sábado, 30 de outubro de 2010

Registro 327: Delicadeza

A dramaturga e professora Cleise Furtado Mendes, relançou em noite de autógrafos, adiada de 2009 para 2010, por motivos alheios ao seu querer, o livro O Cruel Aprendiz.

O livro se encontra em minha mesa de cabeceira e li uma boa parte de seu conteúdo, mistérios que a autora nos revela a cada página. Das páginas que visitei pedindo licença, porque livro é como casa, a gente pede licença antes de invadi-los, escolhi poesias levado pelo calor da hora. 

Visitante, sorrateiramente penetrei no universo da autora e me deixei seduzir por Marinha, Sagração, Plaudite, Maria, Busca, entre outros que me tocaram pelos ritmos com que as palavras anunciam pensamentos e sentimentos que chegam em mim e repentinamente me prendem à página, lugar do "palavrar". 


Ao longo de o Cruel Aprendiz, encontro poesias que desvelam o mundo do teatro, universo por onde a autora transita e também se apresenta ao mundo. Tais escritos dizem coisas para mim também: Persona, Nilda Spencer aos 80, A Palavra e o Teatro, Tema de Téspis, o ator, Biografia de Um Ator. Outro do meu interesse é o belo Bahia 1798.

Não sou crítico literário, por isso me abstenho a um juízo. .Mas que importância teria essa minha avaliação? Ainda que considere a crítica literária, deixo-a aos doutos. O que importa é que a poesia de Cleise Furtado Mendes me encanta, aí está um dos seus valores. As palavras dosadas, arrumadas, postas em sossego em cada folha de papel ganham vida e me desassossegam, tiram-me da passividade do cotidiano, da mesma forma que o Pano listrado, "tecido de aturdimento e danação", verdadeira arlequinada para minha alma às vezes tão apática.

Dias depois da noite de autógrafos, 26/10/2010, recebi por e-mail mais uma produção de Cleise Mendes. Coisa recente, enviada como brinde. Uma delicadeza que reproduzo aqui neste diário. Diário que a preguiça e os atropelos da vida impedem registros constantes.


Passagem de Gabriel


Cleise Furtado Mendes


Pedacinhos de papel
estrelejando
o chão da sala,
manchas em constelação
pelas paredes brancas.
Dá pra ver que por aqui
passou um anjo.


Por aqui passou um anjo
combatendo
a imobilidade das coisas.

Com sua espada flamejante
- comprada em oferta
com a máscara de Batman -
foi transmutando em cacos e farelos
tudo que vive triste
de não ser tocado.


Aqui passou o anjo Gabriel
com seus três anos de sabedoria
e nada ficou no lugar
ao sopro desse vento
teimoso como a vida.

28/10/10

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Registro 326: Estupidez

O texto que se segue é de autoria de Eliane Trindade e Daniel Bergamasco, Folha de S. Paulo, 27 de outubro de 2010. É o relata de um acontecimento inimaginável, pensave eu, até que a coisa se deu no âmbito de uma atividade reunindo universitários. Fui universitário, hoje sou professor de universitários, vi e tenho visto coisas absurdas, mas esta que se deu em Araraquara - SP passou dos limites. Fere o bom senso. O pior de tudo é que os organizadores, candidamente, disseram ser uma brincadeira. Somente crianças perversas, sem limite, sem educação, concebem uma brincadeira de tal monta, penso eu. E olha que não são crianças, os moços da Universidade Estadual Paulista. Somando-se ao pior, o vice-diretor da Faculdade de Ciências e Letras, veja bem, promete apurar, aplicar medidas disciplinares e conclui: "mas não queremos estabelecer um processo inquisitório". Ninguém em sã consciência quer processos inquisitoriais. Vivemos noutro mundo e com outro padrão de justiça.  O que se quer então? È que a autoridade da instituição educacional tome com determinação a atitude necessária para restabelecer a saúde do lugar que administra. Ao finalizar sua fala da forma como finalizou, dá margem para que tudo termine sem grandes consequências para os estúpidos estudantes que fizeram de suas colegas "vacas" de uma rodeio. A que ponto nós chegamos!!

