A Casa da Mãe Rousseff
Fernando de Barros Silva
(Folha de S. Paulo, 17 de setembro de 2010)
A queda de Erenice Guerra é a primeira baixa do governo Dilma Rousseff. Parece estranho, mas isso é verdade em pelo menos dois sentidos. Primeiro, há indícios de que a artilharia contra a ministra foi estimulada por aliados da candidatura petista, em busca de espaço na futura administração.
Segundo, e mais importante, porque Erenice Guerra deve sua vida política nos últimos oito anos e o cargo que ocupou até ontem exclusivamente a Dilma Rousseff.
Lula relutou antes de confirmar Erenice como ministra quando Dilma se lançou candidata. Acabou cedendo ao apelo, mas fez de Miriam Belchior, a quem preferia no cargo, a coordenadora do PAC.
Não é plausível que Lula ignorasse a parentela pendurada no Estado que a titular da Casa Civil trazia a tiracolo. Onde estava o serviço de inteligência do Planalto? Ocupado com dossiês a respeito de quem? Até para um leigo parece óbvio que os negócios da família Guerra não resistiriam a um raio-x elementar.
Só o sentimento de onipotência e a convicção da impunidade explicam que tamanha lambança tenha sido praticada no interior do Planalto, tão perto da Presidência.
Não há, neste episódio, nenhum ministro do PMDB, nenhum deputado fisiológico da base aliada, nenhum braço periférico do aparelho estatal. O cenário é a Casa Civil e os personagens são crias de Dilma. E até o enredo, é bom lembrar, há muito deixou de ser estranho ao PT.
Quando o escândalo estourou, Dilma logo correu para separar sua campanha do governo: "Não vou aceitar que se julgue a minha pessoa baseado no que aconteceu com o filho de uma ex-assessora".
A primeira reação de Erenice, por sua vez, foi confundir governo e campanha, atribuindo as denúncias a manobras "em favor de um candidato aético e já derrotado".
São declarações contraditórias, mas movidas pela mesma conveniência. No momento em que se separam, Dilma e Erenice parecem se confundir numa única farsa.
Longe de mim essa casa. Eu que tive uma mãe bondosa, compreensiva e que me deixou livre para crescer, mas sem deixar de cumprir com suas obrigações de mãe, não quero essa mãe imposta, enigmática e que pode um dia querer cortar as minhas asas. Eu nasci pra voar, portanto para ser livre e por esse motivo fico assombrado com essa vontade de alguém querer ser mãe do povo. Tenho pavor do pai controlador e de uma mãe de cara dura e de sorriso de ocasião. Eu que um dia perdi noites defendendo princípios fundadores de uma partido que se queria amplo e libertário, vejo-me enganado. Eu me pergunto, em nome do quê? E a resposta que não cala grita: - Eu quero o poder. E em nome do poder justifico tudo. O que nos aguarda, não sei. Que os analistas políticos façam as suas apostas. Eu só quero que não me tirem aquilo que eu mais preso, a minha liberdade de escolher. De escolher onde ir, com que andar, o que ler e ver. A minha liberdade de decidir e sonhar.
Jânio Ferreira (A Tarde, 17 de semtembro de 2010) escreveu dizendo o que espera de uma presidente:
"Que não permita que os ladrões invadam meu quintal e reubem minhas mangas e galinhas; que me guarde dos censores travestidos de democratas que salivam ávidos com a possibibilidade de voltar a controlar o que os meus olhos veem e minha mente anseia; que, em hipótese alguma, admita a violação dos meus segredos, sejam eles fiscais ou sentimentais [...]; e, caso isto aconteça, que ele jamais se comporte como um militante partidário, mas sim, como alguém que jurou me proteger contra as mazelas da ditadura."
As ruas da cidade estão cheias de caras e frases prometendo o paraíso na Terra. Dá pra acreditar?
A flor e a náusea
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. [...]
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
[...]
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