Na edição de hoje, ele escreve sobre o querido dramaturgo russo Anton Tchekhov. Disse querido, e insisto em afimar isso, pois o dramaturgo e contista das estepes geladas toca profundamente na alma humana escavando-a fundo e sempre apaixonadamente. Por isso gosto profundamente de sua peças e contos. Ele olha seus personagens com carinho, mesmo aqueles pusilânemes. Expõe as nossas mesquinharias, Fala de longe sobre o nosso presente e futuro. É terno, comovente, irônico, corrosivo, mas sempre terno, provocando em nós um sorriso, mesmo quando as situações beiram ao dramático. Mas Tchekhov não faz drama por isso mesmo se espantou quando Stanislavski, o encenador russo, carregou as montagens de seu texto de uma seriedade de climas pesados.
Junto-me a Pondé para homenagear Tchekhov em seus 150 anos de nascimento. Leia abaixo o texto de Luiz Felipe Pondé.
Junto-me a Pondé para homenagear Tchekhov em seus 150 anos de nascimento. Leia abaixo o texto de Luiz Felipe Pondé.
LUIZ FELIPE PONDÉ
A medicina de Tchekhov
O escritor russo nascido há 150 anos tinha um sentido aguçado para a miséria concreta da vida humana
HÁ 150 ANOS o escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904) nascia. Médico, Tchekhov tinha um sentido aguçado para a miséria concreta da vida humana.
Partilho com ele de um grande ceticismo com relação à crença cega no progresso, tão comum entre os tolinhos de hoje em dia.
Qual a visão de mundo de Tchekhov? Qual é a marca profética (comumente referida na crítica especializada) dos autores russos do século 19 com relação à modernização? No caso de Tchekhov, contra o delírio de autossuficiência moderna, essa marca está na sua visão de que a humanidade vive contra um cenário infinito que ultrapassa cada um de nós e a cada "era histórica", retirando-nos a possibilidade de avaliar o verdadeiro sentido de nossos atos.
Apenas aqueles que viverão 500 anos depois de nós poderão, talvez, ver algum obscuro sentido em nossas vidas.
Ao contrário dos "ocidentalizantes" (termo comum na Rússia do século 19 para descrever os que abraçavam o avanço moderno sem dúvidas), que se viam como donos do próprio destino, Tchekhov logo percebeu que a modernização seria apenas mais uma experiência, como tudo que é humano, de fracasso com relação à posse do destino.
Contra o ridículo orgulho moderno, ele vê que a modernidade seria uma série de encontros e desencontros com as eternas sombras do humano. Quais seriam as sombras "modernas"? Os ganhos sociais (a superação do "chicote", como dizia Tchekhov, um descendente de servos) e técnicos (os ganhos da medicina no combate, por exemplo, à cólera, que tanto ocupou sua vida de médico de província) que cobrariam um alto preço (perda dos laços comunitários, mergulho na desumanização instrumental em busca de uma vida melhor, "bregarização da vida"), representado de forma cirúrgica em sua obra.
Esta paciência para com o obscuro sentido de nossas vidas é atípica em uma época como a nossa, marcada pela impaciência com o vazio da vida. Fingimos que sabemos o sentido de nossas vidas, vendo-o como sendo o "avanço" ou o "progresso" técnico, ético e social. Para cada avanço, um afeto se esvazia sob o dilaceramento das relações (burocratizadas) que se dissolvem no ar. Os afetos e não as ideias nos humanizam, e afetos não são passíveis de uma geometria do útil.
É exatamente da inutilidade dos afetos que fala Tchekhov em peças como "Tio Vânia" ou "Três Irmãs", nas quais as pessoas são tragadas pelos avassaladores detalhes da vida numa marcha cega em direção ao desperdício da sensibilidade humana. Na peça "A Gaivota", uma infeliz gaivota abatida torna-se metáfora de todo o drama: assim como é abatida uma gaivota (pelo diletante desejo humano da caça), somos todos abatidos ao longo da vida, por diletantismo do destino.
Entretanto, que os tolinhos de plantão não pensem que um grande anatomista da alma humana como Tchekhov pensaria bobagens como "se não matarmos gaivotas o mundo será melhor".
É no confronto com as contradições internas da sua obra que podemos perceber que Tchekhov não era um "tolinho progressista" que acreditava numa humanidade higienizada de suas misérias morais.
No conto "O Homem Extraordinário", um homem insuportavelmente honesto, reto e justo (o "insuportável" fica por conta da fala de sua esposa na agonia do parto) destrói a possibilidade da vida cotidiana, em nome de uma vida absolutamente ética: sem luxos, sem desperdício, sem abusos.
Este homem extraordinário dificilmente abateria gaivotas por diletantismo, mas, no lugar do diletantismo da caça, ele asfixiaria a respiração humana sob a caricatura morta de uma vida corretíssima.
No "Jardim das Cerejeiras", uma família da pequena aristocracia rural russa empobrecida, dona de uma propriedade com um jardim de cerejeiras, perde a posse das terras para um descendente de servos, agora livre, burguês e crente no futuro. No lugar deste velho e inútil jardim será construído um loteamento de férias para a "classe média" vir com seu direito brega à felicidade e seu amor ao "futuro".
Pois é ele, o habitante brega desses loteamentos, o herdeiro da Terra e dele será o reino dos céus.
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