que a abertura não se deu por completa, visto que normas restritivas impediram o acesso de algumas nações aos portos brasileiros, dando-se a primazia à Inglaterra.

O teatro brasileiro não ficou incólume a essa reviravolta. Os nossos antepassados do século XIX vão tomar conhecimento da estruturação definidora da tríade que constitui o fenômeno teatral - intérpretes, público e dramaturgos – já que a atividade teatral nos séculos anteriores, ainda que existente, carecia dessa triangulação basilar colocada em prática de forma incipiente. Tal afirmativa não apaga a contribuição daqueles que aturam no que compreendemos como a pré-história do teatro no Brasil.

A configuração triádica mostra-se de maneira mais autônoma a partir do momento em que o teatro sofre os eflúvios do romantismo. Entre os anos de 1836 e 1938, o teatro romântico aparece nas ribaltas dos centros mais desenvolvidos do país. Toma-se esse período como o da fundação do teatro nacional. No entanto, as alterações no panorama teatral vão se dar desde o ancoramento da corte joanina no Rio de Janeiro.
Data dos anos oitocentos a construção de diversas casas de espetáculos não apenas no Rio de Janeiro, mas em outras províncias, fenômeno indicativo de que a prática teatral requeria um lugar para ser vista. É seguro dizer que 33 teatros foram inaugurados entre os anos de 1812 e 1895, do Norte ao Sul do território nacional.

Salvador vê surgir na encosta da Montanha o Teatro São João, inaugurado no aniversário do príncipe regente (13 de maio de 1812), constituindo-se em um espaço com 340 cadeiras nos camarotes, 300 cadeiras na platéia e 400 nas torrinhas, lugares mais altos e reservados aos de pouco poder aquisitivo. Nessa configuração espacial pode-se ler de que maneira hierarquizavam-se as relações de classe.

Sobre a construção do Teatro São João, Affonso Ruy esclarece em sua História do Teatro na Bahia (1959), que ao chegar o príncipe em Salvador, as obras tinham sido iniciadas, sendo seus alicerces fruto do trabalho dos africanos presos quando do levante da nação hauçá em 1807.

A partir de sua inauguração, o Teatro São João torna-se o lugar de encontro da sociedade baiana, que não soube ou não quis conservá-lo como documento vivo de um tempo que se quer perdido. Diversos fatores podem ser enumerados para justificar o descaso com relação a esse bem público que transitou por mãos privadas, acabando-se pelo fogo nos idos de junho de 1923.

Em sua monografia histórico-analítica, O Theatro na Bahia – Da colônia à República: 1800-1923, Sílio Boccanera Júnior informa que a construção, com alguns defeitos, mostrava-se ricamente ornamentada e sua acústica tecnicamente bem realizada.

O “soteropolitano” Teatro São João não foi construído por decreto do príncipe regente, mas em 1810, desejando doar ao Rio de Janeiro de um teatro a altura de sua presença na cidade, dom João determina que se construa tal espaço, o que leva Décio de Almeida Prado a afirmar: “não se compreendia, obviamente, casa real sem seu respectivo palco, traço de união – e às vezes de desunião – entre poder e povo”.

Coube ao cabeleireiro do regente, Fernando José de Almeida, a incumbência de construir o Teatro São João, contando para isso com benefícios da coroa, sem que essa assumisse de fato a responsabilidade pelo empreendimento. Inaugurado o teatro em 1813, esse espaço reservado à representação recebeu outros nomes, em função das mudanças no cenário político. Quando da proclamação da Independência foi renomeado, passando a se chamar Teatro São Pedro de Alcântara, uma referência a dom Pedro I.

Com a vitória das forças liberais em 1831, passou a se chamar Teatro Constitucional. Altera-se o nome do Teatro ao sabor dos ventos da política, um procedimento ainda em voga quando as autoridades que usam do poder para tais determinações, e arbitrariamente mudam o nome de bens públicos. Mais tarde, o espaço recebeu o nome de João Caetano, uma merecida homenagem ao nosso primeiro intérprete, ainda que se verifique o seu descuido em fomentar a dramaturgia nacional.

A iniciativa do príncipe regente estimula portugueses e brasileiros a freqüentar as casas de espetáculo, movendo-se por necessidade de diversão, por sofisticação – o lugar público torna-se palco de exibição – por vontade de apreciar o espetáculo do ponto de vista cultural e artístico, ou por sentirem-se importantes na companhia do governante. Galante de Souza comenta sobre o hábito das famílias irem ao teatro para se mostrarem visíveis ao olhar do outro, e assim “fazer-se passar por pessoas de destaque (...), e o encantamento, que condenara as senhoras brasileiras à reclusão do lar, quebrou-se”. A necessidade pela visibilidade parece-nos ainda um motivo para que a elite vá ao teatro.

Construído o Teatro São João, tornou-se necessária a presença de artistas para animá-lo, cabendo as renomadas companhias portuguesas o privilégio de ocupar a cena. Cria-se com isso mais um laço de influência, como outros que ligam Portugal ao Brasil. O teatro que se faz no Brasil desde a presença de dom João no Rio de Janeiro é essencialmente português. Coube a companhia da atriz portuguesa Maria Torres a função de inaugurar o Teatro São João. Esse trânsito faz com que muitos dos intérpretes portugueses permaneçam no Brasil, determinando não somente o repertório de textos lusitanos e peças francesas traduzidas, mas a maneira de representar, principalmente no que concerne a prosódia. A esses elencos portugueses agregam-se atores brasileiros, estabelecendo-se então os elementos necessários para formação dos segundos pelos primeiros. Essa prática permanecerá aferrada aos palcos brasileiros até o surgimento de João Caetano, por volta de 1833, reivindicando apoio do poder público para o teatro nacional, contribuindo para a profissionalização e, sobretudo, refletindo sobre sua prática no palco, fornecendo subsídios necessários para a autonomia do ator brasileiro, elevando-lhe o status. Marcadamente nacionalista nas suas proposições, João Caetano não esquece a contribuição dos atores e atrizes portugueses na estruturação de uma prática de representar e de escrever para a cena.

