O crime de todos nós
JORGE COLI
A força das crenças confere realidade ao que não existe. Houve um tempo em que se acreditava no "brasileiro cordial". Fazia parte da ficção que se denomina "identidade nacional".Maria Sylvia Carvalho Franco desmontou esse mito em sua tese "Homens Livres na Ordem Escravocrata", de 1969 [ed. Unesp]. Desmontagem no campo reflexivo e teórico: foi preciso que a violência cotidiana ameaçasse a segurança de cada um para que a tal cordialidade "inata" dos brasileiros ruísse plenamente no âmbito dos sentimentos coletivos. O livro "Cangaceiros", de Élise Jasmin (ed. Terceiro Nome, 2006), demonstra até que ponto, no Brasil, a violência se transformou, de maneira oficial, em crueldade. Ele reúne quase 90 fotos retratando Lampião e seu bando. Algumas, que formam o epílogo, são terríveis.Duas exibem cadáveres amarrados a uma prancha, em poses arranjadas, cercados por civis e militares, como se fossem troféus de caça.Outra mostra soldados diante de um corpo acéfalo, sobre o qual, por piada, colocaram uma garrafa de cachaça. As imagens se sucedem. Um grupo militar, com seu oficial, se organiza à volta de três cabeças decepadas. Um cangaceiro se perfila ao lado de uma outra cabeça que, atada pelos cabelos longos, pende com a boca aberta. Nesse caso, o vivo e o morto eram amigos, explica a legenda.Há naturezas-mortas macabras, em que composição se ordena com um senso artístico da simetria. Às cabeças cortadas se acrescentam coisas que pertenceram aos defuntos: chapéus, embornais, cartucheiras. Com Zepelim, cangaceiro mulato, num requinte de "mise-en-scène", alguém teve a idéia de manter sua pálpebra esquerda aberta graças ao auxílio de um palitinho.
Psicose. Essas fotos, dos anos de 1930, foram publicadas na imprensa. Décadas antes, Euclides da Cunha descrevia, no final de "Os Sertões", as frias atrocidades cometidas sobre os resistentes de Canudos. O autor conta: quando descobrem a cova de Antônio Conselheiro, morto antes do término dos combates, desenterram o corpo que já apodrecia. Fotografam-no, lavram uma ata e o devolvem à cova. Antes de cobri-lo novamente com terra, alguém, usando "uma faca jeitosamente brandida", decepa o cadáver. Euclides da Cunha prossegue: "Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio".
Cutelo.Pedro Americo pintou, em 1893, seu quadro "Tiradentes Esquartejado", que se tornaria célebre.Nunca outro herói nacional, em nenhum lugar do mundo, foi representado assim, retalhado como num açougue. Pedro Americo expõe, com clareza, a crueldade oficial. Seu Tiradentes é irmão dos jagunços de Canudos e dos cangaceiros de Lampião.
Pesadelo. Os três casos, de Tiradentes, dos jagunços e dos cangaceiros, pressupõem uma ação justiceira. Justiça que contém um álibi de vingança saboreada. Sabor de sangue. A crueldade investiu contra cadáveres; ela não nos fala dos punidos: revela a alma dos punidores. Hoje, não se cortam mais cabeças, pelo menos não de modo oficial e público. Porém entulham-se presos nas cadeias, em condições abomináveis. A justiça continua a ser sentida como punição e vingança. Diante de um crime, é fácil reagir instintivamente, desumanamente. No impulso, "pagar a pena", punir, vingar brotam primeiro. Só lá para trás, bem depois, é que se arrasta, quase irrisória, a idéia de compreender, de sanar, de educar, de recuperar.
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O texto foi publicado originalmente em Mais, Folha de S. Paulo, 8 de abril de 2007.
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