"Um grupo de alunos da Universidade Estadual Paulista, uma das mais importantes do país, organizou uma "competição", batizada de "Rodeio das Gordas", cujo objetivo era agarrar suas colegas, de preferências as obesas, e tentar simular um rodeio -ficando o maior tempo possível sobre a presa.

A agressão ocorreu no InterUnesp 2010, jogos universitários realizados em Araraquara, de 10 a 13 de outubro.

Anunciado como o maior do país, o evento esportivo e cultural, que reuniu 15 mil universitários de 23 campi da Unesp, virou palco de agressão para alunas obesas.

Roberto Negrini, estudante do campus de Assis, um dos organizadores do "rodeio das gordas" e criador da comunidade do Orkut sobre o tema, diz que a prática era "só uma brincadeira".

Segundo ele, mais de 50 rapazes de diversos campi participavam. Conta que, primeiro, o jovem se aproximava da menina, jogando conversa fora -"onde você estuda?", entre outras perguntas típicas de paquera.

Em seguida, começava a agressão. "O rodeio consistia em pegar as garotas mais gordas que circulavam nas festas e agarrá-las como fazem os peões nas arenas", relata Mayara Curcio, 20, aluna do quarto ano de psicologia, que participa do grupo de 60 estudantes que se mobilizaram contra o bullying.

No Orkut, os participantes estipulavam regras para futuras competições, entre elas cronometrar as performances dos "peões" e premiar quem ficasse mais tempo em cima das garotas com um abadá e uma caneca. Há relatos de gritos de incentivo: "Pula, gorda bandida".

Com a repercussão, a página do site de relacionamento foi excluída. Cópias dos posts espalharam-se pelo campus em Assis.

Em murais aparecem frases como "Unesp = Uniban", referência ao caso a Geisy Arruda, que foi xingada por usar um vestido curto.

As vítimas não querem falar. "Uma das meninas está tão abalada que não teve condições de voltar à faculdade. Teme ficar conhecida como "a gorda do rodeio'", afirma a advogada Fernanda Nigro, que acompanhou, na última terça-feira, uma manifestação de repúdio.

O grupo foi recebido pelo vice-diretor da Faculdade de Ciências e Letras, do Campus de Assis, Ivan Esperança. "Vamos ouvir os envolvidos e estudar as medidas disciplinares, mas não queremos estabelecer um processo inquisitório",

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Registro 325: "Brincadeiras " no Festival de Teatro da Amazônia



É sempre bom ver o nosso trabalho tomando outra forma. Falo da encenação de meu texto Brincadeiras (1977) que recebe mais uma leitura cênica, agora feita por Socorro Andrade para a Companhia Metamorfose de Manaus. O espetáculo foi apresentado no Festival de Teatro da Amazônia entre os dias 8 a 17 de outubro.

Conforme notícias recebidas, o Teatro Amazonas estava cheio na estreia de Brincadeiras e recebeu o Prêmio de Melhor Espetáculo e uma viagem para Recife. Além disso, a montagem  recebeu as seguintes indicações: Melhor Texto, Melhor Atriz (duas atrizes foram indicadas), Melhor Direção, Melhor Ator, Melhor Figurino e Melhor Cenário.
A diretora enviou-me fotos do espetáculo. É gratificante saber como o texto ganha no palco abordagens múltiplas, ainda que traga em sim um potencial para a cena. Desde sua estreia em São Paulo em 1978, sob a direção de Mário Mazetti, Brincadeiras vem recebendo diversas montagens, uma demonstração de que o texto não perdeu a sua força comunicativa, permitindo outros inventos sobre ele.
Ao ver as fotos da Cia. Metamorfose, percebo a criação de Socorro Andrade. Imagino que ela soube captar a essência do texto, não se prendendo a ele, mas jogando com a minha proposta. Bacana!!

