sábado, 29 de outubro de 2011

Registro 370: filme, lembranças, livros e lírios

São precisamente 19:51 desse horário inventado, nada contra. Acabo de retornar do Cine Glauber Rocha onde fui ver Palhaço de Selton Melo. Ecos do passado perpassam o filme, mas não há saudosismo piegas. Sabemos que o circo está morrendo, mas o trabalho do ator-diretor não é réquiem. 

Sutil, delicado e perpassado de humor, o filme prendeu minha atenção. São belos os planos, a ambientação e, sobretudo, o entrosamento do elenco. Cada qual desempenha o seu papel em harmonia com a proposta do diretor e completam a atuação dos protagonistas, Paulo José e Selton Melo. Uma bela trupe de profissionais se encarrega de encher a tela de poesia. Não há pieguice, como não há humor grosseiro, uma tônica destes tempos tão arreganhados e desmedidos. Para completar, o diretor entrega a Moacir Franco (o humorista-cantor), a Jorge Loredo (o Zé Bonitinho) e a Ferrugem (o ex-menino prodígio) pequenos papéis, completando o painel de personagens todos eles cativantes. Ao longo do filme, outras homenagens: uma casa comercial chama-se Aretusa, nome de um circo famoso, o personagem de Selton Melo (Pangaré, o palhaço) tem o nome do famoso palhaço Benjamin Oliveira e o de Paulo José (o palhaço Puro Sangue) denomina-se Valdemar, uma referência a Arrelia (Valdemar Seyssel). Este último eu conheci em São Paulo.  

Lembrei-me dos circos que frequentei na minha infância: o Nerino, o Pavilhão Zé Bezerra, o Circo São Raimundo, onde Maria de Jesus e Ducycleide disputavam a preferência do público masculino. A primeira, de sensualidade recatada, se é que isto existe, era morena de longos cabelos pretos. A outra, despudorada, extravasava sex-appeal de loira oxigenada. Uma delícia vê-las em seus números. Como chamariz de público, a propaganda alimentava a rivalidade entre as duas. Durante a temporada  do circo em Ipirá, Maria de Jesus e outros artistas residiram numa casa perto da minha, mas não tive coragem de me aproximar. Fascinado, eu acompanhava o dia-a-dia daquela gente para mim tão estranha, visto que conseguiam, todas as noites,  elevar-se acima do cotidiano.

Muitas vezes, no final da tarde, quando o palhaço com pernas de pau e megafone percorria as ruas gritando “Hoje tem espetáculo?!”, eu fazia parte do grupo de meninos que respondia: “Tem sim senhor! Por este feito, nós éramos marcados no braço com tinta preta e assim, entrávamos sem pagar na função da noite. O duro era tomar banho sem que a marca desaparecesse. Devo muito do que sou ao circo, a estes artistas que me faziam sonhar em querer ser um deles.

Não vi Palhaços de Federico Fellini, mas tenho a impressão que há no filme de Selton Melo respiros fellinianos.  O olhar maroto do palhaço Pangaré dá lugar ao tristonho de Benjamin, desejoso de alguém ou de alguma coisa que o faça rir. Sua fixação no ventilador torna-se uma metáfora para o sufoco vivido por este palhaço que tenta romper com a sua identidade, mas como um filho pródigo retorna ao pai e à lona.

Na saída, comprei um livro. Borges, oral & sete noites, são aulas que escritor argentino proferiu a convite da Universidade Bolonha. Enquanto esperava o ônibus na Praça Castro Alves, vazia, sob a luz do entardecer, comecei a leitura do primeiro texto curto, O livro. Borges nos diz que “pegar um livro e abri-lo contém a possibilidade do fato estético”.  Borges escreve:  “Em primeiro lugar, mencionarei Montaigne,  que dedica um de seus ensaios ao livro. Nesse ensaio há uma frase memorável: “Não faço nada sem alegria”. Montaigne afirma que o conceito de leitura obrigatória é um falso conceito. Diz que quando encontra uma passagem difícil num livro, deixa-o de lado; porque vê na leitura uma forma de felicidade”. Confesso que não li Montaigne, mas estou a concordar com ele.

