domingo, 30 de novembro de 2008

Registro 221: O que vai em mim e o que vai por aí

  • Ando meio preguiçoso. Ando trancado, ensimesmado, afastado. Cultivo as minhas idiossincrasias, tentando não afetar os outros; nem vontade de falar eu tenho. "Ando meio desligado e nem sinto os pés no chão", diz uma das letras dos Mutantes... Quando eu era jovem gostava de ouvi-los. Ainda gosto e muito.
  • Por que escrevo? Para não me entupir. Tenho ouvido Bach. Me acalma. Recebi a visita de um sobrinho-afilhado. Veio trazer o convite de casamento. Os jovens ainda casam com pompa e circunstância. Ao ouvir Bach, ele comentou: "A música é introspectiva", mas queria dizer que eu estava na fossa (esse termo é geracional), conclui. Qual o termo atual para fossa?
  • MUITO, aquele encarte do jornal A Tarde (não me peça opinião sobre ele), edição de hoje, traz uma reportagem sobre aquelas moças (Sarajane, Carla Visi, Márcia Short, Cátia Guimma e Márcia Freire) que fizeram sucesso em cima do Trio Elétrico e foram defenestradas para o país das ostras. Uma pena! São talentosas as moças...tanto quanto as congêneres que vieram depois ou ao mesmo tempo e estão aí megainvestidas A reportagem não diz tudo. Mas posso imaginar o buraco onde estavam e onde estão. Imagino que por culpa dos outros e delas também. No mesmo encarte, a diretora da fundação Cultural do Estado da Bahia, fala, fala e não diz nada... aproveitável. Do mesmo jeito o doutor Francisco Bosco... um amontado de frases feitas. Salva-se a indicação que ele fez ao pai, João Bosco: ler Dois Irmãos, de Milton Hatoum. Salva-se também No verão, melhor é ser aut+ista, de Aninha Franco. Garota esperta essa Aninha!
  • Recebi o telefonema de uma amiga-irmã que reside no balneário Rio de Janeiro, a cidade mais linda do Brasil. Ela pediu ajuda para resolver um dos trechos desses intermináveis formulários para patrocínio cultural - financiamento para teatro. Ela quer montar um texto e vem labutando com o MINC e agora vai labutar com uma dessas empresas de telefonia. O trecho referido era sobre a contrapartida social: "O que seu projeto vai fazer para democratizar a cultura?" Balela para aplacar a má consciência da dita empresa e agradar o governo populista que inventou essa história de contrapartida social.. Conversamos e ela me disse que vai precisar de uma cirurgia para retirar um tumor. Não fez drama nem estava apavorada.
  • A Cidade do Salvador continua suja e barulhenta na mesma proporção.
  • Berlin Alexanderplatz, o enorme filme de Reiner Werner Fassbinder foi lançado em DVD. Vale a pena ver no silêncio da sala de estar, sem a inconveniência de se irritar com o "educado" público que escolhe as sala de cinema para conversar, namorar, comer pipoca e balas, conferir e atender o celular. Ô luzinha irritante! O pior é quando você reclama, os ditos se sentem injustiçados, agredidos, numa flagrante inversão de valores!
  • Ler tem sido o maior prazer. E como! Prazer solitário mesmo. Daí me pergunto: essa história de que a narrativa e o livro estão fadados a morrer faz parte de uma campanha orquestrada para gerar interesse por outras mídias e suas formas de expressão? Interessa a quem discutir e difundir tal idiotice? Desviar grana, só pode ser. Nada substitui o prazer da escolha do livro, de abrir sua páginas, sentir no tato o papel, deixar o cheiro penetrar as narinas e os olhos se encantar com a capa, a diagramação e depois disso mergulhar no imenso oceano das palavras. Esse contato é de uma sensualidade indescritível porque muito particular. Depois de alguns anos imerso nos livros teóricos, em virtude das obrigações acadêmicas, retomo ao febril e estoteante gosto pela ficção. Leio um livro a cada semana. Registro os que li na seguinte ordem: Um Sonho a Mais, de Doris Lessing; Pastoral Americana, de Philip Roth; As Brasas, de Sándor Márai; Diário de Escola, de Daniel Pennac; , de Josef Roth (deixou-me enchacardo de lágrimas. Ah, vi Milágrimas, o belo espetáculo de Ivaldo Bertazo na TV SESC. O pessoal que faz dança-conceitual contemporânea devia olhar com olhos de