domingo, 1 de abril de 2012

Registro 393: Que susto!


IDOS DE MARÇO


Lá se foi março. Ao mesmo tempo em que sinto saudade quero esquecê-lo. Tive minha casa arrombada na madrugada do dia em que ia para Aracaju lançar Harildo Déda, matéria dos sonhos. Felizmente o sujeito não conseguiu entrar, acordei assustado e gritei por quem mora comigo e divide as alegrias e as tristezas que a vida traz ou que criamos. O assaltante não penetrou o recinto sagrado do meu lar, pois é assim que o vejo. Finalzinho do mês, o meu coração deu sinais de cansaço e abateu-se. Um susto! Mas agora, diante do acontecido, a calma toma conta de mim, invade-me.

Sempre pensei na vida, na vida dos outros, algumas vezes bisbilhoteiramente, mas quase sempre por desinteresse, movido apenas pela troca advinda dos encontros e das belezas que as vidas contêm. Sempre respeitei a vida, a vida do outro, um valor supremo. Quanto a minha, penso que vivia esquecido de mim. Algum poeta já formulou tal questão. Bons poetas, invejo-os, conseguem sintetizar pela linguagem o que se passa no interior e o que captam do mundo. Mas lá ia eu sem dar conta de que a vida pode se interromper num átimo. Repentinamente ela nos põe diante do impermanente e somos forçados a aceitar o que nos é dado ou que fabricamos nesta usina que é o mundo.

Março passou. Abril chega com a promessa de nova ou novas maneiras de viver. Mesmo sendo outono, há um sol que adentra pela janela que foi arrebentada. Uma promessa de vida, embora o inverno se aproxime. Mas como aqui, onde vivo, o clima é rebelde e não segue as demarcações da temporalidade de maneira regular e alterando a paisagem e nossos humores, eu sigo como se fosse primavera, promessa de verão. Ainda que eu não goste de calor, redobro o ânimo.

Fui e estou cercado de atenções e de carinhos. É bom saber-se querido.

Enquanto me recuperava hospitalizado, lá se foram Chicos Anísios; imito Carlos Drummond de Andrade ao escrever sobre a atriz Cacilda Becker: “morreram Cacilda Becker”. Lá se foi Ademilde Fonseca ao mesmo tempo em que Millôr Fernandes. Para muitos, talvez não signifique nada. Para mim, são sentidas perdas. Consolo-me por saber que eles deixaram rastos, legando aos que ficam uma produção, aquilo que para eles era capital cultural, para nós capital simbólico.

Enquanto descansava em um quarto impessoal, descobri um poeta, Daniel Lima, pernambucano que manteve reclusa a sua poesia por muitos e muitos anos. Aos 91 anos, por surrupio de uma amiga, tem sua produção publicada em Poemas (Cepe Editora, 2011). Com sua poesia misturando-se às visitas e aos que cuidavam de mim, tornei o quarto menos frio, menos impessoal. Ele passou a ser meu, pois nele eu estava com meus cheiros, sonhos, demônios e anjos. Abre o livro, dois textos apresentativos: um de Lourival Holanda, outro de Zeferino Rocha. Os dois conduzem o leitor com segurança e abrem portas para as muitas portas que a poesia de Lima descerram. Uma bela descoberta.

Mas nem tudo é uma maravilha reconfortando o nosso espírito atribulado. Ao dar umas espiadas na televisão constatei que as novelas são cada vez mais um horror. As vilãs são risíveis. Parecem mais bruxas de contos para assustar crianças. Um telejornal local pautou no seu horário nobre uma reportagem sobre um cão que pula para pegar pedras atiradas na água por seu dono. Falta de assunto, ou estupidez do editor? Não tenho nada contra cães, ao contrário. Mas façam-me o favor... As reportagens sobre o aniversário da Cidade do Salvador eram de uma obviedade rasteira, a repetição da repetição. A publicidade cada vez mais calhorda faz de tudo para vender produtos. Uma marca francesa de automóvel tem um comercial onde a ética, a solidariedade, o repeito pelo outro são jogados no chão. Se eles, os publicitários e os executivos da Peugeot pretendiam o engraçado, não conseguiram tirar um riso, somente indignação. Um estagiário é mandado por dois boçais para abrir a porta da loja. Ele cumpre a ordem, é ridicularizado pelos dois e massacrado pela horda de consumidores que avançam em busca dos carros. Corte. Vemos então o estagiário jogando no chão, pois pisoteado. Segue-se o seguinte diálogo entre os dois vendedores que se acham: - “Vamos fazer o que?” Resposta: "Ah, vamos almoçar".

Recebi a visita de uma aluna na UTI. Fiquei deveras emocionado. Ela chegou, pegou a minha mão, trocamos algumas palavras e ainda sinto o seu toque solidário e confortante. Dois dias depois estava ela juntamente com outras colegas em meu quarto dando-me apoio com seus sorrisos. Saíram deixando no ar a graça de quem tem um mundo pela frente. Mais alunos, agora os rapazes. Perguntei se queriam aula, riram.

Gosto de ser professor.


Por recomendação, ouço Vivaldi e Mozart.

2 comentários:

Cotrim disse...

março passou, abril chegou e maio...maio ainda virá...enquanto isso, abril está e será o melhor mês de nossas vidas! Graças a Deus!

Força amigo!

Anônimo disse...

Dizem que só os corajosos se salvam!O seu texto é de uma coerência e simplicidade impressionantes. Desejo que se recupere logo pois exemplos de coragem à despeito de nossas fragilidades,nos servem a todo momento em nossas vidas de inspiração. Como tudo,isto também vai passar!Abraços da aluna de sempre Lília