Por falar em livros, um deles me levou até o Colégio Antônio Vieira na noite de 26, próximo passado. Fui ao encontro de estudantes do programa de educação de jovens e adultos. Faz tempo não sou acolhido com tanto carinho nem sou ouvido com tanta atenção. Estudantes de 18 a 60 anos, presumo, e professores enchiam o auditório para uma conversa sobre identidade, tolerância/intolerância, inclusão e exclusão, tudo que a razão enlouquecida provoca nos tempos que correm. Eles tinham lido o meu livro Da Costa do Ouro, motivo de minha ida ao Colégio.

Encabulado, porque apresentado pelas professoras com tantos elogios, iniciei a minha fala contando sobre como cheguei ao ato da escrita e de como engendrei o livro que parte de uma acontecimento histórico, a revolta dos Malês, na Bahia do século XIX. O livro narra o encontro de três jovens: Mariana, neta de uma Mãe de Santo, Fortunato, um Malê muçulmano e Richard, filho de uma família de inglesa Protestante.  

A minha fala gerou um diálogo guiado pela razão sábia e tratamos de assuntos relativos ao livro e outros que surgiram no calor da troca. No final, autografei muitos livros e ganhei um belo vaso com lírios, que desde aquela noite abrem seus botões enfeitando a minha casa. Mais alguns dias eles estarão murchos. Ó impermanência! Aceito-a. Os lírios passarão, mas o seu significado permanecerá, lembrando-me do encontro, até que eu salte para fora do círculo do tempo.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Registro 369: A ausência que seremos


Muitos livros foram escritos tendo como figura central o pai. Lembro-me de Carta a meu pai de Kafka,  e de como este livro terrível me marcou. Recordo-me de a Ilha de Arturo, de Elza Morandi, que se não tem o pai como personagem central, mostra-o como uma figura de suma importância na formação de Arturo. A figura paterna assoma nos livros de Dostoievski e em tantas obras que nos mostram de maneira positiva ou negativa de que maneira o pai se mostra para a família, sobretudo para os filhos. Acabo de ler um livro inesquecível, cujo título nos inquieta: A ausência que seremos.

O título são versos atribuídos a Jorge Luis Borges que foram encontrados no bolso do médico sanitarista e defensor dos Direitos Humanos Héctor Abad Gómez, assassinado na Colômbia na década de 80. Quem escreve é seu filho Héctor Abad, que nos oferece a intimidade de sua memória para contar em primeiro plano a sua relação com este pai, que parece não existir de tão grandioso que é. Mas não se trata de hagiologia, e sim do retrato de um homem que soube colocar no mesmo plano o seu amor pela família, em especial pelo filho, e o dever para com os humilhados e ofendidos do seu país, sendo este último o motivo de seu assassinato.

Vale à pena conferir o livro de Héctor Abad e mergulhar fundo em suas páginas. Primeiro, porque seremos tocados pelo encantamento que este pai biografado provoca em seu filho criança. E o que salta destas páginas é o amor incondicional e envolvente marcando a infância do autor admirador da figura heróica, afetiva e calorosa do pai. Ao mesmo tempo, acompanhamos os conflitos vividos pelo adolescente, que se vê sufocado por esta figura superprotetora que não esconde seu afeto distribuído em grandes doses entre a esposa, as seis filhas e o filho querido. Por fim, veremos o adulto que se depara com um pai combatente, interessado, herói e mártir.

Nos registros do filho, os sentimentos são rememorados, e por eles nós percebemos as marcas do afeto guiando-lhe os passos, fazendo-o  crescer. Vemos também o estrago que a violência perpetrada pelos paramilitares acobertados pelas autoridades colombianas trouxe à família e ao país, visto que  Abad Gómez não foi o único assassinado naquele período penumbroso da história da Colômbia.  No concerto de vozes (mulher, filhas, amigos e inimigos)  orquestrado por Héctor Abad, surge o retrato de um médico humanista em toda a sua complexidade. Sua história contada por alguém tão íntimo nos comove, pois não é um discurso panfletário nem sectário, mas o retrato de uma vida civilizada em meio à barbárie que acometeu e acomete a América Latina com suas veias abertas, seus barroquismos, suas mazelas e suas loucas esperanças.  Memória e história a nos envolver.