querer ver para aprender ou reaprender a dançar). Agora começo a leitura de Menino de Lugar Nenhum, de David Mitchell, depois de ler a biografia de Ruth Rachou, escrita por Bernadette Figueiredo e Izaías Almada, despertando-me doces e engraçadas lembranças. Recomendo todos. Mas faça a sua escolha guiado (a) por outras opiniões. Reafirmo o prazer da leitura e não vou teorizar sobre isso. Prazer que eu aprendi com tia Edna, professora da escola primária em Baixa Grande e Feira de Santana. Ela perdia-se na leitura e ganhava o dia! Deixo-me de herança esse gosto pela leitura. Quando leio, não vejo a hora passar. Quando me envolvo nas teias de um autor, deixo-me agarrar...
  • Por falar em livro, a Edufba + Eduneb reeditaram de Silio Boccanera Júnior O teatro na Bahia da Colônia à República (1800-1923). Certa feita, tive acesso ao livro na sua primeira edição. Por necessidade, não resisti, fiz uma cópia. Agora tenho a segunda edição (2008).
  • Cleise Mendes, foi minha orientadora no mestrado e doutorado, lançou A Gargalhada de Ulisses, a catarse na comédia , livro derivado de sua instigante tese.
  • O livro que escrevo vai saindo lentamente. Ainda sem título, seus personagens assaltam as minhas horas dedicadas a outras atividades. Ocupo-me deles sem pressa. Tenho outros livros na fila, esperando a resposta das editoras. Espera angustiante.
  • Os alunos do curso de Artes Cênicas da Faculdade Social fizeram trabalhos interessantes no Seminário Interdisciplinar e na Mostra Didática das disciplinas Encenação e Interpretação III. É lamentável que o curso esteja acabando, mas temos três semestres pela frente e muito trabalho e cena e solos e performances. Dionísio é mais!
  • Para aguentar domingo só mesmo escrevendo. Êta dia chato! Principalmente pós-meio-dia.
  • No Estadão de hoje, mais precisamente no caderno Cultura, José Marcos Coelho escreve Sons de uma América Desconhecida e nos informa sobre Elliot Carter, compositor americano que aos 90 anos continua compondo. Reconhecido somente nos "círculos da vanguarda - sobretudo européia", ele é um ilustre desconhecido em sua terra natal. Lá para as tantas, Coelho pergunta: "Será que o critério fundamental para se aferir a qualidade da música de um compositor contemporâneo é avaliar em que medida o público a compreende e aceita? Isso seria nivelar por baixo, com certeza". Diante do que tenho visto por aí, fico tentado e reconhecer que a norma é essa, meu caro Coelho. Mas a minha parca abertura mental diz que NÃO. Se assim fosse Arte e Artistas (com maiúscula, propositadamente) estariam perdidos para sempre. E não estão! Em meio a arte errada (vide http://www.cadernosgrampeados.zip.net) cultivada por um grupinho que se acha o supra-sumo da vanguarda e as aberrações avalizadas pelo grande público massificado, pérolas são cultivadas.
  • Por falar em publicão, durante uma sessão do espetáculo Hamlet (Shakespeare, Aderbal Freire Filho) no Teatro FAAP-São Paulo, uma espectadora sentada na primeira fila levantou um cartaz com a seguinte frase: "Eu sou sua piscininha. Jogue-se aqui". Os dizeres, fora de hora e de lugar, foram dirigidos ao ator Wagner Moura, que, pasmem, parou para ler o cartaz, perdendo a concentração e rompendo com o ritmo da encenação. Em que lugar fomos parar?
  • Pérolas aos porcos!
  • A polêmica Tom Zé x Caetano Veloso, cansa! É certo que Tom Zé foi limado no auge do Tropicalismo ou depois. O que aconteceu de fato nunca veio a público. Graças ao seu talento e a Arto Lindsey, Tom Zé ocupa o lugar que merece. Agora faz sucesso, mas acho que o rancor amarga ainda a sua alma. Pra quem cuidou de rosas no jardim do condomínio onde residiu, o sentimento que guarda, ainda, não lhe cai bem. Mas tudo gera dinheirinho na caixinha de dona baratinha e a polêmica serve pra isso. Um pouco de bossa devia guiar os passos dos dois, que se mostraram muitas vezes elegantes!
  • Por que escrevo? Para estender pontes entre meu coração e o coração de quem se dispõe a ler o que escrevo
  • Chega! Por hoje é só. Como dizia Sílvio Lamenha: Poesia é axial!