Destacados os aspectos dominantes neste brevíssimo painel sobre o teatro brasileiro ao findar o período colonial, concluímos que a arte teatral – nesse momento inaugural da identidade do Brasil como nação –, vai sofrer as influências das matrizes portuguesas, vai receber os influxos diretivos da Missão Artística Francesa. Essa intervenção vai contribuir para o salto qualitativo que se percebe ao longo do século XIX, quando a produção visível no palco será apreciada e debatida pelos artistas e intelectuais, de maneira elogiosa e contributiva para o fortalecimento do espetáculo. O reverso da moeda revela também as posturas preconceituosas e excludentes que cercaram as avaliações sobre o teatro que se fez no decorrer do século.

Vale acrescentar que a instauração de uma nova prática artística, desde a chegada da família real e sua corte no Brasil, não pode ser louvada sem que se faça uma crítica aos estrangulamentos causados por esse processo modernizador imposto de cima para baixo. Olhando-se atentamente para o período anterior ver-se-á que a colônia possuía artistas de incontestável valor: poetas, músicos, escultores e pintores que se vêem relegados a segundo plano, tal a mentalidade impositiva do novo modelo estético que se quer para o lugar que abriga a corte.
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Publicado originalmente, com modificações, pelo jornal A Tarde, Cultural, 12 de janeiro de 2008, pp.4-5.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Registro 133 A: Iluminação Natalina

Folheando os jornais do dia, eu encontrei o texto se Guilherme Wisnik (Folha de S. Paulo, Ilustrda, 24 de dezembro de 2007). Resolvi publicá-lo no Cenadiária por ser aquele que me diz mais sobre a iluminação natalina. Sua reflexão foge da mesmice que cerca a maioria do que se escreve sobre o Natal. O processo de iluminação, segundo a sua ótica, é difícil de ser vivido, de ser atingido em sua plenitude. Mas vale a pena tentar... cada um que encontre os caminhos para atingir esse estado diante do indizível. Mas que esse caminho nos afaste das trilhas do fundamentalismo, seja ele qual for.
Iluminação genital

Guilherme Wisnik

NAS PÁGINAS do Apocalipse, são João tem a visão de uma ordem divina que sobrevém ao Juízo Final. É a Nova Jerusalém, descrita como uma cidade quadrada, com doze portas, e cuja praça é "de ouro puro, como vidro transparente". Uma cidade que, no dizer do evangelista, não necessitava mais de Sol nem de Lua, "porque a glória de Deus a tem iluminado, e o Cordeiro (Jesus) é a sua lâmpada".

Considera-se que o primeiro emprego mais extensivo do vidro, na história da construção, data do século 12, com os vitrais das catedrais góticas. Em grande parte, dada à vontade de que estas pudessem equiparar-se simbolicamente à imagem diáfana da Nova Jerusalém descrita por são João Batista, na qual o ouro coincide com o cristal, e o brilho reluzente é sinônimo de transparência (significativamente, quase todas as catedrais trazem representações do Apocalipse em suas portas).

Avanço técnico surpreendente numa época ainda conservadora, em que o horizonte humano se estreitava com a possibilidade iminente do final dos tempos. Daí que a idéia de uma luz que vem do alto se mantenha, ainda hoje, ligada à dimensão da transcendência, mesmo em um tempo em que a desmaterializada fachada de vidro se tornou o símbolo do "esclarecimento", isto é, das "luzes" da razão.

Certa vez um aluno, numa aula minha, querendo referir-se à luz zenital de uma construção (que entra pela cobertura, através de clarabóias), confundiu-se e falou em "iluminação genital". Ato falho que é um verdadeiro achado, já que a abertura vaginal é a primeira luz que "vemos" na vida. E, convenhamos, ela está no zênite do percurso do bebê em sua travessia pelo canal de parto, ao final do qual considera-se que a criança foi literalmente dada à luz.

Ao nascer, chegamos ao céu. Que é, por sua vez, a terra. Assim, as "partes baixas" sobem para o zênite, e eu diria que esse aluno teve, naquele momento, uma súbita iluminação: a vagina como uma Novíssima Jerusalém. Imagino que Freud gostaria da associação, particularmente sugestiva no dia de Natal. Em vez de representar uma dimensão inacessível do mundo (sobrenatural, platônica), essa luz nada mais é do que o próprio mundo no qual entramos.

Por outro lado, esse encontro com a luz é, agora, uma experiência ao mesmo tempo sublime e traumática. Pensemos, por exemplo, na dificuldade do Menino Jesus em romper aquele umbral virginal. Terá visto uma luz mais mortiça e bruxuleante do que nós? Mesmo sendo ele a "lâmpada" dos homens, não foi dispensado de ver, um dia, essa luz no fim do túnel como uma espécie de "Juízo Inicial": o momento em que o feto se individua, passando a ter uma bagagem própria e totalmente intransferível.

É freqüente a associação entre o espaço da igreja e o ventre materno, o conforto uterino. Pois o interior em penumbra da igreja, todo envolto em mistério, é sempre vedado à vista desde o exterior, ficando protegido por um anteparo situado em frente à porta, como um hímen. Reservadas, elas são como virgens guardando-se para aquilo que virá depois do Apocalipse.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Registro 132: Apoio

TODO O NOSSO APOIO AO BISPO
D. LUIZ CAPPIO.
SUA LUTA EM PROL DA POPULAÇÃO
RIBEIRINHA
É SENSATA E JUSTA.
ELA NÃO É DITADA PELA GANÂNCIA DO CAPITALISMO SELVAGEM,
PELOS INTERESSES DE POLÍTICOS IMEDIATISTAS
NEM PELA VORACIDADE DO LATIFÚNDIO
QUEREMOS O RIO VIVO E PARA TODOS.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Registro 122: YERMA

Manuela Oliveira (Velha Pagã), Irene Gonçalves (Dolores), Paula Alves (Lavadeira), Ava Catarina (Yerma)

Ava Catarina (Yerma) e Gésner Braga (Vítor)

Elenco de Yerma junto com o professor-diretor Raimundo Matos de Leão durante o intervalo de ensaio antes da estréia, que aconteceu no dia 15 de novembro, no Teatro ISBA, em Salvador.
O elenco é formado por alunos concluintes do Curso Artes Cênicas da Faculdade Social, 2007.


sábado, 20 de outubro de 2007

Registro 121: Em Memória

PRESENÇA DE PAULO AUTRAN

Raimundo Matos de Leão

Doutor e Mestre em Artes Cênicas – UFBA.
Escritor, arte-educador, coordenador e
professor do Curso de Artes Cênicas – FSBA.



