segunda-feira, 16 de março de 2009

Registro 249: Acordo e levo um susto

Acordo e levo um susto. A matéria de capa dos jornais: "Chávez ocupa portos e ameaça dois governadores". Em nome da segurança nacional. Já vi esse filme, aqui bem perto, no nosso quintal. É certo que cada povo tem o governo que merece. Eles estão aí nos assombrando. Os venezuelanos que se cuidem. Não dá pra ficar sem refletir sobre o que vai acontecendo para lá das nossas fronteiras no momento em que a América do Sul parece querer ditaduras travestidas em democracias. É certo que os governantes foram eleitos pelo voto, mas até aí morreu Neves. No caso do vocábulo ditadura não ser apropriado para caracterizar o que ronda a América Latina, visto sua radicalidade, podemos ver por aí uma certa tendência para o autoritarismo. Eufemismo! Por certo...
Não dá pra avalizar ditaduras, sejam elas de direita, de esquerda ou amparada em fundamentos religiosos.
Espero que o leitor não não intreprete de forma errada o texto. Não estou aqui me filiando àqueles que pensam que ditaduras são "ditabrandas". Repudio totalmente essa visão. Sofri na pele os horrores da ditadura civil-militar brasileira. Sei muito bem o que é viver trinta dias confinado em uma cela do DEOPS - SP, debaixo de ameaças constantes.
As feridas estão curadas, mas as lembranças são vivas. Por isso mesmo, não quero viver sob nenhuma ditadura.
No sábado fui ver Entre os Muros da Escola, filme de Laurent Cantet, baseado no livro do professor François Bégaudeau, que protagoniza ele mesmo. O título em francês, Entre Les Murs, é melhor que a nossa tradução. Alías, as traduções de títulos para o português tem sido um desastre. É melhor porque diz muito mais, amplia a questão ou as questões discutidas pelo cineastas e pelo professor, embora tudo se passe no interior escolar. tento não cai no pessimismo, mas ao ver o filme reafirma em mim a visão de que a escola faliu e que as teorias não dão conta de explicar nem de resolver o que a realidade nos apresenta. Sou também professor e sai do filme com uma sensação estranha, pensando na realidade da escola francesa e mais ainda sobre as nossas escolas. Longe daqui aqui mesmo. O filme deve ser visto por todos os professores e alunos. Por falar nisso, Vamos à Folha de S. Paulo, coluna de Mônica Bérgamo (Ilustrada, 15.03.09):
Professores da rede pública que trabalham em escolas de risco no Rio contam alguns de seus conflitos diários que vão além do giz, como tirar revólver de aluno e ter a bolsa furtada dentro da classe"Professora, tem dois alunos armados e um diz que vai matar o outro no recreio." Foi assim que começou mais um dos centenas de dias de trabalho da professora de artes Vera Cruz, 66. "Tremi toda. Não sabia o que fazer. Respirei fundo e entrei no meio da briga. Era uma discussão por racismo. Um negro, outro branco. O alemão dizia que o negro não prestava, trocaram ofensas e colocaram a família no meio. Daí sentei com os dois, conversei e consegui fazê-los me entregar as armas: uma lâmina de sapateiro e uma adaga." Eles tinham dez anos.

A exposição à violência relatada por Vera foi o tema do filme "Verônica", sobre uma professora que dá aulas em uma escola que fica na favela, vivida por Andréa Beltrão. Depois de uma sessão do longa, no Rio, Vera, a atriz e mais uma dezena de outros professores da rede pública se reuniram para uma conversa com a coluna.

A psicóloga Simone de Carvalho, 45, trabalhou com uma sala de supletivo na região da praça Mauá, frequentada por prostitutas. Ela conta um episódio envolvendo um jovem de 20 anos. "Um dia, no meio da aula, me falaram que tinha um aluno com revólver dentro da classe. Fui até ele e expliquei que não poderia ficar com uma arma lá dentro, que poderia acabar machucando alguém. E ele me respondeu: "Professora, eu sei disso, mas eu tô jurado de morte, tenho que me defender"." Simone diz que viveu um "intenso conflito". "Eu deveria tirar a arma dele? E se o menino morresse, o que eu faria? Fiz um pacto de confiança para que ele não usasse aquela arma dentro da escola de modo algum." Ninguém saiu ferido.

As histórias se sucedem. Os docentes conseguem surpreender um ao outro, mesmo já tendo vivido tantas situações-limite. Há uma comoção, por exemplo, quando a professora primária Izabel Nobuko da Costa, 41, conta que foi furtada dentro da sala de aula. "Levaram minha carteira com meus cheques e cartões. Na bagunça entre as crianças, nem vi quando tiraram as coisas de dentro da minha bolsa." Andréa Beltrão interrompe: "Alunos de qual série?". "Da quarta, tinham mais ou menos uns dez anos", responde a professora.
A atriz surpreende os presentes quando revela uma atitude rara entre famílias de classe média: "Meus três filhos estudam em escola pública [o colégio Pedro 2º]". Ela diz confiar no padrão de ensino. Sua mãe foi diretora do estabelecimento. "A convivência plural faz muito bem para eles", diz ela.
Pluralismo que Luiz Elesbão Maciel, 43, professor de educação física e de filosofia, conhece bem. Ele já deu aulas em mais de 40 colégios e é o único do grupo que trabalhou em escolas dentro de presídios. "No meu primeiro dia, já teve confusão entre os presos. Um alarme tocou e eu só pedia para sair. "Sou professor, pelo amor de Deus, me deixa sair daqui!"Eu tentando sair e os guardas de preto, com balas de borracha, entrando com aqueles escudos, sabe?" Com o tempo, Elesbão diz que se acostumou e que aprendeu as regras: cuidado para não levar nem trazer recados para presos; evitar assuntos que inflamem o ânimo dos alunos. Exemplo: "Jamais tocar em discussões de direitos e deveres básicos de cidadania, porque eles deveriam, por exemplo, receber a visita de defensores públicos, mas ninguém ia. Eu ficava revoltado".

