Tatuagem, o filme e não a canção, chega às telas e nos pega de corpo e alma. Ah, como se existisse tal divisão. Divisão que cientificismo criou e o filme desconstrói sabiamente ao contar de maneira visceral a história de um grupo de teatro no Brasil de 1978, ainda no período do (des)governo militar. Mas o foco central é a relação afetiva-sexual entre Clécio (Irandhir Santos), o cabeça do grupo, e Fininha (Jesuíta Barbosa), um jovem recruta, que fugindo à rigidez do quartel se envolve com Clécio, integrando-se à trupe e desbundando junto com ela.
Impregnado de elementos da
contracultura, aquela localizada entre os anos 60 e 70, o filme expõe de
maneira contundente, sem discursos engajados, a necessidade do indivíduo viver
a sua liberdade sendo parte de um grupo, ou melhor, da comunidade que se aglutina
em um velho casarão do Recife e mostra em seu teatro, happenings, desabusadamente escrachados, uma indireta e gostosa
referência aos Diz Croquettes, trupe teatral que energizou o palco com sensualidade e deboche.
Assim, os artistas enfrentam a rigidez imposta
pelos valores do establishment
operante naquele tempo de tantas contradições, mas de afirmação de uma nova ordem,
enaltecedora da desrepressão, da reinvenção da família, da afirmação da
sexualidade hétero ou homo e de tudo o que foi até então abafado pelos sistemas
políticos, econômicos e sociais.
Hilton Lacerda vai a fundo sem perder
a delicadeza, contando com precisão este universo impregnado de hipismo, sonho
e desejo de mudança. Habilidosamente, o
diretor cativa ao mergulhar por inteiro na relação de amizade entre os membros
do grupo e principalmente no triângulo amoroso quando da introdução de Fininha.
Ao entrar na história do grupo, o recruta interfere na relação de Clécio com
Paulette, situação que se resolve numa bela cena entre os dois. A sinceridade
com que se tratam permite que o envolvimento entre os amantes e as tensões
causadas no que se sente rejeitado, não desestabilizem o convívio, nem os
ensaios e as apresentações no Chão de Estrelas, local de festa, misto de teatro e boate. Nem mesmo as presenças da ex-mulher de Clécio e do
filho do casal, entrando na adolescência, impedem que ele ame Fininha e exerça
o seu papel junto ao grupo de artistas underground.
Tatuagem deixa marcas emocionais em seus personagens e
literalmente em Fininha. Não contarei a cena para não estragar a bela e
cativante surpresa. Além disso, o filme afirma-se como um lugar em que os
“jovens mais violentos, que rapidamente chegam à conclusão de que o antídoto
para a ‘racionalidade louca’ de nossa sociedade está em se entregar de corpo e
alma a loucas paixões”, como afirma Roszak (1972, p.75) em Para uma contracultura.
A violência é ação questionadora dos sistemas
que impedem o individuo assumir-se enquanto sujeito, pois as normas determinam
padrões de comportamento que cindem os homens/mulheres tornando-os neuróticos,
autoritários deprimidos, destituídos de imaginação. Impossibilitados de
reconciliar-se com o todo – razão, beleza, sensualidade – os sujeitos se afastam
de Orfeu e Narciso, de Dionísio e Apolo.
Ao terminar seu filme ao som de Dalva
de Oliveira cantando Bandeira branca,
Hilton Lacerda aponta para aquilo que Baudelaire (segundo Marcuse, 1981, p.
150) pensou: “Tudo seria ordem e beleza, luxo, calma e voluptuosidade.” Com esta
afirmativa, eu não quero dizer que o filme se encerra resolvendo tudo pelo
final feliz, mas a beleza e a comicidade instalada em cada cena nos dizem que a
vida com suas tensões e distensões é possível de ser vivida, ainda que as
condições sejam de amargar.
No filme, a desarmonia não encontra eco
no interior da comunidade. A crise, se há, é decorrente do regime militar, sua rigidez
e sua censura, perseguidoras dos artistas, proibindo sua ação e em seguida
invadindo o teatrinho com um contingente de viaturas e soldados desproporcional
ao que é a vida e a arte do grupo. Este princípio, vida e arte, posto a girar no
casarão desestrutura a rigidez do mundo, pois o que se quer é viver em harmonia
com a natureza, abrindo espaços para a imaginação, a fantasia, a utopia.
Tatuagem exalta Eros. Exalta também o talento de Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa (Prêmio de Melhor Ator em Gramado) e Rodrigo Garcia e conta também com a participação de Sérgio Restiffe.
Amor e sexo, afeto e cumplicidade
marcam o encontro entre Clécio e Fininha. E tudo é exercido sem culpa. Tudo entre
eles se dá como na cena em que dançam ao
som de Dolores Duran. Veja a cena em http://www.youtube.com/watch?v=0vCfFaMzTlw
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
ROSZAK, Thedore. Para uma contracultura. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972.
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
ROSZAK, Thedore. Para uma contracultura. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972.