Registro 324: Como Esquecer


O filme de Malu de Martino, Como Esquecer, em cartaz na Sala de Arte - Cinema da UFBA é uma grata surpresa. Não há ali esforço pretensioso de transformar a linguagem cinematográfica através de um exercício de pirotecnia. A diretora conta com um bom roteiro para contar um momento da vida da professora Júlia (Ana Paulo Arósio) na luta para reconstruir seu viver esfacelado, após uma intensa relação amorosa com Antônia. Filme intenso, construído com belas imagens Como Esquecer é tocante ao retratar essa descida ao fundo do poço e expor com muita verdade a personagem em sua ego-trip dolorosa. Acompanhada de perto por seu amigo (Murilo Rosa) que também sofre as dores da perda, seu namorado faleceu, e por uma amiga (Natália Lage) abandonada pelo namorado ao sabê-la grávida, Júlia recebe o apoio necessário para retornar à vida, já que se encontra deliberadamente fora dela. Não há grandes lances, tudo acontece de maneira verossímil, o que torna a dor da perda ainda maior. Os pequenos gestos dolorosos, alegres e afetivos vão se somando ao longo do filme. Belo filme.

Cabe ao elenco, muito bem escolhido e adequado aos personagens, levar em frente essa história. O trio central cumpre com talento exemplar as nuances dos seus personagens, sem estereotipia, sem exageros. Destaque para Ana Paula Arósio que se mostra densa ao expor as dores causadas pelo fim do amor difícil de esquecer.

Sobre a personagem, sua construção, na visão da diretora e dos roteiristas, reclamo um pouco, visto sua insistência em se negar para a vida, quando a vida apresenta possibilidades transformadoras. Mas isso não diminui as qualidades do filme. É somente um ponto de vista

domingo, 17 de outubro de 2010

Registro 323: Há sempre um copo de mar para o homem navegar

O texto é longo, mas vale a pena alguns minutos para tomar conhecimento do seu teor. É de autoria de Nuno Ramos, "a besta fera" da hora. O "bode expiatório" da hipocrisia nacional.Não vi a obra de Nuno Ramos, mas acompanho a polêmica sobre os urubus. Sobre a obra, o silêncio total. Mais importou o escândalo dos ofendidos, mas nada sobre os significados do trabalho, uma leitura, um olhar para ver o que há ali, sua "estrutura de sentimento" e o que mais houver. E há. Bandeira Branca não está ali para escandalizar burguês, pichador, ou defensores dos direitos dos animais, esses aí adoram passear nos Jardins Zoológicos e ter bichinhos de estimação na coleira. O texto de Nuno é esclarecedor. Foi publicado no caderno Ilustríssima do jornal Folha de S. Paulo em 17 de outubro (a data nos anima a pensar nos caminhos do mundo de ontem e de hoje. A data também nos assombra). No mesmo caderno Lorenzo Mammì escreve um belo artigo em defesa da arte. A arte se defenda por si mesma. Gosto do texto de Mammì.Taí a dica. E seguimos navegando. Até quando? 

Bandeira branca, amor

NUNO RAMOS

PROCUREI INTENCIONALMENTE matar três urubus de fome e de sede no prédio da Bienal de São Paulo. Pus ali imensas latas cheias de tinta escura, para que se afogassem, além de espelhos, para que batessem a cabeça durante o voo. Construí túneis de areia preta, para que entrassem sem conseguir sair, morrendo ali dentro. E, para forçá-los a voar, costumo lançar rojões em sua direção.

ACUSAÇÕES Como nos pesadelos ou nos linchamentos, não é possível responder a acusações desta ordem, que circularam pela internet e no boca a boca com força insaciável nas últimas três semanas, criando um caldo de cultura próximo à violência e à intimidação. Como resultado disso, em plena Bienal, entre faixas pedindo que eu fosse preso, meu trabalho foi atacado por um pichador, que driblou a segurança, rasgou a tela de proteção aos bichos e danificou uma das esculturas de areia.