“Sempre fui sempre serei um homem de teatro”, com essas palavras Paulo Autran iniciava o espetáculo Liberdade, Liberdade, num tempo em que a liberdade andava bem escassa entre nós. Mesmo assim, os artistas mantinham-se firmes, garantindo seu espaço e a sobrevivência de sua arte. Apesar da censura, as vozes de Paulo Autran, Thereza Rachel, Oduvaldo Vianna Filho e Nara Leão, entre outros, se uniam em comunhão com as do público para cantar: “E, no entanto é preciso cantar. Mais que nunca é preciso cantar e alegrar a cidade”. Desde o palco do Teatro Opinião, e por todas as ribaltas brasileiras que receberam o espetáculo dirigido por Flávio Rangel, ecoava o protesto, a denúncia, o incômodo por ver o regime de exceção de 31 de março de 64 tomar corpo e se infiltrar no cotidiano.

O governo civil-militar militar aquartelado no Planalto ainda não havia mostrado a sua face mais cruel, fato que vai se dar com a evolução das suas constituintes, quando da decretação do Ato Institucional Número 5 – AI5. Mesmo assim, impediam-se a livre manifestação de pensamento e a organização das entidades; prendiam-se e exilavam-se lideranças intelectuais e políticas significativas do cenário cultural e político do País. Os artistas passam a sofrer um processo de vigilância e perseguição acirradas, fator que coloca em risco o exercício da profissão. A situação beco sem saída vai levar Paulo Autran, ator identificado com o “teatrão”, aquele oriundo do Teatro Brasileiro de Comédia, do qual foi cria, a ingressar em uma produção cuja coloração estética e ideológica dos seus participantes – Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho, Pichim Plá, João das Neves, Tereza Aragão – não condizia com sua postura enquanto homem de teatro. Ator distante das propostas do paulistano Teatro de Arena e do carioca Grupo Opinião, Autran sobe ao palco para defender um princípio e afirmar a sua filiação maior, o fazer teatral, e por tabela, a liberdade de expressão.

Não assisti a montagem de Liberdade, Liberdade, mas fui um dos que adquiriu a edição do texto e o long-play com a gravação do espetáculo. A primeira vez que vi Paulo Autran foi em Édipo Rei, de Sófocles, quando de sua passagem por Salvador, em 1967. Convidado por Francisco Barreto, crítico teatral do jornal A Tarde, meti-me num terno, traje obrigatório para ir ao Teatro Castro Alves para apreciar a elogiada encenação.

Para um jovem que fazia teatro amador em Feira de Santana, ver a encenação protagonizada por Autran, aquele que ficou conhecido nos meios teatrais “como o nosso primeiro ator”, distinção de peso em meio a muitos primeiros atores, significou a determinação pelo palco, decisão que se concretiza com o meu ingresso na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Ainda em Salvador, assisti Paulo Autran em O Burguês Fidalgo, de Molière, sob a direção de Ademar Guerra, e na remontagem da histórica encenação de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, criação de Silnei Siqueira.

Em curto espaço de tempo, o ator mostrou seu talento e sua maneira de encarar papéis diversos. Em Édipo Rei e no Burguês Fidalgo, Autran encarregava-se dos protagonistas e desempenhava com versatilidade os gêneros trágico e cômico, com a marca de quem sabe os segredos do palco, de quem reteve as lições dos mestres italianos que aperfeiçoaram suas qualidades interpretativas. Tais atributos foram demonstrados na estréia de Um Deus Dormiu Lá em Casa, de Guilherme Figueiredo, quando dividiu o palco com Tônia Carrero, responsável por subverter a carreira do jovem advogado até então indeciso entre os tribunais e a tribuna do palco, esses metros de tablado onde a vida é representada simbolicamente. Já em Morte e Vida Severina, o ator entrava nos momentos finais do espetáculo para interpretar o papel de Seu José, o Mestre Carpina.

Além disso, essas realizações mostravam também suas qualidades de produtor bem sucedido. Ao cercar-se dos melhores profissionais, atores, atrizes, encenadores, cenógrafos, figurinistas e demais técnicos para levantar espetáculos, Paulo Autran preservou por muito tempo a função de ator-empresário que cuidava não apenas do seu lugar no palco, mas sabia que o sucesso da encenação devia-se ao conjunto de realizadores.

A necessidade de manter o empreendimento fazia com que seus espetáculos chegassem a diversas praças, não se restringindo aos palcos do eixo Rio-São Paulo. As viagens pelo Brasil afora, iniciativa da qual se orgulhou sempre, possibilitou que tomássemos contato com encenações de nível, embora, em sua maioria, concebidas para um intérprete que se mostrou distante das vanguardas e das experimentações cênicas mais arrojadas. A afirmação não diminui a contribuição de Paulo Autran como ator, produtor e também como diretor, já que concebeu espetáculos para si e para outros atores e atrizes. É sua a direção de O Homem Elefante, com Ewerton de Castro no papel principal. Mesmo sem aventurar-se nos experimentos teatrais que invadiram a cena nas décadas de 60 e 70, principalmente, o ator se aproximou de Celso Nunes, considerado como um dos primeiros encenadores a trabalhar com as propostas grotowskianas entre nós.

O lado empresarial de Paulo Autran toma corpo desde a Companhia Tônia-Celi-Autran, empreendimento que se dá quando da saída dos artistas do TBC acompanhados por Adolfo Celi, o primeiro dos diretores italianos que formataram artisticamente a empresa de Franco Zampari, marco da profissionalização dos amadores em 1948.

Anos mais tarde, já formado pela Escola de Teatro e iniciando a minha carreira como ator em São Paulo, partilhei, ainda que de maneira restrita e respeitosa, o convívio com esse ator paradigmático, referência para gerações de artistas de teatro. Através de amigos comuns, estive em reuniões na residência da atriz Miriam Muniz. Em várias delas, Paulo Autran deliciava os presentes com suas histórias e observações sobre a vida, o teatro e as pessoas. Entre os amigos que circulavam no apartamento da memorável atriz, Paulo Autran e Miriam Muniz centralizavam as atenções da platéia cativa, e, generosos, abriam espaços para que tosos se manifestassem. Ver o grande ator despido de sua grandiosidade de intérprete e contando piada, falando sobre assuntos diversos, dos mais profundos aos mais banais, era um encanto a que eu calado me rendia, desejoso de um dia de subir ao palco com ele para aprender os segredos de quem sabia lidar com a palavra, dominando-a inigualavelmente. Não tive esse privilégio, mas hoje, diante do que vi na sala desse apartamento e no palco, tenho certeza de que os ensinamentos foram dados sem que eu pedisse, sem que ele conscientemente oferecesse.

