Há
três anos, fugimos do Carnaval soteropolitano para o descanso em Cachoeira, uma
das cidades mais lindas da Bahia. Aqui me sinto bem. O tempo escorre com suas
ladeiras e ruas num traçado original, com seus casarões centenários, seus
cantos e seu rio. Cachoeira é uma cidade potencialmente rica para o turismo.
Mas espero que não seja um turismo predatório. Chegamos na quarta-feira
(06.02.2013) depois de viagem tranquila. Passamos por Santo Amaro percorrendo
as suas ruas principais. Logo depois, seguindo as curvas da estrada, descemos
até a Heroica como todos os cachoeiranos a conhecem. Mais uma vez, desfrutamos
do conforto da Pousada do Convento do Carmo. Os padres sabiam morar. A bela
construção, necessitando de mais cuidado, é imponente. Para quem quer descansar
um ótimo lugar. Imagino com teria sido a vida por aqui quando o lugar era
habitado pelos Carmelitas. Não entrarei no mérito da ação destes frades na
região. O que importa para mim é o patrimônio, deixado, retrato de um passado, cujo
tempo e a ação do homem, nem sempre responsável, não destruíram, embora haja
muita ruína em Cachoeira. O passado se apresenta a todo instante em “seus
milhões de instantes já vividos e que permanecem presentes enquanto deles
persistir uma lembrança ou um efeito”, como nos diz Marguerite Yourcenar em seu
livro A Volta da Prisão (1992, p. 4).
Andando
pelas ruas, ficamos sabendo que seria realizada a Quarta dos Tambores, evento
em praça pública. Às vinte horas estávamos na praça em frente ao rio, o
Paraguaçu. A programação foi aberta com um grupo de ogans. Eles tocaram e
cantaram cantigas em louvor aos Orixás da nação dominante em Cachoeira, a Jêje.
Uma senhora vestida de branco também cantou e dançou no meio da grande roda. Um
bom público foi se formando. Em seguida apresentaram-se grupos de
samba-de-roda. O primeiro deles, Esmola Cantada revelava as confluências entre
o sagrado e o profano. Segui-se a apresentação dos Filhos do Caquende e dança
esquentou ainda mais. Os espectadores, homens e mulheres, dançavam divinamente,
com elegância, ginga, sensualidade e domínio do passo e do espaço.
Impressionante a habilidade dos pares e de todos que arriscavam expressar o
samba no pé. Samba no pé e nas vozes que desfiavam os mais lindos e
tradicionais sambas, alguns conhecidos outros não. Uma noite inesquecível. Não
arrisquei uns passos, para não passar vergonha. Tenho o quadril sem molejo, condição
necessária para a execução da dança.
Na
quinta, fomos a uma rezadeira que com galhos de aroeira nos rezou. Seguindo a
tradição iniciada por seu pai, um famoso beato de Cachoeira. Deixei na folhas
as mazelas e saí da casa da rezadeira sentindo-me leve. Lembrei-me da infância
quando Davina, rezadeira das boas em Ipirá, rezava os filhos de Dona Ester e de
seu Roque.
Um
incidente na manhã calorenta. Da última vez que estivemos na cidade, a matriz
estava em processo de restauro e por isso mesmo fechada. Agora, com as obras
concluídas, a Igreja do Rosário encontrava-se aberta aos seus fiéis e
visitantes. Resolvemos entrar para apreciar o templo. Pretendíamos assistir à
missa e em seguida fotografar o belo espaço. As fotos deveriam compor o blog
Igrejas da Bahia, hoje contendo imagens de cinquenta igrejas de Salvador,
incluindo a Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, cuja decoração nos deixa
extasiado. Pois bem, fomos proibidos de fotografar a Igreja do Rosário com a
alegação de que o templo tinha sido roubado várias vezes. Sentimo-nos
ofendidos, visto que fomos, de certa forma, acusados de sermos ladrões de
igreja. O mais estranho é que tal medida tenha sido tomada depois que levaram a
grande maioria das imagens. Presumo que as mesmas devam ser lindas e devem
estar decorando alguma residência brasileira ou estrangeira. Feita a proibição
nos retiramos. Antes, porém, nós protestamos.
Um templo deve ser cuidado por
seus responsáveis, mas não se pode proibir de fotografá-lo, desde que a máquina
esteja adequada para tal função, sem flash,
e não agrida os elementos decorativos nem as cerimônias religiosas e seus
fiéis. Quanto a isto, estamos de acordo. Depois do sucedido, pensando cá com
meus botões, dei-me conta de que a Arquidiocese e as Ordens Religiosas não
botam um prego no seu patrimônio. Alegam determinações do Instituto do
Patrimônio. Não botam prego, ou seja, não dão à mínima. Basta ver como ficou,
por exemplo, o conjunto arquitetônico de São Francisco do Iguape, região perto
de Cachoeira. É certo que o Instituto deve cuidar para que se mantenha o estilo
de cada igreja, suas imagens, seus elementos decorativos, para que tudo isto
não seja modificado aleatoriamente por pessoas que desconhecem a história da
arte, ou sem a mínima sensibilidade para olhar o espaço e ver que não se pode
inserir coisas conflitantes com a estética impressa pelos construtores das
belas igrejas da Bahia e o Brasil. O mais sério de tudo é que este belíssimo
patrimônio, independente da religião e da fé, é restaurado com verbas públicas.
Portanto, somos nós, crentes e ateus, que destinamos o dinheiro recolhido pelos
impostos para o restauro e a conservação dos edifícios, sejam eles igrejas,
museus e outros.
Não
incorrendo em acusações, o certo é que os responsáveis pelas igrejas, ou seja,
os padres, não estão nem aí. Não quero generalizar, mas é sabido que muitos
deles dilapidam o patrimônio. Todos nós sabemos que tal acervo é cobiçado por
colecionadores ávidos de botarem a mão nas ricas obras. Ladrões são muitos e de
várias procedências... Não é o nosso caso. Podemos ser acusados de capturar os bens através das fotos, uma apropriação, mas que não causa dano ao patrimônio. Deixo aqui o meu protesto. Ah, além do mais, num época
propícia ao turismo - a Pousada não me deixa mentir, visto seu bom número de
hóspedes brasileiros e estrangeiros -, as igrejas de Cachoeira estão toda
fechadas. E não somente elas. Tudo que pertence ao poder público também. Assim
fica difícil manter viva está acolhedora e bela cidade que é Cachoeira, um
poema entre morros, banhada pelo grande rio Paraguaçu, onde já não navega o vapor.
A
sexta-feira amanheceu ensolarada. Depois do mergulho na piscina da pousada,
fomos para São Félix, a vizinha cidade do outro lado do Paraguaçu. Queríamos
ver a Bienal do Recôncavo em sua décima primeira edição, uma realização do
Centro Cultural Dannemann. Gostei do
Centro e da Bienal. Não vou me deter nos trabalhos da mostra, são muitos; Mas não posso
deixar de citar o de Flora Rebollo, os desenhos da Série Cortina Vermelha: Chapéu Mosquiteiro e Interior de Chapéu. A artista recebeu
merecidamente, o grande prêmio. Da montagem, o único reparo é a cor dos
painéis. As cores berrantes concorrem com muitas das obras. O Centro Cultural abriga
uma sala onde um grupo de mulheres muito bem acomodadas em mesas enrolam
charutos. Dannemann é uma fábrica de charutos. O resto do dia foi de passeio,
fotos e depois muita preguiça.