Fomos cercados, eu e minha mulher, por militantes ecologistas, que nos xingavam e gritavam do outro lado do vidro do carro, a boca em câmera lenta, "a-li-men-ta-e-les!" -o que, claro, já havia sido feito naquele mesmo dia. Barbara Gancia, colunista da Folha, chegou a pedir, utilizando um imaginário de repressão militar ou de milícia fascista, que eu fosse colocado de cuecas contra um muro e submetido a uma ducha com as mangueiras para incêndio do corpo de bombeiros.

Ingrid E. Newkirk, presidente da organização não governamental Peta [pessoas pelo tratamento ético de animais, na sigla em inglês], num artigo feroz, publicado na Folha em 8/10, encontra apenas o que pressupõe desde o início: que eu quero aparecer (ela, não? alguém duvida que um dos temas da polêmica é justamente a disputa pelo espaço na mídia?); que sou (os termos são dela) cruel, "bad boy", sem compaixão e produtor de arte de má qualidade. Como não há argumentos e o raciocínio é circular, tudo retorna à ilibada consciência da articulista.

A notícia atravessou fronteiras raras para questões envolvendo arte (horários insuspeitos em todos os canais de TV, cadernos de jornal pouco afeitos à cultura e nas mais diversas regiões do país), passando a assunto de bar e padaria. Os urubus, definitivamente, haviam conseguido escapar e, para usar os versos de Augusto dos Anjos, pousaram na minha sorte.

TOM Frequento uma área da cultura afastada dessa luz radioativa, e não quero errar o tom. Começo este texto, portanto, fazendo a minha lição de casa: o que quer que tenha acontecido, aconteceu por meio das instituições. A licença do Ibama de Sergipe, que permitiu o transporte e a exposição dos animais, era legítima e dentro de parâmetros absolutamente legais, bem como sua cassação pelo Ibama de Brasília.

Tentamos, eu e a Fundação Bienal, que me apoiou de todos os modos possíveis em defesa do meu trabalho, uma liminar na Justiça e perdemos. Acatamos e tiramos, no mesmo dia em que a decisão liminar saiu, as três aves. Sinto-me coibido, injustiçado e chocado com tudo isso, mas não posso dizer que fui censurado. E por entender que a forma que destruiu meu trabalho ao tirar as três aves é legítima, quero divergir completamente dela.

Como quase nenhuma informação sensata circulou, tenho primeiro que dizer o óbvio:

1) As aves que utilizei em meu trabalho são aves nascidas em cativeiro, e não sequestradas ao habitat natural; é para este cativeiro que voltaram (e onde estão neste momento), quando foram "soltas" do meu trabalho;

2) Pertencem ao Parque dos Falcões (criadouro conservacionista que funciona com autorização do Ibama, realizando atividades educacionais e pedagógicas, pelo Brasil inteiro, com aves de rapina), que as mantêm em exposição para o público, como num zoológico;

3) Estas mesmas três aves participaram em 2008 de uma versão bastante similar deste trabalho, no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, durante dois meses, adaptando-se perfeitamente ao espaço e sem nada sofrer, com plano de manejo aprovado pelo mesmo Ibama;

4) As aves foram adaptadas ao espaço da Bienal antes do início da mostra, com a presença do veterinário responsável por elas e de um tratador;

5) Esse tratador, o mesmo que cuida delas em Sergipe, ficou permanentemente com elas durante todo o tempo de exibição das aves ao público, literalmente abrindo e fechando a mostra:

6) Eram alimentadas por ele todas as manhãs, em quantidade e frequência estipuladas pelo plano de manejo;

7) O volume das caixas de som foi controlado, sendo mantido numa altura bastante inferior ao do murmúrio do público, para evitar estresse aos bichos;