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Registro 220: O Diário de Judith Malina

  • Em meio à pesquisa para elaboração da tese Transas na Cena em Transe: teatro e contracultura na Bahia (PPGAC - UFBA, 2007), deparei-me com a publicação, pelo Jornal da Bahia (1971), do diário escrito por Judith Malina quando presa no DOPS, Belo Horizonte, no período em que o Living Theatre veio ao Brasil a convite de Zé Celso e Renato Borghi. Originalmente, o texto foi publicado pelo jornal Diário de Minas.
  • O longo diário foi reproduzindo em seis números do Jornal da Bahia e estão arquivados na Biblioteca Central numa situação deplorável, visto que tem sido manuseado de qualquer jeito. Além disso, não recebem a atenção dos responsáveis pela guarda de tais documentos, embora os funcionário tentem manter o acervo. Mas o que falta na verdade é o investimento do poder público com vistas a preservá-lo. Papel velho não dá voto nem status. Parece interessar somente a essa gente obsessiva, os pesquisadores.
  • Por conta das condições dos jornais e temendo a perda do material, xerocopiei página por página e em seguida digitei o texto de Malina na forma como o encontrei. Isso acarretou lacunas, mas preservo o documento que me custou horas de trabalho. Sou péssimo digitador. Ah, eu devia ter feito um curso de datilografia, não é prof. George Mascarenhas?!
  • Através do Guia da Folha (31.10.2008) soube da publicação do Diário de Judith Malina pela Secretaria de Cultura de Minas Gerais - Arquivo Público Mineiro. Corri atrás da edição. Agora, conto com a totalidade do texto e espero usá-lo. Afora o Diário, documento inestimável para que se possa entender a passagem do Living por Ouro Preto, lugar onde residiu o grupo depois da impossibilidade de trabalhar com o Grupo Oficina, toma-se conhecimento de mais um dado da repressão efetivada pelos orgãos de segurança sob a égide do governo Médici. No período, a perseguição, a tortura e morte atingiu os militantes de esquerda, os dissidentes e as hostes contraculturais, todos empenhados em questionar e protestar, a seu modo, contra a supressão da liberdade e o regime ditatorial.
  • A bela edição mostra o empenho da comissão editorial e da Secretaria de Cultura em reunir o material, agregando outras informações sobre o Living Theatre. Fartamente ilustrado, impresso em papel Couchê, o livro oferta-se ao leitor como um objeto muito bem concebido graficamente. Consta de seu sumário, o Diário, os artigos Coisas que ficaram muito tempo por dizer, de Heloísa Staling, A reinvenção do teatro, de Adyr Assumpção, Sobre o Living no Brasil de Ilion Troya e uma cronologia das produções do Living Theatre do mesmo autor.
  • Recomendo o livro, uma pena que o mesmo não é comercializado, o que priva o acesso a ele.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

REGISTRO 219: Receita

21 DICAS PARA QUEM QUER SER UM ARTISTA (DE TEATRO)CONTEMPORÂNEO

As dicas não são de minha autoria. Recebi de Celso Júnior, diretor, ator, professor de teatro. O humor corrosivo das dicas não compromete a lucidez de cada uma. Ao contrário, aumenta-lhes a eficácia, principalmente nos tempos que correm. Divirta-se... e pense.

1. Monte uma cena toda em preto e branco, utilizando apenas alguns detalhes destoantes. (Outra dica pra não errar: acessórios vermelhos)

2. Termine o espetáculo assim como ele começou, pra passar uma idéia de ciclo.

3. Apoie sua montagem num jogo, de preferência num tabuleiro de xadrez, onde cada atorrepresente uma peça. Claro, conclua com xeque-mate.

4. Nomeie seu espetáculo de 'Processo' e não o termine NUNCA!

5. Nomeie seu espetáculo de 'Performance', mesmo não sabendo o que isso é direito.

6. Utilize uma mesa que se transforme em tudo; ora cama, ora porta, ora parede... e mesamesmo.

7. Nada de figurinos pesados: todo mundo de cinza e descalço.

8. Monte um clássico e faça a readaptação no nordeste ou na favela.

9. No cenário, o chão deve ser de barro, areia, mato ou café. Algo simbólico e que suje bastante.

10. Excite os 5 sentidos do público (ou 6, se conseguir), embora isso se resuma a acender um incenso, jogar água na platéia, servir vinho, encostar numa parede e mandar tomá-los no cu.

11. Misture dança, teatro, música e artes plásticas e não faça nenhum dos quatro direito.

12. Coloque algum aparelho elétrico ligado. De preferência uma cafeteira.

13. Diga que todo o seu processo com os atores se baseou em view point.

14. Convide alguém famoso pra dizer que indica a peça no programa, mesmo sem ele nunca ter assistido.

15. Monte em arena e delimite o espaço público-platéia com giz. Ah, se quiser sofisticar, filme e exiba as reações do público ao vivo num telão.

16. Ensaie seus atores com yoga, karatê, ginástica olímpica, box, capoeira e meditação. Menos com teatro.

17. Crie maneiras de interagir com o público. Entregue fones de ouvido tocando um lounge bem blasê e/ou alguém texto de auto-ajuda, enquanto os atores fazem partituras de movimento.

18. Crie a sua própria trilogia.

19. Coloque algum ator fazendo um depoimento pessoal no microfone.

20. Pra ser contemporâneo, tem que ter secreção. Peça para o ator suar bastante ou cuspir em cena.

21. Por fim, limite o número de espectadores, de preferência 3, e lote todos os dias.

É infalível!

domingo, 16 de novembro de 2008

Registro 218: Uma foto fetiche, uma estréia auspiciosa

O presente texto foi motivado por dois fatos; ter recebido de minha grande amiga, a atriz Cleide Queirós, a foto que ilustra esse registro e a estréia de Álbum de Família, de Nelson Rodrigues, espetáculo de conclusão de curso dos alunos de Artes Cênicas da Faculdade Social, turma que ingressou em 2004. Álbum de Família, com direção do professor e dramaturgo Paulo Henrique Alcântara estreou no Teatro Vila Velha e cumpre temporada até 18 de novembro.

