Em Boca de Matilde
Gilson Jorge
A declaração feita pela ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Política da Promoção Social da Igualdade Racial (Seppir) à BBC, de que considera natural que um negro não queira conviver com brancos quase “passou em branco” nos jornais diários e na TV, mas mereceu uma análise mais profunda em publicações semanais. Houve quem defendesse a idéia de que o assunto já foi suficientemente explorado e que não valeria a pena se estender em um debate sobre o que pode ter sido apenas a má interpretação por parte da jornalista. Mas as palavras estavam ali.
Entretanto, mas preocupante do que a frase da ministra, que pode até ser vista como um mero tropeço verbal, é a constatação de que há um discurso e algumas ações dentro e fora do movimento negro que se encaixam perfeitamente em uma tendência de acirramento das tensões “raciais”. Ou, como declarou ao caderno Mais da Folha de S. Paulo a antropóloga Yvonne Maggie, a incitação ao ódio “racial”. O racial vai entre aspas porque cientistas sociais abandonaram a noção de que existem raças branca, negra e indígena. Ninguém é obrigado a concordar com a igualdade, mas quem agir de forma racista deve encarar a lei.
Em fevereiro passado, durante um encontro com jornalista em Salvador, um artista branco (para os padrões locais) narrou um episódio em que foi cercado por homens negros que o espancaram sem que ele tivesse feito nada para provocar a violência. Isso foi mais de duas décadas, mas o artista continua acreditando, ou dizendo que acredita, que o ato foi justificável pelo fato de ele ser branco e de os brancos terem subjugados historicamente os negros.
(...)
A noção de que quem foi açoitado pode também açoitar resvala para um perigoso campo em que cada um pode decidir, com base na sua experiência pessoal, a quem pode atacar física ou psicologicamente. Mulheres que apanharam dos maridos podem reivindicar o direito a odiar todos os homens. Pessoas que sofreram abusos sexuais de padres na infância podem clamar que toda batina esconde um pedófilo.
Qualquer pessoa, independentemente da cor que carregue na pele, tem o direito de levar uma vida digna e respeitável. A ela não devem ser imputados os crimes e pecados cometidos por outras pessoas, apenas os que ela mesma eventualmente realize. Como ministra de Estado, Matilde Ribeiro deveria refletir sobre o impacto que a sua fala pode ter em jovens ávidos por achar em quem atirar a primeira pedra.
Gilson Jorge, jornalista, é repórter de Brasil. O texto foi publicado em Opinião, A Tarde, 5 de abril de 2007.
Gilson Jorge
A declaração feita pela ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Política da Promoção Social da Igualdade Racial (Seppir) à BBC, de que considera natural que um negro não queira conviver com brancos quase “passou em branco” nos jornais diários e na TV, mas mereceu uma análise mais profunda em publicações semanais. Houve quem defendesse a idéia de que o assunto já foi suficientemente explorado e que não valeria a pena se estender em um debate sobre o que pode ter sido apenas a má interpretação por parte da jornalista. Mas as palavras estavam ali.
Entretanto, mas preocupante do que a frase da ministra, que pode até ser vista como um mero tropeço verbal, é a constatação de que há um discurso e algumas ações dentro e fora do movimento negro que se encaixam perfeitamente em uma tendência de acirramento das tensões “raciais”. Ou, como declarou ao caderno Mais da Folha de S. Paulo a antropóloga Yvonne Maggie, a incitação ao ódio “racial”. O racial vai entre aspas porque cientistas sociais abandonaram a noção de que existem raças branca, negra e indígena. Ninguém é obrigado a concordar com a igualdade, mas quem agir de forma racista deve encarar a lei.
Em fevereiro passado, durante um encontro com jornalista em Salvador, um artista branco (para os padrões locais) narrou um episódio em que foi cercado por homens negros que o espancaram sem que ele tivesse feito nada para provocar a violência. Isso foi mais de duas décadas, mas o artista continua acreditando, ou dizendo que acredita, que o ato foi justificável pelo fato de ele ser branco e de os brancos terem subjugados historicamente os negros.
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A noção de que quem foi açoitado pode também açoitar resvala para um perigoso campo em que cada um pode decidir, com base na sua experiência pessoal, a quem pode atacar física ou psicologicamente. Mulheres que apanharam dos maridos podem reivindicar o direito a odiar todos os homens. Pessoas que sofreram abusos sexuais de padres na infância podem clamar que toda batina esconde um pedófilo.
Qualquer pessoa, independentemente da cor que carregue na pele, tem o direito de levar uma vida digna e respeitável. A ela não devem ser imputados os crimes e pecados cometidos por outras pessoas, apenas os que ela mesma eventualmente realize. Como ministra de Estado, Matilde Ribeiro deveria refletir sobre o impacto que a sua fala pode ter em jovens ávidos por achar em quem atirar a primeira pedra.
Gilson Jorge, jornalista, é repórter de Brasil. O texto foi publicado em Opinião, A Tarde, 5 de abril de 2007.
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