quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Registro 294: É carnaval no gueto

Aqui em Salvador já é Carnaval. Amplia-se o caos já instalado desde janeiro quando começaram os trabalhos para a montagem do megalómano gueto. Sim, um gueto. A cidade que em décadas passadas, bem lá pra trás se enfeitava e se abria convidativa para todos, agora divide e demarca sues espaços só para alguns. O folião mesmo fica na beiradas, come por fora as sobras que caem da festa negócio. E como negócio sempre houve em qualquer festa e no Carnaval mais ainda, é melhor esclarecer meu ponto de vista. Na festa carnavalesca, desde o entrudo, o negócio sempre esteve presente, mas havia nos carnavais passados algo inegociável. Nesse espaço transitava o cidadão/folião que não precisava comprar a alegria nem o espaço para brincar na festa da carne, das parte baixas, do desregramento, da desmedida, do descontrole. Agora, tudo é controlado. E quem não tem grana, fica a ver navios, chupa o dedo e conforma-se, visto que as leis do mercado tomaram conta da folia baiana. E são essas leis que mandam, controlam, organizam, delimitam.
Comecemos pela decoração. As ruas viraram uma grande mostruário de marcas, a dos patrocinadores. Essa é a decoração. A iluminação é aquela para aumentar a vigilância, ainda bem. Com tanto dinheiro, o amigo do alheio vai pra rua com a finalidade de ganhar o seu na marra. Não há mais os enfeites de luzes coloridas no trajeto dos brincantes. Os delicados arabescos nos transportavam para fora do cotidiano da luz branca e o colorido da luzes enchiam os olhos de cores. Agora temos a iluminação vigiar e punir ou a iluminação para favorecer à maquinaria da televisão.
Da mesma forma, relegou-se ao passado a decoração temática, obra de artistas (não de marqueteiros), que por concurso ganhavam o direito de enfeitar as ruas. Ruas que se abriam para qualquer folião que quisesse enfrentar os três dias de folia. Agora são sete. Os empresários do Carnaval decidiram nos escritórios em conluio com o poder público essa mudança, esticando a festa para ganhar mais uns trocados.
A cidade parece uma praça de guerra. Imensos e contínuos tapumes enfeiam tudo em nome da proteção. Antes, a cidade se abria para os anônimos e para os famosos. Os últimos vinham por querer conhecer a festa ou para revivê-la, e não para faturar um cachê. A participação de famosos, emergentes e estabelecidos, tornou-se um vício na festa do Carnaval da Bahia. Eles chegam com seu contrato debaixo do braço, circulam, sorriem, dizem frase óbvias e como a maior partes deles é peixe fora d'água, soltam barbaridades em frente as câmeras. E tome palavras de ordem amplificadas em decibéis. Num tempo não tão distante, os famosos vinham para cair na gandaia e se esbaldavam sem a preocupação com o visual, nem com os sorrisos de ocasião.
É esse Carnaval de ponta-cabeça que nos enfiam goela abaixo, com seus shows pasteurizados em cima dos atuais trios-elétricos, que de trios só tem o nome. Quem deveria cantar e animar, passa a maior parte do tempo numa arenga feito político de segunda, que fala muito e não diz nada. É esse o Carnaval "guetificado", dividido, excludente. O Carnaval do camarote. O Carnaval bacana dos sorrisos para as câmeras, e somente para elas. A festa da obviedade, discoteca vertical. Alguns poderão argumentar que o povo gosta. Eu contraponho: nem tudo o que o povo gosta é bom. Além disso, não há outra opção. Se houver me diga. A indústria do carnaval martela sua propaganda e nos vemos todos levados por esse canto de sereia. Fugir dele é difícil. Vão-se os dias de um trio elétrico que arrastava gente pobre e gente rica.
Ao perguntar aos mais próximos se estavam preparados para o carnaval, ouvia sempre a mesma resposta: "Como, se um abadá custa os olhos da cara?!" Eu argumentava: e por que não pular sem abadá? Silêncio. Daí, eu concluir: comprar um abadá dá destaque, você deixa de ser massa. passa a ser diferenciado. Estar sem abadá significa que você pode ser confundido com povão e ninguém quer ser comparado aos miseráveis.
Esse texto parece escrito por um antifolião. Engana-se o leitor. Trago na alma o folião que é filho de Rei Momo, que desde criança fez a festa vendo o pai se transformar em Rei Momo numa pequena cidade do interior. Mas como não há mais espaço para esse folião, festejarei meu Carnaval de outro modo. Tenho por certo que tudo se transforma, para pior ou para melhor, esse é o ritmo da vida. Então, vamos esperar a transformação, sabendo que ele será artificial, porque gestada por uma minoria que vai impor outro modelo de Carnaval, quando o atual não render o que os empresários desejam lucrar. É só dar tempo ao tempo.
Durante a folia, eu vou mergulhar nos livros, cozinhar, ler os blogs que estão registrados no Cenadiária, ver filmes, dormir e sonhar com outros carnavais. Como estou prisioneiro em minha casa, já que parte do dia não posso sair de carro, tentarei abstrair. Na hora em que der vontade, irei ver o que acontece. Assim, poderei tomar pé do reinado do Momo Pepeu Gomes, mais rei da guitarra que nobre de folia, embora tenha nos embalado com sua música durante outras festas.
Por falar em ler, ontem, por extrema necessidade, procurei Introdução Filosofia da Arte, de Benedito Nunes e outro título que gostaria de ler durante essa semana atípica, Vão-se os Dias e Eu Fico,de Edson Nery da Fonseca. Não encontrei nenhum deles. O de Nery é lançamento recente, o de Nunes é uma velho conhecido perdido entre mudanças e doações de livros. Nas quatro grandes livrarias da cidade, poucas para uma capital do porte de Salvador, o leitor (pesquisador ou não) depara-se com um cenário de baixa oferta. Tem uma livraria que se denomina Mega Store, mega somente no nome. Mas vamos deixar prá lá. Até quarta-feira de cinzas...