O amor pelo teatro, sua postura ética, sua discrição e generosidade somavam-se a um espírito aguçado, irônico, enfático, atributos delineadores de sua personalidade. Nessas reuniões, ele expunha seu pensamento sobre o teatro e dizia sempre que não tinha certeza de nada. A única que tinha era o teatro e a defesa dessa arte. Por ela movia o mundo, por ela manifestava-se, por ela transpunha barreiras e impedimentos, para fazer valer o ritual sagrado do teatro. Por ela fazia desde o texto clássico de difícil apelo popular até a comédia mais leve onde podia se divertir divertindo o público.

Certa feita fui levado ao seu apartamento na manhã seguinte a estréia de Coriolano, de Shakespeare, direção de Celso Nunes. Para meu espanto, na época, Paulo Autran residia na Avenida Nove de Julho, em um daqueles prédios antigos, documentos do tempo em que o centro de São Paulo espelhava o refinamento da cidade rica e globalizada, mas que na década de setenta estava em processo de degradação, sendo a avenida um fumarento e barulhento corredor de ônibus. Ao entrar no edifício e em seguida no apartamento, configurou-se outra atmosfera. A sala decorada com móveis e objetos antigos exibia o mais belo jarro de rosas, flores recebidas por Madame Morineau, atriz que fazia a mãe de Coriolano e que se hospedava na casa do seu companheiro de elenco. O amigo que me acompanhava e que também fazia parte do elenco apresentou-me, e ele, delicadamente, disse que me conhecia das reuniões da casa de Miriam Muniz e do palco. Eu só tinha feito três espetáculos até aquele momento em São Paulo.

Estive na platéia para ver Paulo Autran muitas vezes. Emocionei-me e aplaudi sua intensa criação de Willy Loman em A Morte de Um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller. Impressionei-me com sua atuação em Equus, de Peter Shaffer, onde brilhava juntamente com o jovem ator Ewerton de Castro. Apreciei as ricas modulações vocais do ator em Traições, de Harold Pinter. Em todas essas peças, ao todo fez 90, o ator soube dominar a palavra, construiu seus personagens com inflexões precisas e por elas presentificou-os em cena, de forma a revelar sua interioridade, seus conflitos, sua graça.

Como grande intérprete, Autran soube brincar com o teatro, com o sagrado contido nele, sem desrespeitá-lo. Vivia para ele como se vive para um amante. Sua entrega total aos afazeres do palco tornava-o exemplar para os que partilhavam a cena fora e dentro dela. O respeito que tinha pelos profissionais de teatro, de camareiras a contra-regras e encenadores, fez dele um companheiro de ofício dos mais queridos na classe teatral.

O repertório que fez ao longo da carreira é assombroso, ainda que o número de autores nacionais seja desproporcional. Suas escolhas foram sempre guiadas por uma intuição oportuna de quem sabe o que pode e deve fazer no momento certo, se mantendo fiel a uma determinada estética. Granjeou com isso um público de admiradores fiéis. Mesmo quando se arriscou a empreitadas que não deram certo, manteve sempre a integridade de uma grande artista.
Ao cair o pano no ato final de sua vida, Paulo Autran, como todo verdadeiro artista, torna-se um encantado. Transfere-se para outra esfera, permanecendo na memória de quem o viu inteiro no teatro, no cinema e não na televisão, veículo que o aproximou da massa, mas não sugou-lhe a grandeza de intérprete. Em minhas retinas permanecem o Édipo-Autran vestido numa túnica branca e vermelha desenhada pelo superlativo cenógrafo e figurinista Flávio Império. Tal imagem permanece viva e se mistura a outras que ele deixou. Cabe a nós mantê-las vivas, retendo-as na memória e com isso tentar reter a efemeridade do ato teatral.