8) O plano de manejo das aves, aceito pelo Ibama de Sergipe, foi revogado, já no meio da polêmica, pelo Ibama de São Paulo -mas sem recomendação de cassação. O que o laudo técnico, sério e sisudo do Ibama de São Paulo solicitava eram ajustes -basicamente, que desligássemos uma das caixas de som e que instituíssemos banhos de luz ultravioleta todas as manhãs, para suprir a falta de luz solar direta sobre os bichos (embora a luz do dia banhasse o espaço). Oferecia, ainda, uma licença de 15 dias, a ser prorrogada de acordo com a avaliação periódica sobre o bem-estar dos animais. O Ibama de Brasília, que, sob pressão política e midiática, determinou arbitrariamente a saída das aves, em desacordo com o laudo do Ibama de São Paulo, travou o que parecia ser um processo rico de colaboração entre técnicos sérios, com conhecimento sobre os animais, e um trabalho de arte;

9) Obtivemos laudo favorável do Departamento de Parques e Áreas Verdes da Prefeitura de São Paulo;

10) Técnicos do setor de aves do Zoológico de São Paulo, em vistoria ao trabalho, não manifestaram qualquer crítica específica ao manejo das aves -fiquei sabendo nesta visita, inclusive, que a jaula dos urubus era bem maior que qualquer jaula do zoológico, inclusive a do condor.

EXPIAÇÃO Por que, então, tanta confusão? Que é que está sendo expiado aqui?

Para começo de conversa, e como aproximação ao problema, quero lembrar que "Bandeira Branca" não é um trabalho de ecologia, nem eu sou especialista em aves de rapina, assim como "Guernica" de Picasso não é apenas um trabalho sobre a Guerra Civil Espanhola, nem Picasso um historiador. Por isso utilizei os serviços de uma entidade ecológica, o Parque dos Falcões, e obtive, tanto na montagem em Brasília, em 2008, quanto em São Paulo, autorização do órgão legal em meu país para esses assuntos.

Ou a lei não vale para todos? Tratar meu trabalho como crime e a mim como criminoso é fazer o que fazia a direita franquista, ao chamar "Guernica" de quadro comunista, ou a aristocracia francesa da segunda metade do século 19, quando ameaçava retalhar a "Olympia", de Manet, em nome dos bons costumes.

O que me foi negado com a criminalização do meu trabalho foi a possibilidade de um sentido -o sequestro, digamos, de qualquer sentido que ele pudesse propor. E é contra isso, mais do que contra a boataria e a calúnia, que escrevo hoje.

VALORES Arte não cabe nos bons nem nos maus valores, por mais confiança que se tenha neles. Dela emana um signo aberto, para isso foi inventada, para que fanatismos como os que ouvi nessas últimas semanas não circunscrevam completamente o possível da vida. Claro que ninguém está acima da lei, e, repito, cumprimos, artista e instituição, rigorosamente a legislação ambiental brasileira -mas é a possibilidade de pensar diferente que está sendo criminalizada aqui.

Artistas extraordinários como Joseph Beuys (por sinal, fundador do Partido Verde na Alemanha), Jannis Kounellis, Hélio Oiticica, Nelson Felix, Tunga, Cildo Meireles, utilizaram animais em suas instalações. Provavelmente o trabalho de Beuys que inclui um coiote ("I Love America and America Loves Me") seja, sem nenhum favor, uma das mais importantes obras de arte do século 20.

"Tropicália", de Hélio Oiticica, que tem araras vivas em seu interior (curiosamente, exposta há poucos meses, com as aves, no prédio do Itaú Cultural de São Paulo, na avenida Paulista, sem despertar qualquer polêmica), é um trabalho fundamental para a compreensão do que somos e do que queremos ser. Negar o que estes artistas conseguiram com seus trabalhos -uma oxigenação radical de nosso imaginário- tratando-os como criminosos certamente seria regredir a épocas de triste memória.

