sábado, 15 de janeiro de 2011

Registro 338: Dois espetáculos: "Retábulo" e "Pólvora e Poesia"



Cena de ensaio de Retábulo
Dois espetáculos ocuparam a minha semana, Retábulo, do Piollin Grupo de Teatro originário da Paraíba e Pólvora e Poesia, montagem soteropolitana. O Piollin tem em seu currículo o superlativo Val de Sarrapalha do mesmo diretor de Retábulo, Luiz Carlos Vasconcelos. Pólvora e Poesia tem como atrativos a autoria de Alcides Nogueira, dramaturgo paulista de comprovada eficiência criativa, e o trabalho do diretor Fernando Guerreiro, aclamado pela crítica e com um recheado currículo de ótimas realizações como encenador.

Sobre Retábulo, adaptação cênica da narrativa Retábulo de Santa Joana Carolina de Osman Lins, o que tenho a dizer de imediato é que o espetáculo não funciona nos seus propósitos muito bem pontuados pelo diretor no texto inserido no programa distribuído ao público. A primeira questão que nos afigura como problemática é o próprio autor, de reconhecida qualidade literária, mas com uma prosa difícil, tanto para o leitor que sua debruça sobre sua obra quanto para o espectador desacostumado com a sua elaborada linguagem não funcional no palco. Mesmo quando escreve para o teatro, a dramaturgia de Osman Lins não alcança aquele ponto que lhe dá consistência cênica. A tarefa a que se impôs o Piollin e seus dramaturgos-adaptadores, Luiz Carlos Vasconcelos e Márcio Marciano, não se configura como uma realização teatral acabada, ainda que traga elementos estéticos expressivos de qualidade. No entanto, tais elementos se perdem no todo e o espetáculo não consegue atingir a platéia. Toda a encenação é construída pela narrativa sem que se atinja aquele ponto ideal preconizado pelo épico. A opção pela narração fragmentada, uma peste que tomou conta do teatro contemporâneo ou pelo menos do brasileiro, obscurece os conflitos ou os possíveis conflitos existentes. A trama se esgarça e não se estabelece aquele elo necessário para que a experiência estética se dê. E a experiência estética em Retábulo é diminuta por conta das opções da dramaturgia e mais ainda da encenação. O encenador não deixa de construir algumas sequências cuja teatralidade é prova de uma prática criativa e domínio da linguagem, mas no todo elas se repetem instaurando uma monotonia, fazendo o espetáculo parecer mais longo do que ele é. 

Em um dos parágrafos do texto do programa, Vasconcelos diz: “Entendo que esta questão, sobre a maneira de narrar, é a questão fundamental da cena atual. Como construir, para o público de hoje, NARRATIVAS cênicas que possam realmente, instaurar no teatro o não convencional?” Penso que os homens e mulheres de teatro em todos os tempos, pelo menos do teatro de qualidade, estiveram preocupados com a forma de narrar e a cena anual o faz comprometendo-se com a vitalidade da arte teatral, visando a sua permanente transformação e eficácia. O problema está nessa busca quase obsessiva pelo não convencional. Daí o que se vê em cena é o não convencional que às vezes nada desperta no espectador, só enfado. Ocorre em Retábulo o medo da fabulação, o fantasma aristotélico. Daí surgem artífícios para fugir do linear e criam-se confusões. Portanto, tudo deve ser explicado por uma bula, como se o espetáculo necessitasse de um explicação externa a ele, para assim compreendermos o seu universo ficcional ou seja a própria teatralidade. 

Outro ponto preocupante de Retábulo é elocução. O texto é dito muitas vezes sem que se compreenda o que os atores dizem. Uma dicção falha compromete a comunicação. Como o espetáculo está em processo, esperamos que ele encontre o equilíbrio necessário para que se torne uma obra de arte cujos postulados estejam claros e evidenciados em cena. Mesmo que se leve em consideração a premissa do "trabalho em processo", Retábulo está sendo visto como um espetáculo com todo o aparato necessário para dar-lhe este sentido e por este motivo é que as observações são feitas a partir do que foi mostrado e não do que será.

Caio Rodrigo e Talis Castro
em
Pólvora e Poesia

Serei redundante: Pólvora e Poesia, é um espetáculo feito de elementos explosivos. Os elementos explosivos estão na vida dos dois personagens de que trata o texto, os poetas Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, um e outro emitindo centelhas fulgurantes, tanto na poesia quanto na relação apaixonadamente passional, outra redundância, que leva ao desfecho superlativamente teatral, muito bem explorado pelo dramaturgo Alcides Nogueira.