domingo, 7 de outubro de 2007

Registro 120: Lucidez

Nem tudo se perdeu: ainda há o cidadão comum

Jurandir Freire Costa*
Dois filmes brasileiros, O Ano em que meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, e Tropa de Elite, de José Padilha, candidataram-se a representar o Brasil na competição pelo Oscar de melhor filme estrangeiro. O primeiro foi escolhido, dividindo as opiniões divulgadas pela mídia. Deixo a quem compete o trabalho de dizer qual deles dispõe das qualidades técnicas e artísticas com mais chances de premiação. De minha perspectiva, importante é discutir a imagem da cultura brasileira apresentada pelos dois.
Desse aspecto, julgo que ambos sejam extremamente bem-sucedidos. No filme de Cao Hamburger, o Brasil dos anos 70 é visto pelo olhar de um garoto, cujos pais são obrigados a fugir da repressão policial no período da ditadura militar. A criança deveria ser deixada com o avô, que, nesse entretempo, morre. Sozinho e sem ter a quem recorrer, o menino é cuidado pela comunidade judaica, à qual o avô pertencia. No final, a mãe retorna. O filme dá a entender que tanto ela quanto o marido haviam sido torturados e o último havia morrido. O menino é exilado com a mãe e, ao se despedir carinhosamente dos que o ajudaram - em especial do velho vizinho do avô, figura central no enredo -, pensa em off que "ser exilado é ter um pai que se atrasa tanto, tanto, que nunca chega".
Tropa de Elite, ao contrário, mostra o Brasil de hoje. Precisamente, o Rio de Janeiro de 1997, por ocasião da visita do papa João Paulo II. O pano de fundo é totalmente diverso: favelas, tráfico de drogas, corrupção policial e, por fim, as entranhas do Bope, a tropa policial de elite que dá título ao filme. Se o inferno tivesse alguma feição, com certeza seria algo semelhante ao que o diretor nos faz ver. Nos guetos marginais das favelas, miséria socioeconômica e miséria moral dão-se as mãos na corrida desenfreada de delinqüentes e policiais para provar quem consegue ser mais violento. Tortura, sanguinolência, delação, falta de escrúpulos, tudo fede à mais estúpida desumanidade. José Padilha não poupa talento e recursos dramatúrgicos para deixar-nos cara a cara com o que de mais macabro produzimos em matéria de desrespeito à vida e à dignidade da pessoa. Instituições falidas e indivíduos desencantados debatem-se como moscas tentando escapar da maligna teia de destruição que se contrai e os tritura de forma inexorável. É o lado do Brasil cronicamente inviável, fluindo num jorro de imagens que comovem, dão repulsa e fazem pensar.
A pergunta é inevitável: o que nos aconteceu entre 1970 e 2007? Várias hipóteses podem ser levantadas. A que mais facilmente vem à tona é de ordem político-econômica. Perdemos, afirmam alguns, as aspirações da geração 1968. Nosso destino histórico foi entregue à sede de lucros materiais e o resultado veio a galope: individualismo à outrance, consumismo, cinismo, evasão pelo entretenimento e adoração drogada do próprio corpo. A tese é discutível em alguns pontos, mas, certamente, há algo de verdade na explicação. A decadência da política - numericamente controlada por parlamentares que agem como mafiosos -, o endeusamento irracional da economia e a presença intrusiva da moral do espetáculo na vida cotidiana contribuíram, em muito, para o aparente aumento da insensibilidade em face do bem comum ou das carências do próximo.
José Padilha, entretanto, vai adiante. Quaisquer que tenham sido as causas da mudança, mostra ele, o efeito cultural foi além do imaginável. A desagregação da hierarquia dos valores éticos lesou o cerne da pessoa moral, ou seja, a capacidade que devemos ter de decidir entre o certo e o errado e dar sentido à própria vida. Em O Ano em que meus Pais Saíram de Férias, os rivais políticos sabiam por que matavam e morriam. Os defensores da ditadura achavam que torturar e assassinar dissidentes significava proteger o Brasil do perigo comunista; os partidários da democracia ou do socialismo, por seu turno, queriam restaurar o Estado de Direito democrático ou realizar a revolução. Na bela metáfora da ida para o exílio, posta na boca do garoto, isto fica patente. A esperança de um mundo melhor confundia-se com a expectativa do reencontro com o pai. O reencontro, embora indefinidamente adiado, já era presentemente vivido. Dizer que o exílio era a condição de quem esperava por um pai que nunca chegava era dizer que depois do exílio o pai e seus ideais poderiam vir a ser reabilitados.
Em Tropa de Elite, essa moral comum às utopias messiânicas dá lugar à mais desoladora desistência. Policiais corruptos ou justiceiros, marginais e estudantes usuários de drogas ilegais não sabem o que buscar, exceto sobreviver hoje e amanhã. Agem como sonâmbulos presos num pesadelo. Tudo que importa é abolir o tráfico ou manter o tráfico. Nenhum dos personagens parece sentir-se exilado, pois o deserto ético transformou-se no último horizonte de suas existências. No que dizem, palavras como violência e paz, justiça e injustiça, autoridade e obediência, soam vazias e apenas fazem eco a sentimentos de vingança, ressentimento, culpa ou autopunição. Criaturas supérfluas em um mundo supérfluo.
É aqui que o corte entre os dois filmes salta aos olhos. Visto com mais atenção, Tropa de Elite poderia ser grafado no plural, sem perda de conteúdo. Na verdade, as supostas elites retratadas no filme são duas: a policial e a universitária. O detalhe nada tem de irrelevante. Nele se repete um dos mais lastimáveis fenômenos da cultura brasileira, qual seja, a recalcitrante incapacidade de nossa autodeclarada elite de agir, de fato, como uma legítima elite. Elite - faça-se justiça à tradição lingüística - é o conjunto dos melhores. E os melhores, no credo democrático-humanitário, são os que mais contribuem para fortalecer os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Ora, a pretensa elite nacional jamais se conduziu segundo esses princípios, donde a relação promíscua que sempre manteve com o que a polícia pode ter de mais abusivo e imoral.
Inicialmente, o retrógado senhoriato rural, candidato bastardo à elite, usou a polícia para confinar a realidade dos guetos pobres nas letras de samba e desfiles de carnaval. Foi a época de ouro das "anedotas, champanhotas" e do famigerado "sorry, periferia". Na atualidade, a sandice cultural mudou de tom, mas fundamentalmente continuou a mesma. A polícia foi, de novo, usada para deixar que os mesmos guetos se convertessem em entrepostos de drogas ilegais. Só que a criatura fugiu ao controle do criador. Os piores do andar de baixo - como reza o preconceito - se deram conta, rapidamente, de que podiam extorquir e explorar quanto quisessem os piores do andar de cima. Daí para a emancipação da tutela policial o passo foi curto. Em duas ou três décadas, os guetos marginais passaram de quitanda de drogas a centros de treinamento intensivo em sordidez moral para policiais. A leviandade político-social continuaria impune, não fosse um fato novo: o montante de dinheiro circulante com o comércio de drogas permitiu que a nata da delinqüência se armasse até os dentes para defender a prosperidade de seus negócios. Conclusão: a sociedade brasileira, uma vez mais, tem sua agenda de problemas comandada pela inconseqüência de uns poucos. O mesmo tipo de grupúsculo social, que outrora insistiu em negar a indecência humana das favelas, voltou a recorrer à truculência repressiva. Desta feita, para conter os excessos da aberração que pôs no mundo e acabou nos tornando reféns de bandidos e policiais corruptos.
Boa parte do desconforto provocado por Tropa de Elite vem do fato de percebermos que o odioso ciclo do crime não tem saída, posto que se alimenta da própria deterioração. Combater o comércio de drogas e armas com Bopes é querer extirpar a violência com mais violência, isto é, com mais da mesma coisa. Faz sentido discutir com seriedade se a legalização das drogas ilegais seria um antídoto possível para a situação; insensato é persistirmos vendo o problema pelas lentes dos habitantes desse submundo. Nesta guerra entre aspas, o inimigo não são os infelizes do lado de lá ou do lado de cá; o inimigo é a consciência degradada dos que consideram que, para o populacho, favela está de bom tamanho. Ou eliminamos essa mentalidade torpe de nossa vida cultural ou nos condenamos a suportar mais e mais carnificina.
Um dos maiores méritos de Tropa de Elite é deixar claro que a banda podre da polícia nada mais é do que o espelho da banda podre de elites que usurparam o direito a portar um nome ao qual jamais fizeram jus. Policiais corruptos e brutalizados, marginais guetificados e usuários irresponsáveis de drogas ilegais não nasceram da cabeça de Zeus. Eles são o refugo de uma ordem sociocultural que manteve o gozo dos direitos democráticos reservado a uma minoria civicamente analfabeta, moralmente míope e culturalmente descomprometida com a construção de uma nação brasileira digna deste nome.
Entretanto, se a "elite" perdeu a cabeça e alma, isso não quer dizer que tudo esteja perdido. Em uma espécie de contraponto à crua denúncia feita por José Padilha, Cao Hamburger assinala o contraste existente entre o Brasil dos restos humanos e o Brasil do cidadão comum. Este último cidadão, em 1970 como em 2007, apesar da pouca visibilidade social, não sucumbiu à moral da descrença. Sua vida, na superfície, é prosaica, mas, no fundo, é o que mantém este país de pé. Trata-se do indivíduo ordinário, que não é santo ou herói, mas, simplesmente, alguém capaz de agir com correção e honradez, se a urgência da questão o exigir. Sem rompante ou bravata, ele cultiva as virtudes cívicas elementares, como apreço pelo trabalho, pela honestidade e pela decência. Embora movido pelo egoísmo narcisista, pela tentação do oportunismo ou pela sedução do sucesso midiático, como qualquer um de nós, também sabe ser compassivo e solidário se assim for necessário. São esses brasileiros que no filme de Hamburger protegem o pequeno personagem, mesmo pondo em risco o próprio bem-estar. São eles a verdadeira tropa de elite dos ideais democráticos de homens como frei Caneca e Joaquim Nabuco; é apostando neles que traremos de volta os órfãos ainda exilados do sonho Brasil.
Para os desesperados, isso é idiotice sentimentalóide de quem não vê que "este país não presta"; para os cínicos, a súmula da mediocridade piedosa. Penso de modo diferente. Penso que esses cotidianos exercícios de respeito pelo outro e de crença no próprio poder de mudar são a quintessência da riqueza material, moral, intelectual e espiritual de um povo. Por meio deles, quem sabe, chegará o ano em que daremos férias às elites e às tropas que nos envergonham e nos privam de viver num país à altura da maioria de nós. Dois filmes a serem vistos e revistos; dois grandes cineastas, eles sim, exemplos da elite que queremos ter.
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* Jurandir Freire Costa, psicanalista, é professor do Instituto de Medicina Social da UERJ e autor, entre outros livros, de A Inocência e o Vício (Relume-Dumara, 2002) e O Vestígio e a Aura (Garamond, 2004)

