sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Registro 319: Eu não quero essa casa muito menos essa mãe

A Casa da Mãe Rousseff

Fernando de Barros Silva
(Folha de S. Paulo, 17 de setembro de 2010) 


A queda de Erenice Guerra é a primeira baixa do governo Dilma Rousseff. Parece estranho, mas isso é verdade em pelo menos dois sentidos. Primeiro, há indícios de que a artilharia contra a ministra foi estimulada por aliados da candidatura petista, em busca de espaço na futura administração.

 
Segundo, e mais importante, porque Erenice Guerra deve sua vida política nos últimos oito anos e o cargo que ocupou até ontem exclusivamente a Dilma Rousseff.



Lula relutou antes de confirmar Erenice como ministra quando Dilma se lançou candidata. Acabou cedendo ao apelo, mas fez de Miriam Belchior, a quem preferia no cargo, a coordenadora do PAC.



Não é plausível que Lula ignorasse a parentela pendurada no Estado que a titular da Casa Civil trazia a tiracolo. Onde estava o serviço de inteligência do Planalto? Ocupado com dossiês a respeito de quem? Até para um leigo parece óbvio que os negócios da família Guerra não resistiriam a um raio-x elementar.



Só o sentimento de onipotência e a convicção da impunidade explicam que tamanha lambança tenha sido praticada no interior do Planalto, tão perto da Presidência.



Não há, neste episódio, nenhum ministro do PMDB, nenhum deputado fisiológico da base aliada, nenhum braço periférico do aparelho estatal. O cenário é a Casa Civil e os personagens são crias de Dilma. E até o enredo, é bom lembrar, há muito deixou de ser estranho ao PT.

Quando o escândalo estourou, Dilma logo correu para separar sua campanha do governo: "Não vou aceitar que se julgue a minha pessoa baseado no que aconteceu com o filho de uma ex-assessora".

A primeira reação de Erenice, por sua vez, foi confundir governo e campanha, atribuindo as denúncias a manobras "em favor de um candidato aético e já derrotado".

São declarações contraditórias, mas movidas pela mesma conveniência. No momento em que se separam, Dilma e Erenice parecem se confundir numa única farsa.


Longe de mim essa casa. Eu que tive uma mãe bondosa, compreensiva e que me deixou livre para crescer, mas sem deixar de cumprir com suas obrigações de mãe, não quero essa mãe imposta, enigmática e que pode um dia querer cortar as minhas asas. Eu nasci pra voar, portanto para ser livre e por esse motivo fico assombrado com essa vontade de alguém querer ser mãe do povo. Tenho pavor do pai controlador e de uma mãe de cara dura e de sorriso de ocasião. Eu que um dia perdi noites defendendo princípios fundadores de uma partido que se queria amplo e libertário, vejo-me enganado. Eu me pergunto, em nome do quê? E a resposta que não cala grita:  - Eu quero o poder. E em nome do poder justifico tudo. O que nos aguarda, não sei. Que os analistas políticos façam as suas apostas. Eu só quero que não me tirem aquilo que eu mais preso, a minha liberdade de escolher. De escolher onde ir, com que andar, o que ler e ver. A minha liberdade de decidir e sonhar.

Jânio Ferreira (A Tarde, 17 de semtembro de 2010) escreveu dizendo o que espera de uma presidente:

"Que não permita que os ladrões invadam meu quintal e reubem minhas mangas e galinhas; que me guarde dos censores travestidos de democratas que salivam ávidos com a possibibilidade de voltar a controlar o que os meus olhos veem e minha mente anseia; que, em hipótese alguma, admita a violação dos meus segredos, sejam eles fiscais ou sentimentais [...]; e, caso isto aconteça, que ele jamais se comporte como um militante partidário, mas sim, como alguém que jurou me proteger contra as mazelas da ditadura."

Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?
 
As ruas da cidade estão cheias de caras e frases prometendo o paraíso na Terra. Dá pra acreditar?
 
A flor e a náusea

Carlos Drummond de Andrade  (1902-1987)

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. [...]
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
[...]