Os acontecimentos fizeram-me recordar a passagem pelo Teatro Popular do SESI, quando fiz Oromar, um dos personagens de A Falecida. A presença de Nelson Rodrigues na platéia deixou o elenco expectante. No final do ensaio geral ele subiu ao palco para falar com todos nós e posar para a foto. Guardo-a como um fetiche. Na estréia, o autor compareceu acompanhado por sua esposa e irmãs. Uma família rodriguena.

Quando cheguei a São Paulo no começo da década de 70, o Teatro Popular do SESI – TPS, uma realização do saudoso diretor Osmar Rodrigues Cruz, mantinha-se em atividade desde 1962, quando as atividades teatrais realizadas pelo órgão patronal foram oficializadas sob o nome de Teatro Popular do SESI. Seu idealizador tomou para si a empreitada de juntar às suas idéias sobre teatro popular as de Jean Vilar e Romain Roland.

O TPS, até a inauguração de sua sala de espetáculo no prédio da FIESP (1977), alugava os bons teatros da cidade, mantendo em cartaz um repertório eclético de peças consagradas da dramaturgia universal e textos nacionais de qualidade. Textos e que não fossem de encontro ao pensamento da instituição patrocinadora. O TPS não cobrava ingresso e um dos seus objetivos era oferecer bons espetáculos para os trabalhadores da indústria, ampliando o seu público ao longo de sua existência e tornando-se uma referência para São Paulo. Sempre que uma peça estava em cartaz, filas enormes se formavam na porta do Teatro do SESI para trocar a filipeta distribuída ao longo da semana pelo ingresso do dia.

Os elencos do TPS tinham emprego garantido por muito tempo, já que as peças ficavam em cartaz durante anos. Na maioria das vezes, os atores eram aproveitados nos espetáculos seguintes, mantendo-se o contrato e a carteira assinada, fato que garantia os direitos trabalhistas e os reajustes salariais conforme as diretrizes do SESI.

Assim que passei a fazer parte da classe teatral paulistana, percebi que os espetáculos do TPS eram considerados “teatrão”, portanto conformados a uma estética “careta”. Os atores que contratados eram (des)qualificados de “funcionários de teatro”, gente conformada, sem grandes vôos artísticos. Essa atitude preconceituosa disseminada entre setores da classe teatral revelava a atitude preconceituosa de quem olha para o próprio umbigo, como se dele surgisse a única referência estética de qualidade. Muitas vezes ouvi críticas debochadas sobre aqueles que trabalhavam nas produções do TPS. Eu mesmo fui contaminado por essa atitude; deixei-me levar pelas idéias daqueles que não aceitavam a proposta estética de Osmar Rodrigues Cruz, até que fui indicado por Flávio Império para o elenco de A Falecida, de Nelson Rodrigues, encenação estreada em 1979. Confesso que a princípio me senti desconfortável, já que ia fazer parte dos “funcionários de teatro”.

Embora soubesse que aquela estrutura não preenchia a minha inquietação de artista, logo percebi que teria boas condições de trabalho e que podia aprender com um profissional que sabia muito bem o que queria dos seus atores. Osmar Rodrigues Cruz mostrou-se sempre conhecedor do palco e fazia o ator render, indicando-lhe tempos, ritmos e efeitos necessários para a cena. Além disso, eu podia contar com a genialidade de Flávio Império, artista que realizou para o TPS os mais belos e inteligentes cenários dos últimos anos de uma deslumbrante carreira. Portanto, busquei o que me interessava enquanto artista, além de saber que ganharia um bom salário, obtendo também assistência médica.

No mais, pela primeira vez participei de uma produção que estreava com tudo pronto. Nos quinze ensaios antes da estréia, o espetáculo estava no palco, com a iluminação, cenários e figurinos. Não faltava nada e o elenco sentia-se seguro para explorar as possibilidades dos elementos cênicos. Até aquela data, depois de onze anos de carreira, eu não passara por essa experiência. Em sua maioria, as produções não davam conta de todos os elementos do espetáculo, o que tornava o ensaio geral um sobressalto e a estréia um momento para além da tensão esperada.

Vi bons espetáculos dirigidos por Osmar Rodrigues Cruz: Caiu o Ministério, de França Júnior (1973), Leonor de Mendonça, de Gonçalves Dias (1974), O Poeta da Vila e Seus Amores, de Plínio Marcos (1977), Chiquinha Gonzaga, Ó Abre Alas, de Maria Adelaide Amaral (1983), O Rei do Riso, de Luiz Alberto de Abreu (1985), O Santo Milagroso, de Lauro César Muniz, Muito Barulho por Nada, de Shakespeare (1986). Esses espetáculos eram cercados de apuro técnico, acabamento e qualidade artística, comunicando-se com seu público e contribuindo para a formação de platéias. As montagens com elenco numeroso, contava sempre com nomes consagrados, intérpretes conhecidos que se encarregavam dos principais papéis e atores talentosos nos segundos e terceiros papéis.