domingo, 16 de setembro de 2007

Registro 119: Coitado de nós

NÃO BASTA APARECIDA TER SIDO PISOTEADA POR UM FANÁTICO PENTECOSTAL FUNDAMENTALISTA ?!
A SANTINHA DE NAZARÉ NÃO MERECIA SER ENXOVALHADA NA CLOACA SENATORIAL!

ESTAMOS PERDIDOS.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Registro 118: Poesia de um amigo

Fragmentos de uma Vingança Conjugal

Rubem Rocha Filho

Diante do brócolis todo partidinho no prato, minha concentração búdica...

Vejo Wanda comendo sua banana.

- “Anti-cancerígeno” - eu explicara.

Ela mastigava o alimento e apaziguava a aflição pela saúde, pela imortalidade até.

Conseguiria driblar a doença que levara tantos na sua família?
Mas o câncer que acabou com a mãe percorreria outras teias de traição, de sonhos de amor carcomidos (Lizt distante ao piano) de um fiel orgulho espezinhado, fatalmente os lanhos na carne aberta – o despudor do adultério do marido revelado.
Se precipitou irreversível, algo como dois meses – veloz a flor nas entranhas – de quem já ultrapassara os 80 anos; foi enfraquecendo, sem sangue, sem estima.
No entanto, ainda esboçou a vingança: um encontro clandestino com o namorado da juventude.
A
velha confidente e dentista dos anos 40, se dispôs a agenciar a troca de carícias desajeitada, quase grotesca, sussurrada ao telefone, de sexualidade há muito extinta.
Primeiro a confeitaria em Copacabana; depois o apartamento de pesadas cortinas, à espera do inquilino, à meia luz.
Nada disso se cumpriu.
Ficou a imensa ausência, a decepção povoada de culpas, a ânsia de se aferrar a vida, nem que fosse num rastro de revanche, enrugada e seca, a linha dos lábios sempre trêmula, no dente o batom vermelho, a raiz branca do cabelo, as pontas dos dedos incapazes de aderir.

Boa Viagem, março 2007

domingo, 5 de agosto de 2007

Registro 117: Sobre não ter idéias

CARLOS HEITOR CONY
Idéia e memória

- Em "La Notte", um dos filmes emblemáticos de Michelangelo Antonioni, o escritor interpretado por Marcello Mastroianni, cobrado pela mulher (Jeanne Moreau), diz que não tem mais idéias, tem memórias. Ingmar Bergman, que morreu horas antes de Antonioni, admitia que toda a sua obra nascia de seu passado, notadamente de sua infância.

Aos dois cineastas, dos maiores de todos os tempos, podemos acrescentar um terceiro, Federico Fellini, que nunca teve uma idéia precisa de nada, nem sobre o cristianismo nem sobre o socialismo, mas não quebrou a casca onde guardaria para sempre o fruto de si mesmo -tal como a Capitu adulta que estava toda na menina que se apoderava do companheiro de infância.

Entrando no assunto: o cronista não tem culpa de Antonioni e Bergman terem morrido ao mesmo tempo, pautando involuntariamente centenas de reflexões feitas na mídia internacional. Autores defasados, com técnicas e preocupações que não mais pertencem a este mundo. Mas que ficarão intactos, suspensos no ar, como aquele quarto no beco que Manuel Bandeira evocou num de seus poemas.

