Hysteria, criação coletiva do Grupo XIX de Teatro (São Paulo) e Aqueles Dois, adaptação do conto homônimo de Caio Fernando de Abreu, pela Cia. Luna Lunera (Belo Horizonte) foram os dois últimos espetáculos do FIAC que escolhi para ver. Depois do fiasco que foi Good Exist, vindo da distante e simpática Noruega, ver os espetáculos paulista e mineiro foi reconfortante. Aliviado, recebi a experiência estética proposta pelos dois grupos, absorvendo-as sem resitência. Mas não afirmo que os dois espetáculos sejam fáceis de digerir e que não apresentem problemas na estrutura. Entretanto, as duas experiências exigem da nossa inteligência e da nossa sensibildade. Tanto uma como a outra, embora tragam a marca da pesquisa, criam empatia, visto que os elementos constitutivos da encenação podem ser apreendidos pelo espectador medianamente acostumado com ato teatral. No primeiro momento, tanto uma como a outra aguçam a curiosidade, que no desenrolar da ação vai sendo satisfeita. E não precisamos de manuais ou exercícios mentais elaboradíssimos para captar o que a cena propõe e revela.
Hysteria é fruto de um intenso trabalho de busca e se debruça sobre histórias de mulheres confinadas em instituições de tratamento psiquiátrico – Hospício Dom Pedro II, Rio de Janeiro, por volta de 1850. Tidas como doentes por seus pais ou maridos, as mulheres foram retiradas do convívio familiar para se tornarem reclusas em um mundo de dor, mundo controlado sempre por homens, os doutores. Estes, imbuídos do cientificismo positivista que domina o século XIX e boa parte do XX, diagnosticam e aplicam o tratamento contra o que determinam ser uma patologia. Na leitura dos doutos, qualquer comportamento desviante das mulheres é tipificado como caso clínico de histeria. Esclareço que os dotoures não estão em cena, eles são apenas mecionados na pessoa de Dr. Mendes.
Essas mulheres que estiveram mudas por muitos anos agora falam. E o lugar da fala é em Hysteria; aí, elas narram sobre suas alegrias, desejos, sonhos, medos, amores, desesperos, filhos, casamento, sexo e sobre tudo que diz respeito ao humano, particularmente o feminino. Juntam-se a elas as mulheres do século XXI. Elas adentram a sala onde se representará Hysteria não mais como espectadoras, mas como atuantes.
Cabe aos homens o incômodo papel de assistentes/espectadores. Eles, sentados separados das mulheres, formam um grupo compacto, enquanto elas num grande círculo interagem com as cinco atrizes que se esmeram em dar vida aos personagens conduzindo a ação com firmeza. De forma segura, elas agem e conduzem a ação; algumas vezes de maneira autoritária outras de cativante e envolvente afeto. Assim, o grupo que foi ao teatro para assistir termina por fazer parte integrante da ação dramática. Ecos grotowskianos.
Em Salvador, o evento se deu no espaço do Instituto Feminino, hoje um museu, mas outrora tradicional instituição educacional, marcadamente católica e de rígidos princípios morais e educativos. A escolha não podia ser mais acertada. O espaço, com sua carga histórica e simbólica, abriga as vidas confinadas de Nini, Clara, M.J. , Hercília e Maria Tourinho as personagens vividas pelas atrizes Janaína Leite, Evelin Klein, Juliana Sanches, Sara Antunes e Maria Helleno, sob a direção de Luiz Fernando Marques.
A encenação despojada, usa como cenografia o espaço do Instituto e a luz que entra pelos janelões da sala. A luminosidade natural marca a passagem do tempo: o real e o imaginário. Entre um e outro sutis diferenças. Não há refletores, não há cenografia construída. O que há é apropriação do espaço. Os figurinos sem o rigor da reconstituição histórica remetem ao passado, ao desgastado. Tecidos amarelados pelo tempo, tons pálidos, rendas e filós dão a medida da permanência das vidas trancafiadas. São metáforas da delicadeza ultrajada.