Saí do Teatro Popular do SESI para fazer Geni (1980), um projeto de Marilena Ansaldi e José Possi Neto, mesmo sabendo que ator que saísse dos espetáculos do TPS antes do final do contrato dificilmente voltaria a trabalhar na instituição, visto que essa era a norma vigente. A inquietação e a promessa de um trabalho mais arrojado motivaram a minha decisão.

Para minha surpresa, em 1982, fui chamado por Osmar Rodrigues Cruz para fazer parte do elenco de Coitado de Isidoro, peça na qual faria o protagonista. Ao ler o texto – depois de ter a carteira de trabalho assinada – caí do cavalo. A comédia era muito ruim, um texto sem nenhum valor dramatúrgico, destinado ao núcleo do Teatro Popular do SESI em Santo André e para excursionar pelo interior. Acredito que o próprio Osmar sabia que o texto era ruim. E até hoje não sei quais os motivos que o levaram a encenar tal coisa. Mas a situação, embora incômoda para mim, foi se tornando mais favorável, já que aprendi com Osmar Rodrigues Cruz a fazer comédia, um gênero que eu recusava representar. Desde meu aprendizado na Escola de Teatro da Ufba, eu não me sentia capaz de fazer ri a mais benevolente platéia. O pavor do ridículo foi diminuindo à medida que Osmar dirigia a mim e aos meus companheiros de elenco. Mesmo assim, por várias vezes durante a temporada, fui acometido de pavor antes de entrar em cena. Mas acontecia algo mágico: o espetáculo era bem recebido pelo público que ria de tudo que os atores faziam em cena. E a bobagem, Coitado do Isidoro, funcionava às mil maravilhas e eu dava conta do recado, livre dos meus receios e solto em cena. Agradeço a Osmar Rodigues Cruz e a Fancisco Medeiros, seu assistente naquele período, a possibilidade de descobrir uma qualidade que eu não imagina ter como intérprete.

Para conhecer o trabalho de Osmar Rodrigues Cruz, dono de uma portentosa biblioteca, cujos livros sobre teatro enchiam a maior parte das estantes, eu recomendo a leitura de Osmar Rodrigues Cruz, Uma Vida no Teatro (Hucitec, 2001), de sua autoria juntamente com Eugênia Rodrigues Cruz, sua filha. Sobre a encenação de A Falecida, ver o livro de Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues, Dramaturgia e Encenações (Perspectiva, 1992).

Álbum de Família, a encenação de Paulo Henrique Alcântara, emoldurada operisticamente, revela um elenco de jovens atores que encerram um período do seu aprendizado para iniciar outro, o da vida profissional. Muito bem dirigidos pelo professor-diretor, o rendimento geral do elenco é notável, com destaque para alguns intérpretes, aqueles que conseguem se destacar sem que se perca o equilíbrio necessário para apreensão do todo. Creio que esse destaque deve-se ao fato desses alunos-atores compreenderem melhor o personagem, entregando–se aos esteios da concepção cênica e, sobretudo, por escutarem de forma sensível as sugestões do encenador e de Juliana Rangel encarregada da preparação vocal e corporal do elenco.

Contracenando com Vivianne Laerte, atriz convidada, os formandos do curso de Artes Cênicas da Faculdade Social– Alexandre Moreira, Andressa Manso, Iriane Santana, Isabella Gusmão, Mariana Brandão, Newton Olivieri, Pedro Augusto, Vagner Marques, Vanessa Meyer e Viviane Veiga – puderam aproveitar a experiência de uma atriz profissional, e isso se reflete em cena. Cena densa, superlativa, qualidade que o texto de Nelson Rodrigues explora ao limite da saturação e que Paulo Henrique Alcântara não ameniza, mas exacerba. A potência do texto de Nelson Rodrigues é escancarada pelo encenador sem nenhum pudor. O elenco, dentro de suas possibilidades, sustenta com segurança o clima pesado, fazendo a platéia reagir de maneira positiva. Não estivesse o elenco ciente da proposta de Paulo Henrique Alcântara o resultado poderia ser desastroso. O que não é. Recebe-se aquele mundo extremamente doente sem rejeição ao espetáculo. O riso aparece no momento certo, provocado pelas famosas frases do autor.

A opção do encenador deixa o espetáculo em um único tom, do início ao fim, quebrando-se a atmosfera grandiloqüente somente na cena de Glória e Teresa, quando o sopro do lirismo rebaixa o diapasão constante do espetáculo. Esse rebaixamento não quebra o ritmo, não afrouxa a tensão e inunda a cena de outra luminosidade. A encenação ganharia outras modulações se Paulo Henrique Alcântara dosasse a intensidade, sem deixar de seguir a sua opção pela impostação operística, um enquadramento coerente com o universo da peça, classificada por Sábato Magaldi como um das Peças Míticas. As outras são: Anjo Negro, Dorotéia e Senhora dos Afogados. Parece-me que o encenador se deixou levar pelas obsessões do autor, exacerbando um conteúdo já em si desmesuradamente arrebatado. Essa substância exposta de maneira tão chapada levou Sérgio Milliet (1) à seguinte conclusão: "Tão límpida é a casuística psicológica que, por vezes, sua literatura descamba para a ilustração psicanalítica e deixa de nos empolgar como obra-de-arte em si, que a arte não explica mas sugere, não resolve nem analisa problemas (o que cabe à ciência), mas aponta a sua inexorável existência".