Escrevi sobre Bergman na crônica anterior. Deveria escrever agora sobre Antonioni. Como o personagem de "La Notte", não tenho idéias, nem me interessa tê-las. Pessoas que me julgam bem informado querem saber minha opinião sobre o acidente com o Airbus, a culpa da pista, do equipamento, do piloto. Acontece que nem formei ainda um juízo sobre Febrônio, um tarado sexual dos anos 30. Quando fugiu da prisão obrigou todos os pais a trancarem seus filhos em casa, as escolas fecharam, a besta-fera solta na cidade. Bergman teria feito um belo filme sobre Febrônio. E Antonioni mostraria o vazio das ruas, as almas cheias de tédio -pior do que o medo.
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Publicado originalmente em Folha de S. Paulo, edição de 05 de agosto de 2007

quinta-feira, 19 de julho de 2007

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Registro 115: O ovo da serpente

CONTARDO CALLIGARIS
Quadrilhas de canalhas

Está com medo de tornar-se doméstica ou prostituta? Bata em pobres, índios e putas

EM POUCAS linhas, na Folha de sexta, dia 29 de junho, Eliane Cantanhêde descreveu perfeitamente o mundo no qual é possível que rapazes de classe média queimem um índio pensando que é "só um mendigo" ou espanquem uma mulher pensando que é "só uma prostituta". Provavelmente, não teria sido muito diferente se eles tivessem pensado que era só uma empregada doméstica.

É um mundo em que a permissividade é o melhor remédio contra a inevitável insegurança social. Nesse mundo, os pais fazem qualquer coisa para que seus rebentos acreditem gozar de um privilégio absoluto; esse é o jeito que os adultos encontram para acalmar sua própria insegurança, para se convencer de que eles mesmos gozam de privilégios garantidos e incontestáveis. Como escreveu Maria Rita Kehl no Mais! de domingo passado, nesse mundo, aos inseguros não basta ser cliente, é preciso que eles sejam clientes especiais.

Uma classe média insegura é o reservatório em que os fascismos sempre procuraram seus canalhas. Você está com medo de perder seu lugar e, de um dia para o outro, tornar-se índio, mendigo ou empregada doméstica? Pois é, pode bater neles e encontrará assim a confortável certeza de seu status. Aos inseguros em seu desejo sexual, aos mais apavorados com a idéia de sua impotência ou de sua "bichice", é proposto um remédio análogo. Você provará ser "macho" batendo em "veados" e prostitutas.

Há mais um detalhe: a inteligência humana tem limites, a estupidez não tem. Essa diferença aparece sobretudo no comportamento de grupo. Imaginemos que a gente possa dar um valor numérico à inteligência e à estupidez. E suponhamos que o valor médio seja dois. Pois bem, três sujeitos mediamente inteligentes, uma vez agrupados, terão inteligência seis. Com a estupidez, a coisa não funciona assim: a estupidez cresce exponencialmente. A soma de três estúpidos não é estupidez seis, mas estupidez oito (dois vezes dois, vezes dois). Quatro estúpidos: estupidez 16. Cinco: estupidez 32.

Curiosamente, essa regra vale até chegar, mais ou menos, a um grupo de dez. Aí a coisa tranca: a partir de dez, torna-se mais provável que haja alguém para discordar da boçalidade ambiente. Não porque, entre dez, haveria necessariamente um herói ou um sábio, mas porque, num grupo de dez, quem se opõe conta com a séria possibilidade de que, no grupo, haja ao menos um outro para se opor junto com ele.

Esse funcionamento, por sua vez, decai quando o grupo se torna massa. É difícil dizer a partir de quantos membros isso acontece, mas não é preciso que sejam muitos: um grupo de linchamento, por exemplo, pode desenvolver toda sua estupidez coletiva com 20 ou 30 membros.

Em alguns Estados dos EUA, é permitido dirigir a partir dos 16 anos. Mas, em muitos condados desses Estados, vige uma lei pela qual um jovem, até aos 21 anos, só pode dirigir se houver um adulto no carro. Pouco importa que esse adulto seja habilitado a se servir de um carro. O problema não é a perícia do motorista, mas o fato estatístico de que três, quatro ou cinco jovens num mesmo carro constituem um perigo para eles mesmos e para os outros: o grupo de "amigos" potencializa a estupidez de cada um, muito mais do que sua inteligência. Talvez seja por isso, aliás, que, para o legislador, a formação de quadrilha é um crime em si. Qualquer pai de adolescente reza ou deveria rezar para que seu filho encontre rapidamente uma namorada e passe a sair na noite com ela, não com a turma dos amigos. Pois a turma é parente da gangue.

Como se sabe, o pai de um dos cinco jovens que, na madrugada do dia 23 de junho, na Barra da Tijuca, espancaram Sirlei Dias de Carvalho Pinto, comentou, defendendo o filho: "Prender, botar preso junto com outros bandidos? Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?". É o desespero de quem sente seu privilégio ameaçado: como assim, tratar a gente como qualquer um?

Não éramos "clientes especiais"?

Mas as frases revelam também a distância entre o filho que o pai conhece em casa (o filho que teria "caráter") e o filho que se revela na ação do grupinho (esse filho não tem "caráter" algum).
O que precede poderia ser entendido como uma atenuante, tipo: eles agiram assim não por serem canalhas, mas por estarem em grupo. Ora, cuidado: o grupo não produz, ele REVELA os canalhas.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Registro 114:Lúcida reflexão

"Um cara desses"
Eliane Cantanhêde
Quando os filhos são pequenos, chutam a canela da empregada, e os pais acham "natural", fingem que não vêem. Já maiores um pouco, comem o que querem, na hora em que querem, não falam nem bom-dia para o porteiro e desrespeitam a professora. Na adolescência, vão para o colégio mais caro, para o judô, para a natação, para o inglês e gastam o resto do tempo na praia e na internet. Resolvido.

Dos pais, ouvem sempre a mesma ladainha: o governo não presta, os políticos são todos ladrões, o mundo está cheio de vagabundos e vagabundas. "E quero os meus direitos!" Recolher o INSS da empregada, que é bom, não precisa. É assim que os filhos, já adultos, saudáveis, em universidades, são capazes de jogar álcool e fósforo aceso num índio, pensando que era "só um mendigo", ou de espancar cruel e covardemente uma moça num ponto de ônibus, achando que era "só uma prostituta". A perplexidade dos pais não é com a monstruosidade, mas com o fato de que seu anjinho está sujeito -em tese- às leis e às prisões como qualquer pessoa: "Prender, botar preso junto com outros bandidos?

Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?", indignou-se Ludovico Ramalho Bruno, pai de Rubens, 19. Dá para apostar que ele votou contra o desarmamento, quer (no mínimo) "descer o pau em tudo quanto é bandido" e defende a redução da maioridade penal. Cadeia não é para o filho, que tem estudo e dinheiro, um futuro pela frente. É para o garoto do morro, pobre e magricela, que conseguir escapar dos tiroteios e roubar o tênis do filho. Isso se resolve com o Estado sendo Estado, com justiça, humanidade e educação -não só com ensino para todos e professores mais bem treinados e mais bem pagos, mas também com a elementar compreensão de que "o problema", e os réus, não são os pobres. Ao contrário, eles são as grandes vítimas.
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Publicado originalmente pela Folha de S. Paulo na edição de 29 de junho de 2007.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Registro 113: O que pensa Grotowski.