Posso entender quem seja contra bichos em cativeiro. Seria interessante exigir um pouco de coerência dessa posição -ou seja, vegetarianismo radical, já que a quase totalidade da carne que comemos vem de animais em cativeiro, fechamento de todos os zoológicos, jóqueis-clubes, fazendas com animais para monta e, ainda, requalificação geral de nossas relações com bichos domésticos. Mas, mais do que coerentes, gostaria que fossem suficientemente democratas para aceitar que nem todos pensem como eles, nem todos se deem o lugar de xamãs, em contato íntimo com os desejos e sensações dos animais, e que dentro das regras públicas legais de cada país o acesso a esses animais possa se dar sem histeria nem calúnias.

BANDEIRA BRANCA Como nada ou quase nada se falou sobre o trabalho, peço licença para interpretar o que eu próprio fiz, partindo de uma breve descrição. "Bandeira Branca" (este título, no meio de um bombardeio desses, é dessas coisas que só a arte explica) foi montado pela primeira vez há dois anos, no CCBB de Brasília, e agora, ampliado e modificado, recebeu uma segunda versão, especialmente para a 29ª Bienal.

O trabalho consiste em três enormes esculturas de areia preta pilada, foscas e frágeis, a partir de cujo topo, feito de mármore, três caixas de som emitem, em intervalos discrepantes, as canções "Bandeira Branca" (de Max Nunes e Laércio Alves, interpretada por Arnaldo Antunes), "Boi da Cara Preta" (do folclore, por Dona Inah) e "Carcará" (de João do Vale e José Candido, por Mariana Aydar). Três urubus vivem na instalação durante toda a duração do trabalho.

O resultado é uma cena solene, entre a litania e a canção de ninar, que me parece ter cavado, em sua montagem em São Paulo, uma espécie de buraco negro no prédio da Bienal. Acho que o vão do prédio, uma das obras mais felizes de Niemeyer, com sua velocidade e otimismo, ganhou com meu trabalho um contraponto ambivalente, noturno e encantado, triste mas também próximo do mundo dos contos de fada.

Há uma espécie de espiral ascendente no trabalho, que se desmaterializa conforme o espectador sobe a rampa do prédio e as pesadas colunas de areia se transformam na geometria de quem vê as esculturas de cima. Feito primeiro de areia, depois de mármore, depois de vidro, depois de som, depois de voo, o trabalho faz em seu percurso o mesmo que as aves, num ciclo que a chuva de fezes brancas, caindo sobre as peças e sobre o chão, inicia novamente.

ANTIPENETRÁVEL Mas o ponto crucial, acho eu, é que, apesar da monumentalidade do trabalho e da textura inacabada da areia, que solicitam o corpo do espectador, o público é mantido fora da obra, numa espécie de antipenetrável. A obra de certa forma já foi ocupada, já tem dono e por isso não podemos nos aproximar. A noite, as canções e os urubus são seus donos, e ao público resta assistir de fora a alguma coisa viva, que não precisa dele.

As canções e os bichos, forças ascensionais contra a inércia e o peso das esculturas, já tomaram conta da obra e a tela de proteção, que materializa o desenho do vão do prédio, marca essa passagem entre um exterior institucional e um interior ativo, fechado em si, mistura de cultura (canções), natureza (os urubus) e arquitetura.

As aves e as canções dão ao trabalho o seu agora, uma duração voltada para algo indiferente ao mundo lá fora. Daí que muita gente tenha me dito que se sentia observado pelas aves e não observador, dentro da grade e não fora dela. E que no meio de tanto tumulto, com certeza as três aves pareciam as únicas tranquilas.

Esta atividade interna autossuficiente está no coração deste trabalho e me acompanhou ao longo da balbúrdia destes dias difíceis. Fico feliz de perceber que de certa forma o trabalho já pressupunha isso, falava disso e defendia-se exatamente disso -queria estar consigo e não conosco, longe da barulheira que no entanto causava.

AUTOSSUFICIÊNCIA Em vez da atividade do espectador, própria de tantas das melhores obras modernas, e que encontrou entre nós uma formulação extrema na ideia dos "Penetráveis" de Hélio Oiticica, a arte contemporânea parece estar se voltando para dentro, numa autossuficiência renitente.

