Esse sistema de rodízio de papéis importantes entre os alunos da Escola de Teatro foi uma prática instituída por Martim Gonçalves e fazia parte do seu projeto artístico-pedagógico. Mesmo que algumas injustiças tenham sido cometidas nas escolhas dos elencos das peças do repertório de A Barca, companhia criada no interior da Escola de Teatro da então Universidade da Bahia, os programas atestam tal prática. Foi no interior desse sistema que Nilda Spencer e seus colegas da primeira turma de formandos, em 1959, aprenderam e vivenciaram as diversas funções inerentes ao espetáculo. Os alunos, como ela, estiveram no palco e nas coxias revezando-se nas funções de intérprete, contra-regra, recepcionista, assistente de direção, entre outras. Foram protagonistas e coadjuvantes.
Ao ingressar na Escola de Teatro em 1968 estive próximo da professora e atriz, sempre elegante, calçando sempre sapatos de saltos altíssimos, uma compensação para sua baixa estatura. Tal artifício que a vaidade feminina não dispensava, era posto em segundo plano, visto que a esfuziante vitalidade de Nilda Spencer aumentava-lhe o porte. Anos mais tarde, ao reecontrá-la no camarim da Sala do Coro – TCA, onde fazia a protagonista de Ensina-me a Viver, ao abraçá-la vi o quanto era pequena e frágil, fruto da idade. A exuberância da mulher madura transmutara-se em graça e calma de quem sabe ter aproveitado a vida. Ao abraçá-la, não imaginávamos que se despedia do palco fazendo Maude, comemorando quarenta e cinco anos de carreira.
Estive uma única vez em cena com Nilda Spencer; foi na montagem de A Companhia das Índias, texto de Nelson Araújo, com direção de Orlando Sena. A atriz interpretava Rosélio Villarotas um ex-ministro de Eldorado, republiqueta sul-americana saída da imaginação do dramaturgo. Nilda Spencer compunha com muita habilidade o personagem; sem fazer dele uma caricatura do masculino, aproveitava-se dos recursos farsescos que a montagem de Sena possibilitava em sua moldura tropicalista, ganhando a cena de maneira hilariante. Ostentando grosso bigode, ela incorporava ao seu corpo o gestual masculinizado sabendo lidar com os estereótipos para criticar a macheza latino-americana e definir a personalidade de Vilarotas. Impagável!
Quando da escolha do elenco para a encenação de A Casa de Bernarda Alba, Possi Neto convidou Nilda Spencer para interpretar Maria Josefa. Ela não aceitou e o papel coube a Carmem Bittencourt, que retornou como atriz ao palco da Escola de Teatro depois tê-lo deixado com a turma que se desligou da instituição para criar a Sociedade Teatro dos Novos. Por esse motivo, não tive o prazer, como assistente de direção, de acompanhar o processo de criação da atriz. Presenciei o de Carmem Bittencourt, claridade em cena. E penso: com teria Nilda Spencer criado a louca-lúcida mãe de Bernada? Ele realizaria um belo feito, tenho certeza.
Mais tarde, estando em São Paulo, e excursionando pelo Brasil (1981) com a peça Escuta, Zé Ninguém, criação memorável de Marilena Ansaldi e Celso Nunes, fui abraçado por Nilda Spencer no camarim do Teatro Castro Alves. Não esqueço esse abraço. Era o abraço de quem se reconhecia em mim, pois sabia que contribuira para a minha formação como ator, que passara um tanto do seu saber e me vira engatinhar no palco. Senti o caloroso e generoso abraço e agradeci, afetuosamente, tudo aquilo que aprendera com ela.
Que a nossa memória dê conta dessa vida no palco e que não esqueçamos a forma com que Nilda Spencer desdobrou-se em tantas máscaras para revelar o seu ser de atriz, de mulher. Ela agora “dança no sétimo céu”, rindo maliciosamente da nossa transitoriedade.