Quando confrontamos a tradição geral da Grande Reforma do teatro, de Stanislavski a Dullin e de Meyerhold a Artaud, verificamos que não partimos da estaca zero e que nos movimentamos numa atmosfera especial e definida. Se nossa pesquisa revela e confirma o lampejo da intuição de outrem, curvamo-nos com humildade. Verificamos que o teatro tem certas leis objetivas e que sua realização só é possível quando respeitadas essas leis, ou – como disse Thomas Mann – através de uma espécie de “obediência superior”, à qual conferimos “atenção condigna”. Ocupo uma posição especial de liderança no Teatro- Laboratório polonês. Não sou simplesmente o diretor, ou o produtor, ou o “instrutor espiritual”. Em primeiro lugar, minha relação com o trabalho não é certamente unilateral ou didática. Se minhas sugestões se refletem nas posições espaciais do nosso arquiteto Gurawski, é de se compreender que minha visão foi formada ao longo de anos de colaboração com ele.

Existe algo de incomparavelmente íntimo e produtivo no trabalho com um ator que confia em mim. Ele deve ser atencioso, seguro e livre, pois nosso trabalho consiste em explorar ao máximo suas possibilidades. Seu desenvolvimento é atingido pela observação, pela perplexidade e pelo desejo de ajudar; o meu desenvolvimento comum transforma-se em revelação. Não se trata de instruir um aluno, mas de se abrir completamente para outra pessoa, na qual é possível o fenômeno de “nascimento duplo e partilhado”. O ator renasce – não somente como ator mas como homem – e, com ele, renasço eu. É uma maneira estranha de se dizer, mas o que se verifica, realmente, é a total aceitação de um ser humano por outro.
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GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Civilização Brasileira, 1987, p. 22.

sábado, 23 de junho de 2007

Registro 112; A fogueira está queimando em homenagem a São João



São João, Murillo


São João, Leonardo da Vinci
São João, Xangô menino
Caetano Veloso / Gilberto Gil

Ai, Xangô, Xangô menino da fogueira de São João Quero ser sempre o menino, Xangô, da fogueira de São João
Céu de estrela sem destino de beleza sem razão Tome conta do destino, Xangô, da beleza e da razão
Viva São João, viva o milho verde Viva São João, viva o brilho verde Viva São João das matas de Oxossi Viva São João
Olha pro céu, meu amor, veja como ele está lindo Noite tão fria de junho, Xangô, canto tanto canto lindo
Fogo, fogo de artifício, quero ser sempre o menino As estrelas deste mundo Xangô, ah, São João, Xangô Menino
Viva São João, viva o milho verde Viva São João, viva o brilho verde Viva São João das matas de Oxossi Viva São João


quarta-feira, 20 de junho de 2007

Registro 111: Aula inaugural

O ATOR E SEU OFÍCIO[1]

Fernanda Montenegro

Albert Camus, falando sobre o absurdo da existência humana observa: “O ator reina no domínio do mortal. De todas as glórias do mundo, sabemos que a sua é a mais efêmera. E é também o ator quem mais percebe, entre os homens, que tudo deve morrer um dia. E, para ele, não representar significa morrer cem vezes, com as cem personagens que ele teria animado ou ressuscitado”.

Percorrendo assim os séculos e os espíritos, imitando o homem tal como ele pode ser e tal como é, o ator confunde-se com outra figura absurda: o viajante. E como viajante, o ator esgota alguma coisa ao percorrer sem cessar. Ele é o viajante do tempo e, se é um grande ator, torna-se um ansioso viajante das almas.

Para pegar um copo, ele encontra novamente o gesto de Hamlet erguendo a taça. Por isso, não é assim tão grande a distância que o separa dos seres que ela faz viver. O ator ilustra, todos os dias, essa verdade tão fecunda: a de que não existem fronteiras entre aquilo que um homem “quer ser” e aquilo “que é”.

Quanto mais estreito é o limite que lhe é dado para criar sua personagem, tanto mais necessário que ele tenha talento. Afinal, ele vai morrer dentro de duas ou três horas sob um rosto que não é o seu. É preciso que nessas duas ou três horas ele sinta e exprima todo um destino excepcional, e isso tem um nome certo: é perder-se para se encontrar. Nessas duas ou três horas ela vai até o “fim do caminho sem saída” que o homem da platéia gasta a vida toda para percorrer.

No passado a Igreja repudiava, na arte do ator, a multiplicação herética das almas, o deboche das emoções, a pretensão escandalosa de um espírito que se recusa a viver apenas um destino e se precipita então em todas as intemperanças.

A atriz Adrienne Lecouvreur, no seu leito de morte, quis confessar-se e comungar, mas recusou-se a renegar sua profissão, conforme lhe exigiam. E, por causa disso, ela perdeu o benefício da extrema-unção. Isso significa que, entre Deus e a sua profissão, ela tomou o partido da sua paixão pelo teatro.

E essa mulher, na agonia, recusando-se a renegar aquilo que chamava “a sua arte”, mostrava, morrendo, uma grandeza que nunca atingira no palco. Foi o seu papel mais belo e também o mais difícil: escolher entre o céu e uma fidelidade irrisória.
E é esta finalmente a tragédia secular na qual temos que ocupar nosso lugar: “Entre nós e a eternidade, optar por nós”.

Se, como disse Camus, entre nós e a eternidade, nós, atores, optamos por nós, isso significa que temos uma identidade. Uma identidade própria, uma história específica, uma vida singular, com suas necessidades e razões. Muitas vezes as razões do jogo teatral do ator têm razões que própria racionalidade, melhor dizendo, que o próprio enquadramento da história dos homens e a história oficial do próprio teatro menosprezam. Ou mesmo desconhecem.
(...)
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[1] Palestra realizada no Centro de Artes Livres, em março de 1983. In: Cadernos de Teatro. Rio de Janeiro: Tablado / INACEN, abr. , mai. , jun. , 1983, n° 97.

terça-feira, 19 de junho de 2007