Algumas horas dedicadas  ao livro A ausência que seremos nos fazem entrar em contato com a narrativa salvadora de um passado nos termos de Walter Benjamin. As preocupações do pensador judeu-alemão sobre o ato de contar história, sua serventia e importância, soam nas páginas do livro de Héctor Abad. A narrativa adiada por muito tempo, por conta da violência que se abateu sobre sua família, é prova cabal da afasia, ou seja, a impossibilidade de narrar. Mas o tempo decorrido entre os acontecimentos e o ato rememorativo é demonstração de que o narrador destravou-se. A escrita surge plena, pois o conteúdo recalcado retorna iluminado pela necessidade salvadora. A palavra que corporifica a narrativa assume então  a dimensão da constituição do sujeito. Portanto, não há mais silêncio, nem esquecimento.

As lutas encetadas pelo sujeito na tentativa de não deixar o passado esquecido nos leva a pensar na importância da reminiscência,  para que se possa, de certa maneira, vencer a morte. Nada se perde, se assim queremos.  O ato de lembrar, tão presente na história e na literatura, cuida para que nada nos escape. (GAGNEBIN, 2004) Ao urdir a trama de sua narrativa, Abad fala de sua experiência após um tempo em que, mudo, não conseguiu dar corpo à narrativa que nos dá.  Assim, vencendo o trauma ou livrando-se dele pelo ato rememorador, o autor compartilha conosco os vestígios deixados por seu pai. Emerge da guerra suja da Colômbia um sujeito que não emudece e faz valer as suas referências e de sua coletividade. A ausência que seremos é denúncia, mas é, sobretudo, a demonstração da grandeza do amor voltado para o individuo e para a coletividade.

REFERÊNCIAS

ABAS, Héctor. A ausência que seremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004. 

domingo, 9 de outubro de 2011

Registro 368: Participação o VIII Fórum Intermunicipal de Teatro da Bahia


ALGUNS DESAFIOS DO ENCENADOR NO SÉCULO XXI

Raimundo Matos de Leão


Inicialmente, eu agradeço à União de Amadores Cênicos da Bahia pelo convite. Sinto-me honrado em participar do VIII Fórum Intermunicipal de Teatro da Bahia, e espero contribuir com algumas ideias para animar o debate sobre o tema que me foi confiado: os desafios do encenador no século XXI. Os desafios são claros, e espero que os encenadores sejam homens e mulheres de seu tempo, atentos ao que acontece no mundo globalizado, mas sem perder de vista o que se passa no seu quintal na sua aldeia. Aí já temos um desafio que enseja uma certa demanda por parte de todos nós, artistas ou não. No caso daqueles que optaram pelo exercício de colocar em cena um espetáculo, assinando-o, a responsabilidade é inegável, visto que a obra artística deve trazer elementos que possam estabelecer a comunicação com o espectador na sua contemporaneidade. Falo no singular, pois a obra atinge cada um em particular, embora a plateia se configure com um conjunto de sujeitos. Isso torna o desafio  maior, pois o artista tem de falar para indivíduos que vão ao teatro munidos de uma visão de mundo e com uma bagagem de informações que serão postas a prova ou não pelo que está em cena.

Penso que o artista, por mais complexa que seja a sua obra, busca estabelecer um diálogo com aquele que recebe sua criação, portanto a obra deve se abrir para o receptor de maneira que seus elementos se traduzam e se espalhem. Neste processo, é preciso que o encenador se dê conta da importância do trabalho autoral que se manifesta por uma série de procedimentos cênicos, sem perder de vista o objetivo maior, que é fazer com que sua obra seja decodificada tanto por leigos quanto por especialistas. 

Desde que no teatro surge a figura do encenador nos meados do século XIX, ficando André Antoine como aquele que primeiro assinou um espetáculo, da mesma forma que o pintor assinava seus quadros, a figura do encenador passou a concentrar em maior ou menor grau a responsabilidade sobre o espetáculo. Ele é responsável pela autonomia do espetáculo, contribuindo então para que a encenação se constitua como discurso autônomo em relação ao texto dramático, criando assim a dramaturgia da cena ou o texto espetacular, como define o italiano Marco de Marinis (1982, apud FERNANDES, 2010), ao pensar o espetáculo como uma escritura. Aí temos outro desafio que implica  na opção por parte do artista de tomar para si uma determinada corrente estética e produzir/criar a partir dela, buscando uma unidade de sentidos ou optando por se expressar por um espetáculo organizado de maneira que ele se torne uma polifonia de significantes.