Há alguns anos, em uma escola estadual na Tijuca, uma aluna grávida pediu socorro. ""Me ajuda, pelo amor de Deus, professora, me ajuda!" A menina estava desesperada porque o namorado queria espancá-la dentro da escola, conta Viviane Grace Costa, 38, professora de história. "Entrei na frente dele e disse: "Aqui dentro você não bate nela". E ele me perguntou: "Quer morrer?"." Viviane chamou a polícia, mas "os policiais não eram treinados para tratar dos direitos da mulher e falaram que não iam se meter. Assumi o risco sozinha."

Hoje, Viviane leciona na Rocinha. "Minha mãe morre de medo, mas há uma inversão de valores. Trabalho para o supletivo e são, na grande maioria, trabalhadores, que nos respeitam mais do que muito aluno de colégio particular."

Vera Cruz concorda. "Numa escola de alto padrão de Botafogo, os alunos jogavam papel, sentavam em cima das carteiras, gritavam, faziam de tudo para me agredir. Um dia foi tanta agressão que me deu na telha um novo método. Fui para o fundo da sala -aquilo era um horror!- e comecei a gritar igualzinho a eles."Aaaaaaahhhh!!!" Aí eles se olhavam: "Nossa, o que houve que a professora tá gritando?" E assim foram se aquietando.Quando estava todo mundo quieto, parei de gritar. Fui para o quadro e comecei a aula."

Além do mau comportamento dos alunos, a discussão entre os professores engrena para "o nível e a qualidade do ensino", que, segundo Simone, "está caindo! Gente, a minha empregada doméstica tem diploma de professora. Uma vez, voltei da Europa e ela me perguntou: "Dona Simone, a França fica perto dos EUA?". Os professores no cinema riem com tristeza. E Simone engata uma história sobre rejeição.

"Foi com um aluno de 15 anos, negro, bem mais alto do que eu. Fui dar aula depois de ter tomado uma vacina bem doída. Daí ele chegou para falar comigo e botou a mão bem em cima do lugar dolorido. Eu dei um grito e o empurrei. Ele me olhou e disse: "Eu pensei que a senhora fosse diferente dos outros". Ele achou que minha reação tinha sido porque ele havia tocado em mim. E não adiantava eu me explicar. Ele me olhou com uma decepção, uma tristeza. Mais uma vez se sentiu rejeitado." O encontro termina em lágrimas.

O verde colorindo o texto é intencional.

Para completar, segue a entrevista da atriz Andréa Beltrão (Folha de S. Paulo (16.03.09). Beleza!

A atriz Andréa Beltrão diz que a imagem de escola pública em sua vida está associada à qualidade de ensino.


FOLHA - O que a levou a matricular seus filhos na rede pública?

ANDRÉA BELTRÃO - A vida inteira fui aluna de escola pública, e isso está associado para mim a uma coisa boa. Estudei no Pedro 2º e minha mãe foi professora lá por muitos anos. Tenho uma situação financeira confortável e poderia matriculá-los num colégio caro, mas queria uma escola de qualidade onde o critério de entrada não fosse o dinheiro. Meus filhos estudam com filhos de médico, de porteiro, de servente. Todos vestem o mesmo uniforme. Isso não é bravata ou bandeira. Fui criada dessa maneira.


FOLHA - Há quem possa olhar e dizer que você está roubando a vaga de um aluno pobre.

ANDRÉA - É uma visão reacionária. Meus filhos conseguiram a vaga porque são netos de funcionário, e eu me beneficio disso sem nenhum pudor porque pago meus impostos e penso que a escola pública de qualidade é um direito de todos. Mas procuro também ajudar bastante a escola, e fico muito feliz ao perceber que vários pais fazem o mesmo, de acordo com suas possibilidades.


FOLHA - O fato de seus filhos poderem ter um nível de consumo maior que o dos colegas não dificulta a convivência?

ANDRÉA - De jeito nenhum. Aliás, rola um constrangimento maravilhoso se um aluno quiser ostentar dentro da escola. É um mico fazer isso num lugar onde a filosofia é: "Não risque o seu caderno porque no ano que vem outras crianças vão usar". Isso muda o comportamento em relação ao ter.Eles, por exemplo, ganharam Ipod [tocador de MP3 da Apple] logo que foi lançado, mas só passaram a levar para a escola quando os demais colegas começaram a ter esses aparelhos de MP3. Lá, se destaca quem tirar notas mais altas, e não quem tem mais para ostentar.