Não é o lugar para desenvolver isto, mas, para dar dois exemplos memoráveis, acho que as "Elipses", de Richard Serra, apoiadas em si mesmas e não mais nas paredes das instituições, ou "O Ciclo Creamaster", de Matthew Barney, com suas infinitas dobras e relações internas, partilham esta característica. Meu trabalho acompanha de certa forma essa direção.

A institucionalização crescente da arte trouxe para junto dela uma pletora de discursos institucionais, todos perfeitamente centrados, seguros de si e disputando espaço na mídia e nas oportunidades orçamentárias. Isso vem, talvez, do estilhaçamento das grandes noções universais que acompanharam a formação do mundo moderno: política, religião, burguesia, proletariado, luta de classes, direita, esquerda etc.

Com a quebra dessas noções universais, os particulares (ecologia, minorias étnicas, minorias sexuais etc.) firmaram-se, cheios de si, pontudos, zelosos de suas verdades. A arte talvez seja a última experiência universalizante, ou ao menos não simétrica à discursividade do mundo, e acho que tende a ser cada vez mais atacada, toda vez que discrepar, como soberba e como arbítrio. Mas penso que é isso mesmo que ela deve manter: sua soberba e seu arbítrio, para que possa continuar criando.

DESFAÇATEZ Pois isso para mim foi o mais impressionante de tudo: a absoluta incapacidade, digamos, interpretativa de quem me atacou, a recusa de ver outra coisa, de relacionar o sentimento de adesão ou de repulsa que meu trabalho tenha causado com qualquer coisa proposta por ele, em suma, a desfaçatez com que foi usado como trampolim para um discurso já pronto, anterior a ele, que via nele apenas uma possibilidade de irradiação.

Para isso, é claro, o principal ingrediente é que fosse tomado de modo absolutamente opaco e literal, espécie de cadáver sem significação. Para que possa ser veículo estrito de discursos e de grupos, sem que utilize seus recursos, digamos, naturais (sedução, desejo, ambivalência), o trabalho de arte tem de estar, de fato, desde o início definitivamente morto. Daí, creio, a ferocidade com que fui atacado -uma espécie de operação higiênica preventiva, para impedir que qualquer germe de espanto, ambiguidade, beleza, estupor, pudesse aparecer, desqualificando o desejado consenso.

No fundo, acho que a frase famosa de Frank Stella, que jogou uma pá de cal nas ilusões subjetivas de começos dos anos 60 e inaugurou as poéticas minimalistas que duram até hoje, "What you see is what you see" ("O que você está vendo é o que você está vendo"), parece ter migrado da arte para o mundo. A literalidade das obras de um Carl Andre ou de um Donald Judd transferiu-se inteira para as instituições e para o público.

Por isso talvez caiba hoje à arte a tarefa bastante simples, mas tão difícil, de dizer exatamente o contrário: "O que você está vendo NÃO é o que você está vendo". Ou seja, sonhar. Ou, como diz a letra da canção, "Bandeira branca, amor".

Registro 322: Soterrados


O FUNDO DO POÇO


 Filipe Leão

Pôs-se fim o drama envolvendo trinta e três operários soterrados pelo desmoronamento de terra da mina San Jose localizada no deserto do Atacama, ao Norte do Chile. Presos há mais de dois meses num poço de 622 metros de profundidade, o resgate dos trabalhadores foi comemorado em todas as partes do mundo.

Aos cidadãos-expectadores ‘de fora’ do poço restou o reconhecimento de coragem e determinação dos que lutaram pela sobrevivência. Ficou evidente que nem mesmo as situações extremas de temperatura, pressão, luminosidade, espaço e comida reduzidos foram fortes o suficiente para remover a esperança de viver cultivada no semblante de cada um dos mineiros.

O povo Chileno, por seu turno, em júbilo, revigorou o sentimento de nação e de pertencimento. Salvar cada homem tornou-se questão de honra para todos.