Outra questão que também me parece um desafio é o encenador dar conta da tradição, espanando o pó que o tempo deixou sobre o legado das gerações de artistas anteriores a ele, e ao mesmo tempo se valer dos avanços tecnológicos da contemporaneidade. No entanto, é necessário que o encenador fique de sobreaviso para não sair por aí copiando experimentos que negam o princípio fundamental do teatro, que é a relação direta em tempo real do ator com o espectador. A minha opinião, muitíssimo particular, é de que o teatro existe mesmo é nesta relação. Sem o elemento humano, como poderá haver reverberação emocional, intelectual, estética? Não me parece um bom caminho descaracterizar de tal forma o ato teatral que ele deixe de ser o que é. Tal afirmação não nega a interdisciplinaridade, o hibridismo e a fragmentação. O palco absorve tudo, desde que tudo faça sentido e signifique. Assim não cairemos na algaravia que por vezes se impõe no espaço cênico. Penso num certo equilíbrio entre a “vanguarda prospectiva,” celebrativa da tecnologia de ponta, e a “vanguarda tradicionalista” que se inspira nos ritos antigos (SCHECHNER, 1998), como um caminho para fortalecer a presença viva do ator em comunhão com os espectadores sem que se caia no virtualismo, tendência cada vez mais impositiva na cena.

Assim, vejo como desafio do encenador na pós-modernidade, levando em conta que este conceito está em permanente questionamento, agir organicamente para responder ao postulado do fim das grandes narrativas, ao rompimento das fronteiras entre arte, ciência e entre as linguagens da arte. Levando em consideração tais questões, o encenador deve atentar  para que o apagamento não se dê de maneira que não saibamos mais se o que vemos é encenação teatral ou outra manifestação. Sobre o propalado fim das grandes narrativas, Os Náufragos da Louca Esperança, criação do Théâtre du Soleil, excursionando pelo Brasil, segue na contramão. Sobre a encenação de Ariane Mnouchkine, Luiz Fernando Ramos afirma: "Negando a hipótese de que não haja lugar para as grandes narrativas, o que se conta não só analisa o fracasso das utopias modernas , como arisca  remexê-las. O coletivo do Soleil resiste. Eles não renunciam a sonhar e a produzir quimeras." (Folha de S. Paulo, 06.10.2011)

Outro conceito que deve ser um desafio no horizonte dos encenadores é a polêmica instaurada a partir de Lehmann (2007) e seu conceito de pós-dramático em oposição ao dramático, uma categoria ultrapassada, segundo o ponto de vista do teórico alemão. Seguindo o seu pensamento que aponta o pós-dramático,  surgido em cena desde o teatro experimental dos anos 70, e configurado com mais precisão nas experiências dos anos 90 para cá, o teatro do século XXI deixaria de ser fabular, caindo por terra a triangulação drama, ação e imitação, modelo que nem as vanguardas do século XX conseguiram romper. Parece-me, no entanto, que a discussão proposta envereda por uma via que determina o apagamento de um modelo e sua substituição por outro, um fator que pode colocar os encenadores em uma camisa-de-força, visto que todos devem ser, de agora em diante, pós-dramáticos, e assim conceber suas encenações. É certo que a teatralidade contemporânea vem sendo explodida ao longo do tempo. Podemos tomar a encenação de Ubu Rei de Alfred Jarry, em 1896, como um ponto luminoso nas muitas revoluções sofridas pelo teatro. Assim como este momento ímpar, outros surgiram ao longo da história do espetáculo, figurando transformações radicais e encenações autorais. Talvez seja esse o desafio maior, criar uma obra autoral e fazê-la chegar aos espectadores, independente de um modelo camisa-de-força.

Nesta panorâmica, corro o perigo da redução, mas o que quero fazer aqui é levantar pontos para uma reflexão por parte de quem se interessa em assumir a condição de encenador em um momento histórico de grande mobilidade, de tantas alternativas e redefinições que fornecem possibilidades para a escritura cênica.

