Ponta de Bananeira
Flávio Império
Depoimento
O Oficina tinha que pegar fogo. É necessário, acho, que todos os teatros se incendeiem de tempos em tempos. Um espaço arquitetônico que se anima em espaço teatral com a violência que o Oficina se animou, só queimando para apagar todas as impressões dramáticas e trágicas que se acumulam, reverberam e se registram em seu corpo magnético. Aí, destruído, se reconstrói outro espaço como um corpo novo e vigoroso para novas transformações. Uma coisa assim: depois de muito tempo de tensão dramática levada à exasperação, ao desespero, um corpo registra tantas impressões e fica tão impregnado de significados que ele, em si, começa a ter vida própria sobre seus usuários e a determinar ou a influir sobre a conduta, seu inconsciente, sua fantasia, sua capacidade de imaginar.
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Considerado muito “psicanalisado” pelas galhofas do Oficina e indisciplinado e contraditório pelos remanescentes do Arena, brinquei com todos os jogos e me encontrei realmente quando fazia, outra vez sozinho, os meus espetáculos: Os Fuzis da Senhora Carrar – que chamamos de Os Fuzis de Dona Tereza – no Teatro dos Universitários de São Paulo (TUSP) e Labirinto: Balanço da Vida, com Walmor Chagas dizendo textos e poemas.
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Tenho consciência de não ter inovado nada no plano internacional. Fui cenógrafo atento ao que ocorria aqui e fora. Nem melhor, nem pior do que muitos. Atualizei vários conceitos aqui na província. Consegui, com produções paupérrimas, um nível de realização extremamente sofisticado.
Não me considero “autor” de nenhum método ou sistema estruturado da linguagem nova. Para falar a verdade, eu servi o meu tempo com o meu mais empenhado entusiasmo. Acho que por isso não me ponho a ditar regras. Fiz tudo o que já tinha e existia com a inocência de quem inventava o novo. Fui um alegre Robinson Crusoé que, em terra fértil e com um canivete reconstruiu um arremedo de civilização. Ando hoje à procura do Sexta-feira, não para ensinar nada a ele, mas para aprender.
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Os Fuzis de Dona Tereza foi também um espetáculo feito em cima de um outro que eu já havia feito. Fiz Os Fuzis ainda no Teatro de Arena, em 1962, sob a direção de José Renato. A coisa de que mais gostava é que a peça tinha poucas páginas. Detesto peça comprida. Peça curta você lê e entende tudo, e é aquilo mesmo que você leu, sem muitas divagações de segundos, terceiros, quartos atos. Ser curtinha permite a você ficar mais entretido com o tema básico. Dava pra fazer como uma composição orquestral curta, concentrada, condensada, principalmente porque essa segunda montagem que eu diria era feita por estudantes que conseguiam, no máximo, uma voraz e rápida passeata.
Não agüentariam nunca o percurso que o Prestes fez com a “coluna” pelo Brasil inteiro e muito menos a longa jornada da China e, no caso da “muralha”, que fosse uma bem pequenininha. O resto já se sabe que é daquele jeito... Qualquer estudante ou pequeno-burguês se cansa logo de qualquer assunto e quer mudar. Então a peça curta é o melhor remédio para males curtos mais curtos. Focalizamos um determinado assunto, tratamos dele o melhor possível, mexendo no tema das mais variadas maneiras, desde o “bater da massa do pão” até a alegoria do grande bispo que traduz o discurso do generalíssimo Franco. As matracas substituíram as falas das mães e das mulheres porque em meio à guerra todo mundo matraqueia e a fala da mãe é sempre um terror, um lamento de mater dolorosa. E foi em cima desse lamento que fiz o material ficar passeando.
O Cristo na cruz estava garantido porque tinha sido escrito assim. E o lamento dela estava já escrito também como um grande oratório intercalado com o discurso de um padre compreensivo, do irmão exasperado, da namorada desesperada. Discurso doloroso de uma mãe que não quer ter nos braços o filho morto e mesmo assim isso vai acontecer. Na verdade, é um tema que mais ou menos trabalha em cima do inexorável do destino humano e onde o social engole a vontade particular. Por melhores que sejam as suas intenções, a vida ou a morte não dependem de você. A discussão do fato é mais além.
KATZ, Renina e HAMBURGUER, Amélia (org.). Flávio Império. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 39-140.
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