sábado, 17 de outubro de 2009

Registro 288: Importante texto de Antonio Cícero

ANTONIO CÍCERO

O islã e os direitos humanos


Quanto mais uma ideologia se pretender superior à crítica, tanto mais merece crítica



ATÉ POUCO tempo, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH), criado há três anos, encontrava-se inteiramente controlado por Estados membros da Organização da Conferência Islâmica. Infinitamente mais preocupados em blindar sua religião contra qualquer crítica do que em proteger os direitos humanos dos seus cidadãos, esses Estados conseguiam, ano após ano, passar resoluções de condenação à "difamação de religiões".
Na prática isso significava endossar os atentados constantes de diversos Estados contra o direito humano fundamental da liberdade de expressão. Assim, a crítica a determinadas práticas de fundo religioso -como a execução de apóstatas e homossexuais, a clitorectomia, a lapidação de adúlteras ou a amputação das mãos de ladrões, por exemplo- podia ser enquadrada como "difamação de religiões". Também a perseguição de hereges, de membros de religiões minoritárias ou de ateus pode ser justificada através dessa noção. Em suma, ao condenar a "difamação de religiões", o CDH, por um lado, racionalizava exatamente o desrespeito aos direitos humanos e, por outro lado, inibia qualquer crítica a esse desrespeito: violando, desse modo, o direito humano fundamental à liberdade de opinião e expressão.
Na verdade, os direitos humanos são direitos de seres humanos individuais, face ao Estado, às igrejas e, de maneira geral, a todas as instituições e coletividades. Por isso, à medida que qualquer sistema de crenças e comportamentos tradicionais seja secular, seja religioso sirva para racionalizar o desrespeito aos direitos dos indivíduos, ele deve ser criticado por violar os direitos humanos. Quanto mais uma ideologia secular ou religiosa se pretender superior à crítica, tanto mais, por isso mesmo, merece crítica. Nada mais absurdo do que tentar converter os direitos humanos no seu oposto, tomando-os como os direitos das religiões face aos -ou melhor, contra os- seres humanos.
Na era Bush, os Estados Unidos, desprezando tanto as Nações Unidas quanto os direitos humanos -pisoteados, por exemplo, em Guatánamo- desdenhavam participar do CDH. Com isso, abandonavam-no, na prática, à Organização da Conferência Islâmica. Neste ano, porém, a secretária de Estado Hillary Clinton anunciou que os Estados Unidos, coerentes com a rejeição da política arrogantemente unilateral de Bush, haviam decidido participar do Conselho, com a esperança de torná-lo melhor. De fato, deve-se dizer que eles conseguiram isso, em certa medida.
Ainda em 27 de março, antes da entrada dos Estados Unidos no Conselho, este passou mais uma resolução de condenação à "difamação de religiões". No dia 2 do corrente mês porém, após intensas negociações em Genebra, os Estados Unidos conseguiram chegar a um compromisso com o Egito, por meio do qual foi tomada uma nova resolução da qual já não consta essa noção.
Isso nos lembra, aliás, de que foi no Egito que, em junho, ante os estudantes e professores da Universidade do Cairo, Barack Obama teve a coragem de declarar que o negacionismo do Holocausto é algo "infundado, ignorante e odioso". Embora a nova resolução represente um progresso considerável -que foi devidamente saudado como tal pelas mais importantes organizações internacionais que defendem a livre expressão, tais como a "Artigo 19"- a verdade é que ainda há um longo caminho a percorrer.
É que, embora já não se refira à "difamação de religiões", a nova resolução ainda condena tanto o uso de "estereótipos negativos raciais e religiosos" quanto qualquer defesa de "ódio religioso que constitua incitação à discriminação, hostilidade ou violência". Isso deu margem, por exemplo, a que o paquistanês Zamir Akram, falando em nome da Organização da Conferência Islâmica, condenasse o uso de "estereótipos negativos" não somente em relação a indivíduos mas a sistemas de crenças.
Falando pela União Europeia, o francês Jean-Baptiste Mattei afirmou então que "a lei de direitos humanos não protege nem deve proteger sistemas de crenças. Logo, o que foi dito sobre estereótipos só se aplica a estereótipos de indivíduos, não de ideologias, religiões ou valores abstratos.
A União Europeia rejeita e continuará a rejeitar o conceito de difamação de religiões e também rejeita o abuso de religiões ou crenças para a incitação ao ódio. [...] Os Estados não devem tentar interferir no trabalho de jornalistas e devem permitir a independência editorial da mídia".
Não deixa de ser bom que algo se mova até mesmo lá, onde nada parecia acontecer.
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Faço o registro do texto publicado na edição do jornal Folha de S. Paulo (17.10.2009) por concordar com ele. Não tenho nenhuma dúvida com relação a seus argumentos e eles podem ser estendidos ao nosso país, tendo em vista os absurdos cometidos em nome das religiões e de Deus. Os abusos cometidos em nome de uma crença seja ela religiosa ou política não se justificam. Acima desses postulados ditatoriais ou ignorantes estão os direitos da pessoa. Precisamos ficar alertas...