Diante de tantos apelos, surge outro desafio: aquele que nos é colocado constantemente, o do engajamento em uma corrente estética, política ou espiritual. Não delongarei o assunto, visto que cabe a cada encenador optar por uma dos campos que acabei de citar, ou por todos eles. Mas é preciso que reflitamos sobre a diversidade de pensamento que engendra uma série de produtos artísticos reverberadores de sentimentos e ideias que desejam a transformação, seja da arte ou do sujeito. Pensando nas teorias desenvolvidas, segundo Guy Debord (1997) em A sociedade do espetáculo, tudo aquilo que era vivido tornou-se representação, ou seja, espetáculo, e este acúmulo de representação gera em nós a sensação de que não podemos intervir e modificar as coisas. Tal comportamento gera uma certa passividade, identificada no interior da pós-modernidade. Lutar contra esta passividade talvez seja um desafio do encenador em direção ao engajamento, mas de modo tal que este engajamento não nos leve ao radicalismo da exclusão. No momento em que o discurso da inclusão é pauta em todas as reuniões e conversas, é necessário discutir a intolerância para sabermos o que é preciso tolerar, e isso  sem que se turve o olhar, para não sermos restritivos ou complacentes demais.

Vejo também como desafio do encenador no século XXI o exercício do papel de pedagogo. É preciso que ele exerça este papel, o do encenador-pedagogo, principalmente quando prepara atores em seus espetáculos. Esta função foi posta em prática no passado por Constantin Stanislavski, e resultou nos avanços que conhecemos sobre a preparação de intérprete, como também das técnicas de encenação. E por falar em técnicas, não é possível conceber um encenador que não as domine minimamente. Deixando claro que as técnicas não devem ser um limitador no seu processo de criação, cabe então, como um desafio, a capacidade do encenador de utilizar as técnicas, percebendo-as enquanto procedimentos que renderão frutos  quando da concepção do seu trabalho, e de sua transposição para tridimensionalidade da cena. A ênfase está na construção da poética, sendo a técnica um meio para a criação.

Quero alertar para a conjunção teoria e prática, não necessariamente nesta ordem, pois vejo neste binômio algo interligado. Cabe ao encenador dar conta dos princípios que regem os estudos teatrais, não desviando a teoria da prática, para não tornar os processos criativos em elucubrações que fazem do palco outro lugar. Deve-se dar conta do trânsito entre as fronteiras, movendo-se com sabedoria para evidenciar o que o teatro tem de mais interessante:  a relação entre alguém que age e outro que a observa.

Cabe ao encenador do século XXI se perguntar a cada momento: para aonde vai o teatro? No artigo O Teatro na Encruzilhada (1998.), Richard Schechener, estudioso da Performance, coloca a pergunta no plural: “Aonde vão os teatros?”, visto que os aspectos do teatro são múltiplos e não evoluem ao mesmo tempo. Portanto, há espaço para gêneros e formas diversas. Nesta diversidade, cabe ao encenador manter a qualidade de suas propostas, sejam elas conformadas de maneira realista-naturalista, ou sob o signo da vanguarda, do experimentalismo, mas sem perder de vista que a experiência teatral é a do espetáculo ao vivo. Por fim, o desafio maior é encontrar os meios para concretizar o sonho e o desejo de cada um.

Finalizando, cito um trecho que recolhi de um artigo escrito pela atriz Fernanda Torres, publicado na Folha de S. Paulo, em 21 de fevereiro de 2011. Diz ela:

Em Surfando no Caos, autobiografia do guru do LSD da América nos anos 1970, Timothy Leary prevê que, no futuro, os relacionamentos virtuais dominarão de tal maneira a humanidade que a presença de alguém em carne e osso será um acontecimento de dimensões míticas. Intrigante observação. Se o psicólogo americano estiver certo, a velha invenção dos gregos, o teatro, será o grande diferencial das gerações futuras, seja na vida artística, política ou filosófica. Em um mundo ainda nervoso, tenso, populoso e avidamente dominado pela tecnologia, nada superará o poder da presença orgânica da natureza encarnada, sólida, calorosa e profunda. E assim, o humanismo entrará novamente em voga.”

Deve encenador fazer do seu espetáculo o lugar dessa humanidade.


REFERÊNCIAS

DÉBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FERNANDES, Sílvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
RAMOS, Luiz Fernando. Théâtre du Soleil sintetiza potência da literatura e do cinema. In: Folha de S. Paulo, Ilustrada. São Paulo, 2011.
SCHECHENER. Richard. O teatro na encruzilhada. Correio da Unesco, ano 26, n.1, jan., 1998.
TORRES, Fernanda. Iremos tocar a baleia Moby no meio da sala. In. Folha de S. Paulo, Ilustrada. São Paulo, 2011.

