A exposição à violência relatada por Vera foi o tema do filme "Verônica", sobre uma professora que dá aulas em uma escola que fica na favela, vivida por Andréa Beltrão. Depois de uma sessão do longa, no Rio, Vera, a atriz e mais uma dezena de outros professores da rede pública se reuniram para uma conversa com a coluna.
A psicóloga Simone de Carvalho, 45, trabalhou com uma sala de supletivo na região da praça Mauá, frequentada por prostitutas. Ela conta um episódio envolvendo um jovem de 20 anos. "Um dia, no meio da aula, me falaram que tinha um aluno com revólver dentro da classe. Fui até ele e expliquei que não poderia ficar com uma arma lá dentro, que poderia acabar machucando alguém. E ele me respondeu: "Professora, eu sei disso, mas eu tô jurado de morte, tenho que me defender"." Simone diz que viveu um "intenso conflito". "Eu deveria tirar a arma dele? E se o menino morresse, o que eu faria? Fiz um pacto de confiança para que ele não usasse aquela arma dentro da escola de modo algum." Ninguém saiu ferido.
As histórias se sucedem. Os docentes conseguem surpreender um ao outro, mesmo já tendo vivido tantas situações-limite. Há uma comoção, por exemplo, quando a professora primária Izabel Nobuko da Costa, 41, conta que foi furtada dentro da sala de aula. "Levaram minha carteira com meus cheques e cartões. Na bagunça entre as crianças, nem vi quando tiraram as coisas de dentro da minha bolsa." Andréa Beltrão interrompe: "Alunos de qual série?". "Da quarta, tinham mais ou menos uns dez anos", responde a professora.
Há alguns anos, em uma escola estadual na Tijuca, uma aluna grávida pediu socorro. ""Me ajuda, pelo amor de Deus, professora, me ajuda!" A menina estava desesperada porque o namorado queria espancá-la dentro da escola, conta Viviane Grace Costa, 38, professora de história. "Entrei na frente dele e disse: "Aqui dentro você não bate nela". E ele me perguntou: "Quer morrer?"." Viviane chamou a polícia, mas "os policiais não eram treinados para tratar dos direitos da mulher e falaram que não iam se meter. Assumi o risco sozinha."
Hoje, Viviane leciona na Rocinha. "Minha mãe morre de medo, mas há uma inversão de valores. Trabalho para o supletivo e são, na grande maioria, trabalhadores, que nos respeitam mais do que muito aluno de colégio particular."
Vera Cruz concorda. "Numa escola de alto padrão de Botafogo, os alunos jogavam papel, sentavam em cima das carteiras, gritavam, faziam de tudo para me agredir. Um dia foi tanta agressão que me deu na telha um novo método. Fui para o fundo da sala -aquilo era um horror!- e comecei a gritar igualzinho a eles."Aaaaaaahhhh!!!" Aí eles se olhavam: "Nossa, o que houve que a professora tá gritando?" E assim foram se aquietando.Quando estava todo mundo quieto, parei de gritar. Fui para o quadro e comecei a aula."
Além do mau comportamento dos alunos, a discussão entre os professores engrena para "o nível e a qualidade do ensino", que, segundo Simone, "está caindo! Gente, a minha empregada doméstica tem diploma de professora. Uma vez, voltei da Europa e ela me perguntou: "Dona Simone, a França fica perto dos EUA?". Os professores no cinema riem com tristeza. E Simone engata uma história sobre rejeição.
"Foi com um aluno de 15 anos, negro, bem mais alto do que eu. Fui dar aula depois de ter tomado uma vacina bem doída. Daí ele chegou para falar comigo e botou a mão bem em cima do lugar dolorido. Eu dei um grito e o empurrei. Ele me olhou e disse: "Eu pensei que a senhora fosse diferente dos outros". Ele achou que minha reação tinha sido porque ele havia tocado em mim. E não adiantava eu me explicar. Ele me olhou com uma decepção, uma tristeza. Mais uma vez se sentiu rejeitado." O encontro termina em lágrimas.
O verde colorindo o texto é intencional.
Para completar, segue a entrevista da atriz Andréa Beltrão (Folha de S. Paulo (16.03.09). Beleza!
A atriz Andréa Beltrão diz que a imagem de escola pública em sua vida está associada à qualidade de ensino.
FOLHA - O que a levou a matricular seus filhos na rede pública?
ANDRÉA BELTRÃO - A vida inteira fui aluna de escola pública, e isso está associado para mim a uma coisa boa. Estudei no Pedro 2º e minha mãe foi professora lá por muitos anos. Tenho uma situação financeira confortável e poderia matriculá-los num colégio caro, mas queria uma escola de qualidade onde o critério de entrada não fosse o dinheiro. Meus filhos estudam com filhos de médico, de porteiro, de servente. Todos vestem o mesmo uniforme. Isso não é bravata ou bandeira. Fui criada dessa maneira.
FOLHA - Há quem possa olhar e dizer que você está roubando a vaga de um aluno pobre.
ANDRÉA - É uma visão reacionária. Meus filhos conseguiram a vaga porque são netos de funcionário, e eu me beneficio disso sem nenhum pudor porque pago meus impostos e penso que a escola pública de qualidade é um direito de todos. Mas procuro também ajudar bastante a escola, e fico muito feliz ao perceber que vários pais fazem o mesmo, de acordo com suas possibilidades.
FOLHA - O fato de seus filhos poderem ter um nível de consumo maior que o dos colegas não dificulta a convivência?
ANDRÉA - De jeito nenhum. Aliás, rola um constrangimento maravilhoso se um aluno quiser ostentar dentro da escola. É um mico fazer isso num lugar onde a filosofia é: "Não risque o seu caderno porque no ano que vem outras crianças vão usar". Isso muda o comportamento em relação ao ter.Eles, por exemplo, ganharam Ipod [tocador de MP3 da Apple] logo que foi lançado, mas só passaram a levar para a escola quando os demais colegas começaram a ter esses aparelhos de MP3. Lá, se destaca quem tirar notas mais altas, e não quem tem mais para ostentar.
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