O espetáculo mostra-se empostado como um ritual com tintas expressionistas, coerente também com a concepção que amarra o espetáculo. O cenário de Rodrigo Frota, muito bem concebido e adequado, os figurinos de Rino Carvalho, a trilha sonora de Luciano Bahia e principalmente as interpretações, definem a qualidade do espetáculo e são apreendidos pelo espectador como parte integrantes de um todo muito bem elaborado. Os elementos cenográficos, portas-altares, lembram também gavetas de cemitério, e baús, são signos fortes dimensionando o conteúdo do texto, embora a utilização dos baús seja tímida. O uso do espaço da sala do Teatro Vila Velha é bem realizado, expandindo-se a cena para além do palco italiano, lugar onde se concentra maior parte da ação. A luz, concebida com precisão por Fernanda Paquelet, colabora para a atmosfera trágica que a cena requer. Quanto aos figurinos, algumas objeções, visto que a idéia é boa, mas a realização fica a dever. Os figurinos dos personagens, Senhorinha (imensa calda do vestido), Guilherme (jaquetão com uma cruz nas costas), Glória (quando volta do internato) e Jonas, receberam um tratamento que se revela um equívoco. Isso não acontece com os demais, posto que foram concebidos e bem realizados, mostrando-se teatralmente fortes e ajudando os atores na composição de seus personagens e na movimentação em cena. Destaque para as roupas de Tia Rute, Heloísa, Teresa.

Os aspectos pontuados como negativos não desmerecem de nenhum modo a encenação. Produção cuidadosa, ofereceu condições para que o encenador realizasse no palco as imagens que concebeu a partir da leitura que fez do texto de Nelson Rodrigues. Paulo Alcântara soube construir uma forte e bela encenação, com momentos intensos e inesquecíveis. Os execessos não comprometem a organicidade da cena. Sem negar o autor escolhido, o encenador não fica subserviente ao texto. Revela sua paixão pelo autor, mas não se coloca timidamente diante do monumento que é o "Anjo Pornográfico". Ao mexer na estrutura da peça, ele ressalta pontos e com isso ganha fôlego. Encenação corajosa, desmesurada, não demonstra tibieza. Penso que os alunos-atores e Viviane Laerte saem enriquecidos dessa experiência. Não é sempre que intérpretes têm condições de fazer os personagens de uma peça como os de Álbum de Família, um aprendizado para qualquer ator/atriz. Infelizmente, ainda não chegamos ao ponto de poder encenar, profissionalmente, textos do calibre de Álbum de Família, mantendo-os em cena com a regularidade necessária para uma apreciação mais profunda do legado dos nossos dramaturgos e de sua adequação ao gosto das platéias. Platéias que podem fazer escolhas e não apenas aceitar o corriqueiro, o descartável, aquilo que não exija muito do seu tempo, de sua sensibilidade, do seu raciocínio. Uma temporada teatral não se faz apenas por um tipo de espetáculo, mas se sustenta e se afirma pela diversidade que não deve ser fruto da imposição mercadológica nem pela imposição do dirigismo cultural de minorias que se querem salvacionistas. A montagem de espetáculos de qualidade artística, cuja densidade dramática é ressaltada pela inventividade da encenação, termina por educar o público,torná-lo mais sensível e aberto para a densidade proporcionada por experiências que se afastam da mesmice.

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1 MILLIET, Sérgio. Álbum de Família. In: Magaldi, Sábato (org.) Nelson Rodrigues: teatro completo. Rio de Janeiro: Nova Auilar, 2003, p. 207-208.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Registro 217: Aqueles Dois

AQUELES DOIS
ÚLTIMO ESPETÁCULO QUE VI NO
FESTIVAL DE ARTES CÊNICAS DA BAHIA


Aqueles Dois, a encenação do conto de Caio Fernando de Abreu e aqueles quatro atores interagindo de forma precisa permanecem presentes no decorrer da semana, ativando a minha memória. Inesquecível exercício de teatro, longe da mesmice, longe dos modismos herméticos que só uma panelinha de iniciados compreende. Teatro para muitos ou pelo menos para quem tem o hábito e o gosto de ir ver teatro.