A comunidade internacional, felizmente, não permaneceu imóvel. Equipamentos foram deslocados dos Estados Unidos. Engenheiros do Afeganistão. E tantos outros desconhecidos estiveram presentes. Sim, um sopro de humanidade percorreu o mundo, unificando diferenças e fazendo crer na capacidade do homem em ser de fato mais humano.

E mesmo que o final deste acontecimento tenha sido capitalizado politicamente pelo presidente chileno e pela grande imprensa internacional – que lucrou muito com o ocorrido, ao que parece, aquele cenário não será apagado das lembranças, como mais um novo reality show a ser esquecido da memória. Seria pessimista demais acreditar na incapacidade da humanidade em (re)cultivar sua solidariedade e sua fraternidade pela dor alheia.

E, por isto, ainda nos restam outros tantos milhares de homens, mulheres, crianças e idosos que embora vivendo livremente, estão soterrados pelas intempéries vividas pelos mineiros de San Jose do Atacama. Estão aqui e ali, em qualquer lugar, em poços de fome, de sede, sem lar ou terra e de violência. Aí estão um contingente que clama por ajuda e que tem um grito inaudível para muitos que estão ao lado ou ‘de fora’: "Salvem-nos. Salvem-nos. Sem nós, não há que se falar em salvação!"

A operação realizada em San Jose deveria ser o necessário e imprescindível início do resgate da humanidade.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Registro 321: Música no ar


Ouço Virgínia Rodrigues.
Nós.
É bonita a negra voz.
Ao ouvir Virgínia cantar canções negras
o coração mergulha na sonoridade
da noite escura 
do Brasil.
Lamentos
Doces
Lamentos

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Registro 320: Fisiologismo e autoritarismo do PSDB

Eles nos passam a rasteira. De bom mocismo o inferno está cheio. Leia e se dê conta do métodos. Eles dizem, os fins justificam os meios. É nojento.

Zé Mané & Beto Richa

Fernando de Barros e Siva
(Folha de S. Paulo, 1 de outubro de 2010)

O fotógrafo Moacyr Lopes Junior e a repórter Catia Seabra fizeram aquilo de que o presidente Lula não gosta: bom jornalismo. Flagraram o momento em que José Serra pediu a ligação e falou ao celular com Gilmar Mendes, no início da tarde de anteontem.

Poucas horas depois, o ex-presidente do Supremo faria um exótico pedido de vista, interrompendo o julgamento do recurso do PT contra a exigência de apresentação de dois documentos para votar. O placar já era então de 7 a 0 pela desnecessidade da dupla documentação.

Retomado ontem o julgamento, a exigência caiu por 8 votos a 2, mas Mendes, mesmo derrotado, aproveitou a sessão para marcar posição e mandar seus recados.

Sintomático, no entanto, foi seu comentário na véspera, antes de saber que o telefonema de Serra viria a público: "Daqui a pouco, apenas um desenho a lápis será necessário para provar que o Zé Mané é o Zé Mané". O caso está resolvido, mas será preciso muito mais do que uma nova frase de efeito para desfazer a evidência de que um outro Zé, que nada tem de Mané, buscava no ministro, a quem chamou de "meu presidente", um aliado para reverter a tendência do julgamento.

Do episódio, fica reforçada a sensação de que os tucanos contavam com esse excesso legal para afastar uma parte dos mais pobres e menos instruídos das urnas.

E, por falar em Mané, o candidato tucano ao governo do Paraná, Beto Richa, vem contando com a mão da Justiça do Estado para barrar a divulgação de pesquisas eleitorais, entre elas duas feitas pelo Datafolha. O nome disso é censura.

Não se sabe se Richa será eleito. Mas, no decorrer da campanha, ele chegou a ser saudado como uma liderança emergente no país. De que tipo de líder estamos falando?

Com sua atitude obscurantista, o filho de José Richa está se revelando um político de província, uma figura tacanha e de pendores autoritários. Se o futuro do PSDB for esse, coitado do PSDB.