sábado, 29 de outubro de 2011

Registro 370: filme, lembranças, livros e lírios

São precisamente 19:51 desse horário inventado, nada contra. Acabo de retornar do Cine Glauber Rocha onde fui ver Palhaço de Selton Melo. Ecos do passado perpassam o filme, mas não há saudosismo piegas. Sabemos que o circo está morrendo, mas o trabalho do ator-diretor não é réquiem. 

Sutil, delicado e perpassado de humor, o filme prendeu minha atenção. São belos os planos, a ambientação e, sobretudo, o entrosamento do elenco. Cada qual desempenha o seu papel em harmonia com a proposta do diretor e completam a atuação dos protagonistas, Paulo José e Selton Melo. Uma bela trupe de profissionais se encarrega de encher a tela de poesia. Não há pieguice, como não há humor grosseiro, uma tônica destes tempos tão arreganhados e desmedidos. Para completar, o diretor entrega a Moacir Franco (o humorista-cantor), a Jorge Loredo (o Zé Bonitinho) e a Ferrugem (o ex-menino prodígio) pequenos papéis, completando o painel de personagens todos eles cativantes. Ao longo do filme, outras homenagens: uma casa comercial chama-se Aretusa, nome de um circo famoso, o personagem de Selton Melo (Pangaré, o palhaço) tem o nome do famoso palhaço Benjamin Oliveira e o de Paulo José (o palhaço Puro Sangue) denomina-se Valdemar, uma referência a Arrelia (Valdemar Seyssel). Este último eu conheci em São Paulo.  

Lembrei-me dos circos que frequentei na minha infância: o Nerino, o Pavilhão Zé Bezerra, o Circo São Raimundo, onde Maria de Jesus e Ducycleide disputavam a preferência do público masculino. A primeira, de sensualidade recatada, se é que isto existe, era morena de longos cabelos pretos. A outra, despudorada, extravasava sex-appeal de loira oxigenada. Uma delícia vê-las em seus números. Como chamariz de público, a propaganda alimentava a rivalidade entre as duas. Durante a temporada  do circo em Ipirá, Maria de Jesus e outros artistas residiram numa casa perto da minha, mas não tive coragem de me aproximar. Fascinado, eu acompanhava o dia-a-dia daquela gente para mim tão estranha, visto que conseguiam, todas as noites,  elevar-se acima do cotidiano.

Muitas vezes, no final da tarde, quando o palhaço com pernas de pau e megafone percorria as ruas gritando “Hoje tem espetáculo?!”, eu fazia parte do grupo de meninos que respondia: “Tem sim senhor! Por este feito, nós éramos marcados no braço com tinta preta e assim, entrávamos sem pagar na função da noite. O duro era tomar banho sem que a marca desaparecesse. Devo muito do que sou ao circo, a estes artistas que me faziam sonhar em querer ser um deles.

Não vi Palhaços de Federico Fellini, mas tenho a impressão que há no filme de Selton Melo respiros fellinianos.  O olhar maroto do palhaço Pangaré dá lugar ao tristonho de Benjamin, desejoso de alguém ou de alguma coisa que o faça rir. Sua fixação no ventilador torna-se uma metáfora para o sufoco vivido por este palhaço que tenta romper com a sua identidade, mas como um filho pródigo retorna ao pai e à lona.

Na saída, comprei um livro. Borges, oral & sete noites, são aulas que escritor argentino proferiu a convite da Universidade Bolonha. Enquanto esperava o ônibus na Praça Castro Alves, vazia, sob a luz do entardecer, comecei a leitura do primeiro texto curto, O livro. Borges nos diz que “pegar um livro e abri-lo contém a possibilidade do fato estético”.  Borges escreve:  “Em primeiro lugar, mencionarei Montaigne,  que dedica um de seus ensaios ao livro. Nesse ensaio há uma frase memorável: “Não faço nada sem alegria”. Montaigne afirma que o conceito de leitura obrigatória é um falso conceito. Diz que quando encontra uma passagem difícil num livro, deixa-o de lado; porque vê na leitura uma forma de felicidade”. Confesso que não li Montaigne, mas estou a concordar com ele.

Por falar em livros, um deles me levou até o Colégio Antônio Vieira na noite de 26, próximo passado. Fui ao encontro de estudantes do programa de educação de jovens e adultos. Faz tempo não sou acolhido com tanto carinho nem sou ouvido com tanta atenção. Estudantes de 18 a 60 anos, presumo, e professores enchiam o auditório para uma conversa sobre identidade, tolerância/intolerância, inclusão e exclusão, tudo que a razão enlouquecida provoca nos tempos que correm. Eles tinham lido o meu livro Da Costa do Ouro, motivo de minha ida ao Colégio.

Encabulado, porque apresentado pelas professoras com tantos elogios, iniciei a minha fala contando sobre como cheguei ao ato da escrita e de como engendrei o livro que parte de uma acontecimento histórico, a revolta dos Malês, na Bahia do século XIX. O livro narra o encontro de três jovens: Mariana, neta de uma Mãe de Santo, Fortunato, um Malê muçulmano e Richard, filho de uma família de inglesa Protestante.  

A minha fala gerou um diálogo guiado pela razão sábia e tratamos de assuntos relativos ao livro e outros que surgiram no calor da troca. No final, autografei muitos livros e ganhei um belo vaso com lírios, que desde aquela noite abrem seus botões enfeitando a minha casa. Mais alguns dias eles estarão murchos. Ó impermanência! Aceito-a. Os lírios passarão, mas o seu significado permanecerá, lembrando-me do encontro, até que eu salte para fora do círculo do tempo.