O sensível conto de Caio Fernando gerou o filme de mesmo nome, dirigido pelo gaúcho Sérgio Armon, lançado em 1985, uma realização não muito feliz. Faltava poesia. Agora chega ao palco numa produção da Cia. Luna Lunera de Belo Horizonte. Espetáculo engenhoso, mostra-se muito bem acabado e sua “mecânica” é uma atrativo para o espectador. Quatro atores em cena vivendo os dois personagens Saul e Raul, que por acaso se conhecem numa repartição pública ou numa firma, tanto faz. A despeito do ambiente mesquinho e sombrio do lugar onde ganham o pão, os dois se afinam numa relação que vai se construindo delicadamente, humanamente. E assim, adentramos na vida dos dois. A princípio, poucos gestos, monossílabos e frases curtas se transformam em diálogos e confidências, sedimentando esse encontro e a amizade entre opostos. Um extrovertido, Raul. O outro, Saul, amargo e crítico. A afeição cresce entre eles, e os dois passam a ser alvo da maledicência, da inveja e do preconceito dos colegas de trabalho.

Essa relação é mostrada de maneira precisa. O palco, um quadrado forrado com linóleo ocre. Em volta dessa área vários objetos, incluindo uma vitrola, um microfone com amplificador, são utilizados pelos atores durante a ação. Essa série de objetos identifica, não realisticamente, os ambientes por onde passam os personagens: apartamento de um, quarto de pensão do outro e sala de trabalho dos dois. O objeto de maior presença são gavetas. Elas se transforma em pastas, cadeiras, bancadas; completa a cena, máquinas de escrever, luminárias, xícaras e garrafa térmica para café, discos, papéis e lápis cera. Esses objetos definem o mundo dos dois personagens. Na dinâmica da encenação os atores dialogam entre si e identificamos Raul e Saul pelas cores das roupas. Duas duplas estão de azul e preto, duas de marrom e branco, ternos de trabalho gastos e amarfanhados.

A encenação joga com a multiplicidade e tira partido dos meios tons sem banalizar o ato teatral em si. O elaboradíssimo jogo de marcações executado com precisão pelos intérpretes é absorvido pela platéia, atenta ao desenrolar da história e também à inteligente e criativa forma com que a encenação foi elaborada. Essa interação entre conteúdo e forma acarreta alguns problemas, como por exemplo, a narração repetindo o que ação já revelou. Mas os senões não afetam a qualidade do trabalho. As soluções criativas surpreendem. O espaço em arena é bem explorado. Os intérpretes dão conta dos personagens. Alguns pequenos ajustes no tempo do espetáculo, talvez alguns cortes possam potencializá-lo.

A encenação de Aqueles Dois não descamba para o piegas, nem para intensidade dramática. O grupo acertou ao optar pelo intimismo e sutileza, elementos contidos no conto de Caio Fernando de Abreu. E tal qual a canção Tu Me Acostumbraste, vamos interagindo com a atmosfera, mergulhando a cada instante na proposta e ficamos cativos aos meios-tons que nem a cena do nu rompe. Penso que a cena na forma como se organiza não cria resistência por parte de uma platéia não acostumada com a nudez masculina em cena. Também não há gratuidade, já que a cena faz sentido e é um dado importante para compreensão da psicologia dos dois homens, Saul e Raul.

Desejamos que Cia. Luna Lunera continue sua pesquisa, escavando camadas da tradição teatral para extrair espetáculos estimulantes e revigorantes, cuja invenção se mostra intensamente comunicativa e elaborada.

sábado, 1 de novembro de 2008

Registro 216: A cena aberta, impressões sobre "Hysteria"

Hysteria, criação coletiva do Grupo XIX de Teatro (São Paulo) e Aqueles Dois, adaptação do conto homônimo de Caio Fernando de Abreu, pela Cia. Luna Lunera (Belo Horizonte) foram os dois últimos espetáculos do FIAC que escolhi para ver. Depois do fiasco que foi Good Exist, vindo da distante e simpática Noruega, ver os espetáculos paulista e mineiro foi reconfortante. Aliviado, recebi a experiência estética proposta pelos dois grupos, absorvendo-as sem resitência. Mas não afirmo que os dois espetáculos sejam fáceis de digerir e que não apresentem problemas na estrutura. Entretanto, as duas experiências exigem da nossa inteligência e da nossa sensibildade. Tanto uma como a outra, embora tragam a marca da pesquisa, criam empatia, visto que os elementos constitutivos da encenação podem ser apreendidos pelo espectador medianamente acostumado com ato teatral. No primeiro momento, tanto uma como a outra aguçam a curiosidade, que no desenrolar da ação vai sendo satisfeita. E não precisamos de manuais ou exercícios mentais elaboradíssimos para captar o que a cena propõe e revela.

Hysteria é fruto de um intenso trabalho de busca e se debruça sobre histórias de mulheres confinadas em instituições de tratamento psiquiátrico – Hospício Dom Pedro II, Rio de Janeiro, por volta de 1850. Tidas como doentes por seus pais ou maridos, as mulheres foram retiradas do convívio familiar para se tornarem reclusas em um mundo de dor, mundo controlado sempre por homens, os doutores. Estes, imbuídos do cientificismo positivista que domina o século XIX e boa parte do XX, diagnosticam e aplicam o tratamento contra o que determinam ser uma patologia. Na leitura dos doutos, qualquer comportamento desviante das mulheres é tipificado como caso clínico de histeria. Esclareço que os dotoures não estão em cena, eles são apenas mecionados na pessoa de Dr. Mendes.