À medida que o espetáculo acontecia fui me sentindo constrangido por estar ali como um intruso, um fora-do-lugar. Ao mesmo tempo deixei-me levar pela emoção. A cada instante submergir emocionalmente. Confesso: derramei lágrimas. Tal carga emotiva não suspendeu o juízo crítico. Ele agiu em dois sentidos: primeiramente pensei na condição feminina numa sociedade ainda machista e esse pensamento me levou para as lembranças particulares; repassei a vida das minhas avós, das minhas tias, da minha mãe... de minhas irmãs. Depois, não consegui deixar de pensar no ato teatral, sua concepção, sua construção, sua execução. Mas essa apreciação não se processava friamente distanciada. As imagens, as idéias e, sobretudo as sensações aconteciam sincronicamente ao meu estado psicofísico. Fui agarrado por esse acontecimento teatral tão próximo da vida, como queriam os artistas, que respaldados nos esperimentos das vanguardas históricas defenderam um teatro participativo, de comunhão e integração verdadeiras com a platéia, ali por volta dos anos 60 e 70, quando as idéias da contracultura animaram o teatro, o te-ato.
Pode-se discutir a imposição das atrizes sobre as mulheres sentadas no círculo. Mas penso que nenhuma delas foi obrigada a entrar no jogo. Mas se assim fosse, não era essa a regra institucional higienista vigente na casa de tratamento? Essa e outras questões perpassam o espetáculo. A interatividade proposta pelo grupo pode provocar rejeição por parte da platéia feminina, mas cada qual entre no jogo se quiser. Penso que as portas não estavam aferrolhadas, cabendo a cada uma o direito da recusa.
Ao sair do Instituto Feminino depois de ver as personagens envolvidas nas sombras do fim do dia e perdidas pelos corredores e salas entoando uma cantiga melancólica fiquei com a certeza de que o fenômeno teatral, essa arte sempre ameaçada de morte, está vivo. Ele nos proporciona experiências enriquecedoras, mesmo quando negamos a sua força, por discordamos esteticamente, ideologicamente ou por não encontramos elo entre o que se vê no espaço cênico e o nosso universo cognoscível. No livro-programa, extenso material sobre o espetáculo, Flavio Desgranges, professor de Teatro da ECA/USP, escreve o texto A Posição de Espectador em Hysteria, dando-nos pistas para analisarmos esse ato que se constrói entre emissor e receptor e conclui com algumas perguntas. Uma delas: “Como pensar uma arte teatral efetiva em nossos dias?” O Grupo XIX de Teatro responde com seu trabalho, outros agrupamentos responderão de muitas outras formas. Com isso, alargamos as nossas ferramentas para compreender o fenômeno teatral e separar alhos de bugalhos.
Oportunamente comento Aqueles Dois.
Hysteria é fruto de um intenso trabalho de busca e se debruça sobre histórias de mulheres confinadas em instituições de tratamento psiquiátrico – Hospício Dom Pedro II, Rio de Janeiro, por volta de 1850. Tidas como doentes por seus pais ou maridos, as mulheres foram retiradas do convívio familiar para se tornarem reclusas em um mundo de dor, mundo controlado sempre por homens, os doutores. Estes, imbuídos do cientificismo positivista que domina o século XIX e boa parte do XX, diagnosticam e aplicam o tratamento contra o que determinam ser uma patologia. Na leitura dos doutos, qualquer comportamento desviante das mulheres é tipificado como caso clínico de histeria. Esclareço que os dotoures não estão em cena, eles são apenas mecionados na pessoa de Dr. Mendes.
Essas mulheres que estiveram mudas por muitos anos agora falam. E o lugar da fala é em Hysteria; aí, elas narram sobre suas alegrias, desejos, sonhos, medos, amores, desesperos, filhos, casamento, sexo e sobre tudo que diz respeito ao humano, particularmente o feminino. Juntam-se a elas as mulheres do século XXI. Elas adentram a sala onde se representará Hysteria não mais como espectadoras, mas como atuantes.
Cabe aos homens o incômodo papel de assistentes/espectadores. Eles, sentados separados das mulheres, formam um grupo compacto, enquanto elas num grande círculo interagem com as cinco atrizes que se esmeram em dar vida aos personagens conduzindo a ação com firmeza. De forma segura, elas agem e conduzem a ação; algumas vezes de maneira autoritária outras de cativante e envolvente afeto. Assim, o grupo que foi ao teatro para assistir termina por fazer parte integrante da ação dramática. Ecos grotowskianos.