Tomando o material do dramaturgo e declarando-se um crente no “teatro do texto e do ator”, Fernando Guerreiro não nega sua declaração registrada no programa da peça. Assim, constrói o espetáculo dando suporte cênico para que os dois atores, Talis Castro (Rimbaud) e Caio Rodrigo (Verlaine), realizem aquilo que se espera de dois intérpretes que escolhem estar em cena com um texto tão explosivo quanto Pólvora e Poesia. Explosivo não somente por se tratar da história de uma relação homossexual que termina infernal para os dois amantes, mas, sobretudo pela densidade humana que se desprende do encontro dos dois homens, tradutores em si do apolíneo e do dionisíaco. Contenção e desregramento vão se mesclando e o que se vê é a descida ao mais profundo da alma humana. Espírito que quer se ver livre das amarras que a vida e que arte por vezes impõem. Transfiguração é o que se vê em cena. E Guerreiro sabe explorar os contornos da relação e expandindo-lhes os limites para nos dizer aquilo que o texto tem de melhor: amar é uma viagem transformadora para quem quer enfrentar de fato os caminhos de Eros.

No belo espaço da igreja da Barroquinha, um lugar ainda não explorado com a dignidade que merece, Rodrigo Frota cria uma sólida mesa que se desmorona logo após o início do espetáculo, dando-nos uma pista para entrarmos no mundo socialmente seguro do cidadão e artista Verlaine. Mundo que se desequilibra e rui ao contato com o mundo selvagem de Rimbaud, infante terrível. O módulo cenográfico com seus significado é completo por duas cadeiras e alguns poucos e necessários objetos que não desviam a atenção do conflito que se estabelece e cresce em cena. Nem mesmo a potente trilha sonora, um longo solo de guitarra executada ao vivo pelo seu criador Juracy Do Amor (belo nome), retiram o interesse do que acontece. Creio que tudo se dá pelo fato de que a organicidade dos elementos está posta a serviço de um todo que se amplia nas atuações de Rodrigo e Castro.

O vigor da encenação é visível no embate emocional e físico, este mais forte que o primeiro. Tal observação não diminui a qualidade dos dois intérpretes, mas vejo como um pequeno ruído em encenação tão eficaz. Por vezes, a intensidade emocional se mostra pelo grito, principalmente no trabalho de Caio Rodrigo, um ator mais experiente. Gritasse menos, sua interpretação ganharia mais densidade. Talis Castro mostra-se seguro, mas ainda não domina os rigores do ofício. Assim, resolve parte do seu trabalho cênico também no grito. Tanto um como o outro se dão melhor quando contidos expressam a tormentosa gama de sentimentos que caracterizam os personagens e sua problemática. Um maior aprofundamento emocional faria do trabalho dos atores um momento iluminador, como é o trabalho físico (ao separá-los, não considero um e outro apartado; as ações físicas são decorrentes das emoções). A intensidade do jogo corporal remet palco para o ringue. O embate é forte e impactante fazendo com que os corpos desenhem belas imagens no espaço, impregnando a cena de energia, suor, mas nenhuma lágrima. A cena da trepada, um ato de amor e volúpia selvagens, condizente com tema, completa a poesia derramada na cena pelo encenador.

Noção de tempo e ritmo é o que não falta da encenação transcorrida sem tempos mortos, mas com pausas necessárias que dão repouso a ação, logo intensificada pela trama que corre pulsante como a relação entre os personagens. 

Pólvora e Poesia é uma realização e tanto. Luz bem concebida, figurino quase perfeito (descartando o horrível sapato de Verlaine) e preparação corporal e coreográfica comprovam a capacidade dos profissionais em realizar as demandas estéticas do encenador.

O espetáculo merece ser visto. Que o público não desanime com a localização do teatro. Sei que o Centro de Salvador depois da 18:00h é assustador, mas ali, nas proximidades do Cine Glauber Rocha - Unibanco, a barra é menos pesada. Há sempre uma dupla de policiais e os seguranças do cinema dão suporte, suponho. Pela lateral do Cine, o acesso a igreja da Barroquinha é tranquilo.

Ainda que Verlaine tenha dito uma dia a propósito de Rimbaud que era a "vida inimitável", Pólvora e Poesia com suas qualidades estéticas potencializa a vida, aquela que é teatral e por isso nos entontece como um bom vinho, sem que percamos a capacidade de apreciá-lo. Assim é como o bom teatro.


Um grito de liberdade para Jafar Panahi, cineasta iraniano, autor de O Globo Azul e O Círculo.
O cineasta foi condenado a seis anos de prisão e proibido de filmar, escrever roteiros, dar entrevistas a meios de comunicação sejam eles locais ou estrangeiros por 20 anos.
É a morte de um artista!
E tudo porque discordou