Essas mulheres que estiveram mudas por muitos anos agora falam. E o lugar da fala é em Hysteria; aí, elas narram sobre suas alegrias, desejos, sonhos, medos, amores, desesperos, filhos, casamento, sexo e sobre tudo que diz respeito ao humano, particularmente o feminino. Juntam-se a elas as mulheres do século XXI. Elas adentram a sala onde se representará Hysteria não mais como espectadoras, mas como atuantes.

Cabe aos homens o incômodo papel de assistentes/espectadores. Eles, sentados separados das mulheres, formam um grupo compacto, enquanto elas num grande círculo interagem com as cinco atrizes que se esmeram em dar vida aos personagens conduzindo a ação com firmeza. De forma segura, elas agem e conduzem a ação; algumas vezes de maneira autoritária outras de cativante e envolvente afeto. Assim, o grupo que foi ao teatro para assistir termina por fazer parte integrante da ação dramática. Ecos grotowskianos.

Em Salvador, o evento se deu no espaço do Instituto Feminino, hoje um museu, mas outrora tradicional instituição educacional, marcadamente católica e de rígidos princípios morais e educativos. A escolha não podia ser mais acertada. O espaço, com sua carga histórica e simbólica, abriga as vidas confinadas de Nini, Clara, M.J. , Hercília e Maria Tourinho as personagens vividas pelas atrizes Janaína Leite, Evelin Klein, Juliana Sanches, Sara Antunes e Maria Helleno, sob a direção de Luiz Fernando Marques.

A encenação despojada, usa como cenografia o espaço do Instituto e a luz que entra pelos janelões da sala. A luminosidade natural marca a passagem do tempo: o real e o imaginário. Entre um e outro sutis diferenças. Não há refletores, não há cenografia construída. O que há é apropriação do espaço. Os figurinos sem o rigor da reconstituição histórica remetem ao passado, ao desgastado. Tecidos amarelados pelo tempo, tons pálidos, rendas e filós dão a medida da permanência das vidas trancafiadas. São metáforas da delicadeza ultrajada.

À medida que o espetáculo acontecia fui me sentindo constrangido por estar ali como um intruso, um fora-do-lugar. Ao mesmo tempo deixei-me levar pela emoção. A cada instante submergir emocionalmente. Confesso: derramei lágrimas. Tal carga emotiva não suspendeu o juízo crítico. Ele agiu em dois sentidos: primeiramente pensei na condição feminina numa sociedade ainda machista e esse pensamento me levou para as lembranças particulares; repassei a vida das minhas avós, das minhas tias, da minha mãe... de minhas irmãs. Depois, não consegui deixar de pensar no ato teatral, sua concepção, sua construção, sua execução. Mas essa apreciação não se processava friamente distanciada. As imagens, as idéias e, sobretudo as sensações aconteciam sincronicamente ao meu estado psicofísico. Fui agarrado por esse acontecimento teatral tão próximo da vida, como queriam os artistas, que respaldados nos esperimentos das vanguardas históricas defenderam um teatro participativo, de comunhão e integração verdadeiras com a platéia, ali por volta dos anos 60 e 70, quando as idéias da contracultura animaram o teatro, o te-ato.

Pode-se discutir a imposição das atrizes sobre as mulheres sentadas no círculo. Mas penso que nenhuma delas foi obrigada a entrar no jogo. Mas se assim fosse, não era essa a regra institucional higienista vigente na casa de tratamento? Essa e outras questões perpassam o espetáculo. A interatividade proposta pelo grupo pode provocar rejeição por parte da platéia feminina, mas cada qual entre no jogo se quiser. Penso que as portas não estavam aferrolhadas, cabendo a cada uma o direito da recusa.

Ao sair do Instituto Feminino depois de ver as personagens envolvidas nas sombras do fim do dia e perdidas pelos corredores e salas entoando uma cantiga melancólica fiquei com a certeza de que o fenômeno teatral, essa arte sempre ameaçada de morte, está vivo. Ele nos proporciona experiências enriquecedoras, mesmo quando negamos a sua força, por discordamos esteticamente, ideologicamente ou por não encontramos elo entre o que se vê no espaço cênico e o nosso universo cognoscível. No livro-programa, extenso material sobre o espetáculo, Flavio Desgranges, professor de Teatro da ECA/USP, escreve o texto A Posição de Espectador em Hysteria, dando-nos pistas para analisarmos esse ato que se constrói entre emissor e receptor e conclui com algumas perguntas. Uma delas: “Como pensar uma arte teatral efetiva em nossos dias?” O Grupo XIX de Teatro responde com seu trabalho, outros agrupamentos responderão de muitas outras formas. Com isso, alargamos as nossas ferramentas para compreender o fenômeno teatral e separar alhos de bugalhos.

Oportunamente comento Aqueles Dois.