Em Salvador, o evento se deu no espaço do Instituto Feminino, hoje um museu, mas outrora tradicional instituição educacional, marcadamente católica e de rígidos princípios morais e educativos. A escolha não podia ser mais acertada. O espaço, com sua carga histórica e simbólica, abriga as vidas confinadas de Nini, Clara, M.J. , Hercília e Maria Tourinho as personagens vividas pelas atrizes Janaína Leite, Evelin Klein, Juliana Sanches, Sara Antunes e Maria Helleno, sob a direção de Luiz Fernando Marques.
A encenação despojada, usa como cenografia o espaço do Instituto e a luz que entra pelos janelões da sala. A luminosidade natural marca a passagem do tempo: o real e o imaginário. Entre um e outro sutis diferenças. Não há refletores, não há cenografia construída. O que há é apropriação do espaço. Os figurinos sem o rigor da reconstituição histórica remetem ao passado, ao desgastado. Tecidos amarelados pelo tempo, tons pálidos, rendas e filós dão a medida da permanência das vidas trancafiadas. São metáforas da delicadeza ultrajada.
À medida que o espetáculo acontecia fui me sentindo constrangido por estar ali como um intruso, um fora-do-lugar. Ao mesmo tempo deixei-me levar pela emoção. A cada instante submergir emocionalmente. Confesso: derramei lágrimas. Tal carga emotiva não suspendeu o juízo crítico. Ele agiu em dois sentidos: primeiramente pensei na condição feminina numa sociedade ainda machista e esse pensamento me levou para as lembranças particulares; repassei a vida das minhas avós, das minhas tias, da minha mãe... de minhas irmãs. Depois, não consegui deixar de pensar no ato teatral, sua concepção, sua construção, sua execução. Mas essa apreciação não se processava friamente distanciada. As imagens, as idéias e, sobretudo as sensações aconteciam sincronicamente ao meu estado psicofísico. Fui agarrado por esse acontecimento teatral tão próximo da vida, como queriam os artistas, que respaldados nos esperimentos das vanguardas históricas defenderam um teatro participativo, de comunhão e integração verdadeiras com a platéia, ali por volta dos anos 60 e 70, quando as idéias da contracultura animaram o teatro, o te-ato.
Pode-se discutir a imposição das atrizes sobre as mulheres sentadas no círculo. Mas penso que nenhuma delas foi obrigada a entrar no jogo. Mas se assim fosse, não era essa a regra institucional higienista vigente na casa de tratamento? Essa e outras questões perpassam o espetáculo. A interatividade proposta pelo grupo pode provocar rejeição por parte da platéia feminina, mas cada qual entre no jogo se quiser. Penso que as portas não estavam aferrolhadas, cabendo a cada uma o direito da recusa.
Ao sair do Instituto Feminino depois de ver as personagens envolvidas nas sombras do fim do dia e perdidas pelos corredores e salas entoando uma cantiga melancólica fiquei com a certeza de que o fenômeno teatral, essa arte sempre ameaçada de morte, está vivo. Ele nos proporciona experiências enriquecedoras, mesmo quando negamos a sua força, por discordamos esteticamente, ideologicamente ou por não encontramos elo entre o que se vê no espaço cênico e o nosso universo cognoscível. No livro-programa, extenso material sobre o espetáculo, Flavio Desgranges, professor de Teatro da ECA/USP, escreve o texto A Posição de Espectador em Hysteria, dando-nos pistas para analisarmos esse ato que se constrói entre emissor e receptor e conclui com algumas perguntas. Uma delas: “Como pensar uma arte teatral efetiva em nossos dias?” O Grupo XIX de Teatro responde com seu trabalho, outros agrupamentos responderão de muitas outras formas. Com isso, alargamos as nossas ferramentas para compreender o fenômeno teatral e separar alhos de bugalhos.
Oportunamente comento Aqueles Dois.
Nenhum comentário:
Postar um comentário