segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Registro 214: Impressões sobre espetáculos - FIAC Bahia


Desde 24 de outubro realiza-se em Salvador o Festival Internacional de Artes Cênicas – FIAC. A iniciativa é das melhores. E se pensarmos no Festival Latino Americano de Teatro da Bahia levado a efeito em setembro, não temos do que nos queixar. O público interessado e a classe teatral foi e está sendo brindada com inúmeros espetáculos. Uma diversidade cênica enriquecedora. A programação do Festival Latino Americano incluía espetáculos nacionais e de países do continente. Agora, com o FIAC, a pauta se amplia, com a vinda de encenações da França, Noruega, Congo, Portugal, Argentina, Brasil – Rio de Janeiro, Ceará, Minas Gerais, Paraná, Brasília, São Paulo, Santa Catarina, Bahia.

Haja tempo para organizar horários, conciliar atividades. Além disso, há que se ter disposição para correr de um lado para o outro. Mas pra quem gosta de teatro tudo isso se torna irrelevante, principalmente quando o vento que vem da cena nos toca e nos anima.

Não vou falar de todos os espetáculos. As escolhas foram determinadas por critérios de ordem prática, por interesse estético ou simples curiosidade. Deixei de ver Sizwe Banzi Está Morto, texto dos sul-africanos Athol Fugard, John Kani e Wiston Ntshona direção de Peter Brook. De Athol Fugard conhecia Laços de Sangue e Mestre Haroldo. O fato de não ter ido ver uma encenação de Peter Brook é inexplicável, mas não tive vontade.

Corri pra assistir O Cantil, uma adaptação do texto A Exceção e a Regra de Bertolt Brecht realizada pelo Teatro Máquina do Ceará. Direção, dramaturgia e produção de Fran Teixeira. Concisão, poesia e domínio da linguagem cênica marcam o espetáculo cearense. Quatro atores em cena. Dois como bonecos, o Patrão e o Empregado; dois como manipuladores desses homens-bonecos. Perfeição! Por certo exagero meu. A perfeição indica um ponto morto, já que dele não sai mais nada. Não é o que se vê na cena de O Cantil. O domínio técnico está a serviço de uma idéia teatral muito bem resolvida. Certamente, Brecht não cansaria de aplaudir, porque a sua história sobre explorador e explorado explicita-se em cena de tal forma que nem a falta da palavra é sentida, embora no fim do espetáculo eu tenha manifestado a vontade de ouvi-la. Mas depois de refletir sobre o espetáculo, cheguei à certeza de que a palavra transformada em ação bastava. Compreendia-se todo o entrecho da peça adaptada e a relação entre os personagens sem a intromissão do verbo.

No palco aberto e preto, destacam-se os dois personagens vestidos de branco e os dois manipuladores. Dos manipuladores vemos o rosto. Estes são ajudados por dois contra-regras que entram esporadicamente para compor o jogo de cena, retirando alguns objetos ou fazendo aparecer as duas barracas para cena de acampamento. Um carro conduzido pelo Empregado leva sacos também brancos e cestos de vime. A luz é precisa e recorta os personagens em sua viagem. As cenas noturnas são marcadas por um belo e simples céu estrelado. Estabelecida a moldura mergulha-se nessa viagem cujo final já presumimos.

Com esse espetáculo o Teatro Máquina coloca em cena os dados de sua pesquisa artística e revela que a magia do teatro não se dá por truques ilusionistas, visto que constrói a sua cena utilizando-se de conceitos do teatro brechtiano, relendo-os de maneira muito particular, sem a submissão que muitas vezes ocorre quando a leitura das teses do dramaturgo alemão é feita ao pé da letra e de maneira mecânica.

O segundo espetáculo apreciado veio de Portugal, sob a responsabilidade da Companhia do Chapatô. Com a Sala do Coro lotada e barulhenta até começar a função, prenúncio de que o espetáculo prometia descontração e muitas gargalhadas, assistimos O Grande Criador, criação coletiva dirigida por John Mowat. O espetáculo, uma brincadeira com passagens do Antigo e do Novo Testamento, humaniza os personagens da história sagrada e retira das situações uma comicidade direta e comunicativa, fato que agarra a platéia desde os primeiros minutos. Não há novidade na proposta. O gênero aproxima-se muito do brasileiro Teatro Besteirol, difundido a partir da cena carioca e paulistana desde a década de 80.

Durante a encenação, cujo ponto forte é a interpretação de Jorge Cruz, José Carlos Garcia e Rui Rebelo, lembrei-me de Folias Bíblicas espetáculo do grupo paulista Pod Minoga, dirigido por Naum Alves de Souza, em 1977. Na montagem com forte acento lúdico, encenava-se as passagens da Bíblia como números de um espetáculo realizado por um grêmio de bairro.

O grupo português concentra no jogo dos atores e na qualidade de suas interpretações o foco do espetáculo. Aí está o atrativo e sua força, demonstrada ao longo de 80 minutos e impagáveis cenas, como a do dilúvio ou a cena em que Cristo joga futebol com uma vassoura, entre outras.

Para mim, o que fica do espetáculo é isso: três atores utilizando-se de seus recursos corporais e vocais de forma extremada, interagindo com a platéia de maneira segura e hábil. Pergunto-me: não teria o teatro português outro trabalho para ser escolhido pelos organizadores do FIAC? Quero ver mais da cena portuguesa.

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