O presente texto sofreu acréscimos após sua apresentação no Fórum, mas mantém as ideia defendidas durante a exposição. 

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Registro 367: Estado e Religião: uma combinação que não dá certo

JUDEU SEM RELIGIÃO

Escritor israelense que ganhou na Justiça o direito de ter carteira de identidade sem registro de crença ataca a não separação entre religião e Estado e o uso do judaísmo por 'fascistas'. Yoram Kaniuk publicou mais de 20 livros em sua premiada carreira, mas nunca ocupou tantas manchetes. O motivo foi a ação para apagar o judaísmo de sua carteira de identidade. 

Depoimento a Marcelo Ninio (de Jerusalém para Folha de S. Paulo, 6 de outubro de 2001)

Tomei a decisão por que não queria ser minoria em minha própria família [risos]. Sou casado há 50 anos com uma americana não judia. Minhas filhas nasceram aqui, serviram o Exército, são cidadãs israelenses, mas não são consideradas judias. Ganhei um neto e ele foi considerado "sem religião", por ser filho de não judia. Decidi que quero ser como o meu neto. Cansei do controle da religião neste país. É um ciclo perigoso: os religiosos se fortalecem politicamente e impõem mais e mais a religião sobre nós. Até o calendário e o horário de verão são impostos pelos religiosos. Há um controle inaceitável sobre a vida das pessoas. Querem transformar Israel num Estado religioso. Lutei pela criação deste país. O objetivo não era um Estado judeu. [David] Ben Gurion [fundador de Israel] não sonhou com isso, ele não acreditava em religião. O que ele queria era um lar nacional para o povo judeu.Decidi que quero ter a nacionalidade judia, não a religião. Mas Israel não reconhece isso. Bibi [premiê de Israel, Binyamin Netanyahu] fala o tempo todo que os palestinos devem reconhecer o caráter nacional judeu de Israel, mas o próprio Estado não reconhece a nacionalidade judia sem a religião. A decisão judicial é histórica. O juiz abriu uma brecha que, espero, levará à separação entre Estado e religião. Ainda não é uma revolução, mas pode ser o começo.Esse veredicto pode começar a quebrar o monopólio político dos religiosos. Se houver separação entre Estado e religião, eles não terão mais o mesmo poder político. Hoje, nosso modelo lembra a Idade Média. Quando a religião tem o controle, a vítima é sempre a liberdade. Minha mulher e minhas filhas nunca sofreram por não serem judias. Vivemos em Tel Aviv, uma cidade muito liberal. Mas é humilhante, porque não são como os outros. Todas as reações que recebi até agora foram muito boas. Milhares de pessoas esperam por isso há anos, e acho que muitas seguirão o meu exemplo. Ninguém me atacou ainda, mas espero que isso aconteça [risos]. Sou um lutador. Israel tem de decidir: pode ser país democrático ou país judeu religioso. Não pode ser os dois. Religião é dogma, não aceita a democracia. Se em um ou dois anos não acontecer uma mudança, este país está perdido. Se tornará um Estado religioso e sem mão de obra, sem soldados para defendê-lo nem gente capacitada para desenvolver alta tecnologia. Sustentamos centenas de milhares de parasitas. Hoje quase 50% dos alunos de classes primárias são ortodoxos, e a maioria não se integrará ao Estado. Além de tudo, a falta de separação entre Estado e religião permite que o fascismo se espalhe. O incêndio criminoso da mesquita no norte de Israel é só um exemplo. Há fascistas nos assentamentos que fazem o que querem e o governo não faz nada. Atacam árabes, arrancam suas oliveiras, vandalizam mesquitas e o governo faz vista grossa, pois teme perder seu apoio político. Chegamos a um beco sem saída. Por isso o veredicto que me foi concedido é tão importante: cria uma brecha histórica para mudarmos isso, para acabarmos com a legitimidade dos fascistas que usam a religião.Se Israel for mais democrático e menos religioso, o Estado poderá agir contra esses hooligans.  (Grifos meus)

Pensemos no depoimento do escritor, hoje com 80 anos. A sua lucidez é impressionante. Em um mundo acossado cada vez mais pelas Religiões, todas elas querendo o poder para somente reprimir o indivíduo,  as palavras de Yoram Kaniuk calam fundo, pelo menos em mim