sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Registro 417: Diário de Cachoeira - Bahia


Há três anos, fugimos do Carnaval soteropolitano para o descanso em Cachoeira, uma das cidades mais lindas da Bahia. Aqui me sinto bem. O tempo escorre com suas ladeiras e ruas num traçado original, com seus casarões centenários, seus cantos e seu rio. Cachoeira é uma cidade potencialmente rica para o turismo. Mas espero que não seja um turismo predatório. Chegamos na quarta-feira (06.02.2013) depois de viagem tranquila. Passamos por Santo Amaro percorrendo as suas ruas principais. Logo depois, seguindo as curvas da estrada, descemos até a Heroica  como todos os cachoeiranos a conhecem. Mais uma vez, desfrutamos do conforto da Pousada do Convento do Carmo. Os padres sabiam morar. A bela construção, necessitando de mais cuidado, é imponente. Para quem quer descansar um ótimo lugar. Imagino com teria sido a vida por aqui quando o lugar era habitado pelos Carmelitas. Não entrarei no mérito da ação destes frades na região. O que importa para mim é o patrimônio, deixado, retrato de um passado, cujo tempo e a ação do homem, nem sempre responsável, não destruíram, embora haja muita ruína em Cachoeira. O passado se apresenta a todo instante em “seus milhões de instantes já vividos e que permanecem presentes enquanto deles persistir uma lembrança ou um efeito”, como nos diz Marguerite Yourcenar em seu livro A Volta da Prisão (1992, p. 4).

Andando pelas ruas, ficamos sabendo que seria realizada a Quarta dos Tambores, evento em praça pública. Às vinte horas estávamos na praça em frente ao rio, o Paraguaçu. A programação foi aberta com um grupo de ogans. Eles tocaram e cantaram cantigas em louvor aos Orixás da nação dominante em Cachoeira, a Jêje. Uma senhora vestida de branco também cantou e dançou no meio da grande roda. Um bom público foi se formando. Em seguida apresentaram-se grupos de samba-de-roda. O primeiro deles, Esmola Cantada revelava as confluências entre o sagrado e o profano. Segui-se a apresentação dos Filhos do Caquende e dança esquentou ainda mais. Os espectadores, homens e mulheres, dançavam divinamente, com elegância, ginga, sensualidade e domínio do passo e do espaço. Impressionante a habilidade dos pares e de todos que arriscavam expressar o samba no pé. Samba no pé e nas vozes que desfiavam os mais lindos e tradicionais sambas, alguns conhecidos outros não. Uma noite inesquecível. Não arrisquei uns passos, para não passar vergonha. Tenho o quadril sem molejo, condição necessária para a execução da dança.

Na quinta, fomos a uma rezadeira que com galhos de aroeira nos rezou. Seguindo a tradição iniciada por seu pai, um famoso beato de Cachoeira. Deixei na folhas as mazelas e saí da casa da rezadeira sentindo-me leve. Lembrei-me da infância quando Davina, rezadeira das boas em Ipirá, rezava os filhos de Dona Ester e de seu Roque.

Um incidente na manhã calorenta. Da última vez que estivemos na cidade, a matriz estava em processo de restauro e por isso mesmo fechada. Agora, com as obras concluídas, a Igreja do Rosário encontrava-se aberta aos seus fiéis e visitantes. Resolvemos entrar para apreciar o templo. Pretendíamos assistir à missa e em seguida fotografar o belo espaço. As fotos deveriam compor o blog Igrejas da Bahia, hoje contendo imagens de cinquenta igrejas de Salvador, incluindo a Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, cuja decoração nos deixa extasiado. Pois bem, fomos proibidos de fotografar a Igreja do Rosário com a alegação de que o templo tinha sido roubado várias vezes. Sentimo-nos ofendidos, visto que fomos, de certa forma, acusados de sermos ladrões de igreja. O mais estranho é que tal medida tenha sido tomada depois que levaram a grande maioria das imagens. Presumo que as mesmas devam ser lindas e devem estar decorando alguma residência brasileira ou estrangeira. Feita a proibição nos retiramos. Antes, porém, nós protestamos. 

Um templo deve ser cuidado por seus responsáveis, mas não se pode proibir de fotografá-lo, desde que a máquina esteja adequada para tal função, sem flash, e não agrida os elementos decorativos nem as cerimônias religiosas e seus fiéis. Quanto a isto, estamos de acordo. Depois do sucedido, pensando cá com meus botões, dei-me conta de que a Arquidiocese e as Ordens Religiosas não botam um prego no seu patrimônio. Alegam determinações do Instituto do Patrimônio. Não botam prego, ou seja, não dão à mínima. Basta ver como ficou, por exemplo, o conjunto arquitetônico de São Francisco do Iguape, região perto de Cachoeira. É certo que o Instituto deve cuidar para que se mantenha o estilo de cada igreja, suas imagens, seus elementos decorativos, para que tudo isto não seja modificado aleatoriamente por pessoas que desconhecem a história da arte, ou sem a mínima sensibilidade para olhar o espaço e ver que não se pode inserir coisas conflitantes com a estética impressa pelos construtores das belas igrejas da Bahia e o Brasil. O mais sério de tudo é que este belíssimo patrimônio, independente da religião e da fé, é restaurado com verbas públicas. Portanto, somos nós, crentes e ateus, que destinamos o dinheiro recolhido pelos impostos para o restauro e a conservação dos edifícios, sejam eles igrejas, museus e outros. 

Não incorrendo em acusações, o certo é que os responsáveis pelas igrejas, ou seja, os padres, não estão nem aí. Não quero generalizar, mas é sabido que muitos deles dilapidam o patrimônio. Todos nós sabemos que tal acervo é cobiçado por colecionadores ávidos de botarem a mão nas ricas obras. Ladrões são muitos e de várias procedências... Não é o nosso caso. Podemos ser acusados de capturar os bens através das fotos, uma apropriação, mas que não causa dano ao patrimônio. Deixo aqui o meu protesto. Ah, além do mais, num época propícia ao turismo - a Pousada não me deixa mentir, visto seu bom número de hóspedes brasileiros e estrangeiros -, as igrejas de Cachoeira estão toda fechadas. E não somente elas. Tudo que pertence ao poder público também. Assim fica difícil manter viva está acolhedora e bela cidade que é Cachoeira, um poema entre morros, banhada pelo grande rio Paraguaçu, onde já não navega o vapor.

A sexta-feira amanheceu ensolarada. Depois do mergulho na piscina da pousada, fomos para São Félix, a vizinha cidade do outro lado do Paraguaçu. Queríamos ver a Bienal do Recôncavo em sua décima primeira edição, uma realização do Centro Cultural Dannemann.  Gostei do Centro e da Bienal. Não vou me deter nos trabalhos da mostra, são muitos; Mas não posso deixar de citar o de Flora Rebollo, os desenhos da Série Cortina Vermelha: Chapéu Mosquiteiro e Interior de Chapéu. A artista recebeu merecidamente, o grande prêmio. Da montagem, o único reparo é a cor dos painéis. As cores berrantes concorrem com muitas das obras. O Centro Cultural abriga uma sala onde um grupo de mulheres muito bem acomodadas em mesas enrolam charutos. Dannemann é uma fábrica de charutos. O resto do dia foi de passeio, fotos e depois muita preguiça.