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Registro 318: Gosto de quem tem coragem

O texto que se segue é de Rubem Alves e recebi por e-mail sem mais informações. Gostei e registro aqui para que outros possam ler e pensar sobre o que ele diz. Eu também acredito que o povo que eu quero é uma esperança e não uma realidade.

"Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece", observou Nietzsche. É o meu caso. Muitos pensamentos meus, eu guardei em segredo. Por medo.

Alberto Camus, leitor de Nietzsche, acrescentou um detalhe acerca da hora em que a coragem chega: "Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos". Tardiamente. Na velhice.

Como estou velho, ganhei coragem.Vou dizer aquilo sobre o que me calei: "O povo unido jamais será vencido", é disso que eu tenho medo.

Em tempos passados, invocava-se o nome de Deus como fundamento da ordem política. Mas Deus foi exilado e o "povo" tomou o seu lugar: a democracia é o governo do povo. Não sei se foi bom negócio; o fato é que a vontade do povo, além de não ser confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta ver os programas de TV que o povo prefere.

A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica. Nada mais distante dos textos bíblicos. Na Bíblia, o povo e Deus andam sempre em direções opostas. Bastou que Moisés, líder, se distraísse na montanha para que o povo, na planície, se entregasse à adoração de um bezerro de ouro.Voltando das alturas, Moisés ficou tão furioso que quebrou as tábuas com os Dez Mandamentos.

E a história do profeta Oséias, homem apaixonado! Seu coração se derretia ao contemplar o rosto da mulher que amava! Mas ela tinha outras idéias. Amava a prostituição. Pulava de amante e amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão a perdão.Até que ela o abandonou. Passado muito tempo, Oséias perambulava solitário pelo mercado de escravos. E o que foi que viu?Viu a sua amada sendo vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: "Agora você será minha para sempre.". Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor de Deus. Deus era o amante apaixonado. O povo era a prostituta. Ele amava a prostituta, mas sabia que ela não era confiável. O povo preferia os falsos profetas aos verdadeiros, porque os falsos profetas lhe contavam mentiras.As mentiras são doces; a verdade é amarga.

Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo. No tempo dos romanos, o circo eram os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram. Os cristãos, de comida para os leões, se transformaram em donos do circo.O circo cristão era diferente: judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas. As praças ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com o cheiro de churrasco e os gritos.

Reinhold Niebuhr, teólogo moral protestante, no seu livro "O Homem Moral e a Sociedade Imoral" observa que os indivíduos, isolados, têm consciência. São seres morais. Sentem-se "responsáveis" por aquilo que fazem. Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciada pelas emoções coletivas.Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo tornam-se capazes dos atos mais cruéis.Participam de linchamentos, são capazes de pôr fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da torcida do time rival.

Indivíduos são seres morais.Mas o povo não é moral. O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo.
Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da coletividade. É sobre esse pressuposto que se constrói a democracia. Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão. Quem decide as eleições e a democracia são os produtores de imagens. Os votos, nas eleições, dizem quem é o artista que produz as imagens mais sedutoras.O povo não pensa. Somente os indivíduos pensam. Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam a ser assimilados à coletividade. Uma coisa é a massa de manobra sobre a qual os espertos rabalham.

Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo. Jesus foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás. Durante a revolução cultural, na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar.

O nazismo era um movimento popular. O povo alemão amava o Führer.

O povo, unido, jamais será vencido!

Tenho vários gostos que não são populares. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos. Mas, que posso fazer? Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio; não gosto de churrasco, não gosto de rock, não gosto de música sertaneja, não gosto de futebol.Tenho medo de que, num eventual triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos e a engolir sapos e a brincar de "boca-de-forno", à semelhança do que aconteceu na China.

De vez em quando, raramente, o povo fica bonito. Mas, para que esse acontecimento raro aconteça, é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute: "Caminhando e cantando e seguindo a canção." Isso é tarefa para os artistas e educadores.

O povo que amo não é uma realidade, é uma esperança.

Rubem Alves