ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
SOBRE
LONGA JORNADA NOITE ADENTRO
Para senhor Epifânio
In memoriam
O
texto e a encenação
A encenação de Longa Jornada Noite Adentro encontra-se em cartaz no Teatro Martim
Gonçalves, Escola de Teatro, até 15 de dezembro. O texto é do dramaturgo norte-americano
Eugene O’Neill (1888 – 1935) e a tradução de Helena Pessoa. A direção é do
ator-diretor e professor Harildo Déda, uma Produção da Companhia de Teatro da
UFBA.
O público soteropolitano tem a
oportunidade de apreciar um texto que, por sua envergadura e importância
capital para o teatro, não é levado à cena com a regularidade que merece. A
Companhia de Teatro da UFBA, com todas as dificuldades que enfrenta, preenche
uma lacuna. Estamos diante de uma encenação que cumpre seus objetivos, pois dá
conta da importância e complexidade do texto.
A peça conta sobre a família Tyrone. O’Neill
mergulha no passado de sua família no momento em que vive a crise desencadeada
por situações trágicas que envolvem todos os membros, sobretudo a mãe Mary Tyrone, e Edmund, o filho
mais novo. Revolvendo o passado de sua família, sem reduzir o texto somente a
uma autobiografia, o autor mostra-nos o dilaceramento dos personagens, todos
eles enlaçados pelo amor. Mas este afeto não consegue aplacar o sofrimento que
marca a vida familiar. Confinados em uma casa isolada, atravessam o dia e a
noite perscrutando a si e principalmente ao outro, de forma a expor seus sonhos
e suas frustrações. Diante de seus dramas, não conseguem perdoar-se uns aos
outros, embora o amor entrelace estes seres, tornando o conflito ainda maior.
Através das amargas críticas, o
passado emerge de maneira crua. No entanto, paira no ar alguma coisa que se
quer esconder. Movidos por uma autointerdição, os personagens usam das meias
palavras para não revelar o que de fato fragiliza a todos: a tuberculose de
Edmund e o vício morfinômano da mãe. Acrescente-se a este quadro a avareza
paterna e a embriaguez de Jamie Tyrone, o filho mais velho: o problema de um
afeta ao outro, numa teia de situações melodramáticas que talvez fossem
apressadamente consideradas hoje em dia como piegas ou "teatro de
segunda", mas que em nada afetam a grandeza do texto. Um travo melancólico
perpassa cada cena do longo texto finalizado por Eugene O’Neill, em 1941.
Ao concluir sua obra, o autor decidiu
que ela seria encenada vinte e cinco anos após sua morte, visto que um dos
personagens ainda vivia. Ainda assim, o texto não pode ser lido ao pé da letra
como uma autobiografia. Melhor seria vê-lo como uma bioficção. O que transborda
das páginas e do palco é criação. A imaginação do autor entra em ação para dar
vida aos acontecimentos da peça, mesclando o seu mundo particular com dados da
realidade. Isso é fruto de sua capacidade criadora, inventiva, que torna as
particularidades de Longa Jornada Noite
Adentro amplas, universais. Estas qualidades fazem com que o texto continue
atual, visto sua atemporalidade.
Na peça, o dia avança ensolarado para
declinar na neblina de uma noite escura, iluminada pela luz de um farol que surge
em diversos momentos da ação. Paradoxalmente, é nas sombras da noite que o
interdito é revelado de maneira clara. Nem mesmo o efeito da morfina que
anestesia Mary Tyrone impede que ela complete o círculo e retorne como um
ouroboros, ao início de tudo. Aí se dá o eterno retorno. O passado resurge em
sua potência e a personagem revela o momento em que, deixando uma pretendida
vida de religiosa, se apaixona pelo famoso ator James Tyrone, marco inicial
desta família que vem a ser solitária e debate-se entre a acusação e o afeto.
O texto em quatro longos atos é
reduzido para dois, de maneira sábia e oportuna por Harildo Déda. Diante da
aceleração do tempo presente, levar à cena Longa
Jornada Noite a Dentro sem os cortes
necessários, afastaria o espectador desacostumado a apreciar eventos deste
porte.
Sabedor do realismo do texto, o
encenador não se prende a uma fórmula, quebrando algumas regras da estética
convencional: não está em cena o realismo histórico. O que se vê no palco é uma
encenação apoiada no texto, sem se escravizar a ele. Marcando com rigor e
dinamismo, Déda faz a sua leitura de Longa
Jornada Noite a Dentro sem cair na facilidade amenizadora do drama que se
desenrola passo a passo. Considerando seus momentos de alta e de baixa
intensidade, o encenador colore a cena apoiando-se numa partitura em que as
pausas e os silêncios completam o dialogar constante dos personagens. Precisam
falar, precisam ser ouvidas. Precisam dizer de suas angústias.
A encenação revela uma segura direção
de atores. A cena é desenhada com marcas objetivas e de grande efeito, fazendo
os atores se deslocarem em função das dinâmicas da ação. São visíveis, mas não
óbvias, a construção a partir da análise ativa, um princípio stanislavskiano e
uma escolha adequada para o universo da peça. Este caminho não congela as
interpretações em maneirismos; ao contrário, aprofunda a dimensão física de
cada ator na relação com o espaço e com os objetos. Gestos, pausas, deslocamentos
ampliam a intersubjetividade do drama, mantendo os espectadores como
observadores atentos. Ao mesmo tempo, Déda impõem estratégias que rompem com o
fechamento do palco, trazendo os personagens para mais perto da plateia.
Contando com cenário e luz de Eduardo
Tudella, lembrando ambientes do pintor Edward Hooper, o encenador orquestra com
bastante segurança os elementos constitutivos do seu espetáculo. Preocupa-se
com a tensão e a investigação interior, muito mais do que com a história, pois
o foco de Eugene O’Neill está no confessionalismo: isso faz com que o passado
seja escavado intensamente. Ainda que mostre o domínio criativo e técnico, a
cenografia poderia valer-se de alguns recursos que expressassem a decadência do
lar. A decadência não está somente nas relações da família Tyrone, mas na
própria casa. Contudo, isso não diminui a qualidade do que se vê em cena:
somente que estes elementos faltantes proporcionariam ao espectador mais um
dado a ser lido como um signo relevante.
É notável o controle das emoções,
mantidas esticadas ao longo do tempo ficcional, sem extrapolar os limites
dramáticos. O que poderia tornar-se melodramático ou mesmo piegas é evitado ao
longo dos acontecimentos.
Cercado por uma equipe técnica de
eficiência comprovada pelos detalhes da produção, um único senão salta aos
olhos: o vestido rosa de Mary Tyron no segundo ato, assim como a gravata
brilhante da empregada Cathleen. Nos demais figurinos, Claudete Eloy acerta com
bastante sobriedade, pois compreende o universo onde transitam os personagens,
bem como a época em que se passa a ação. O corte das roupas femininas e
masculinas, bem como a paleta de cores, harmoniza-se com o sóbrio e criativo
cenário.
A luz recorta o cenário, marcando os
climas exigidos pela densidade dramática, colaborando para a atmosfera das
cenas. O efeito final, com a luz do farol entrando pelas janelas, adéqua-se à
situação na qual, sob o efeito da morfina, a mãe surge na sala como um fantasma,
calando marido e filhos. Densa e bela, a cena, intensificada pelo Adágio para Cordas, de Samuel Barber,
sustenta o entrecho e dá suporte para o monologar de Mary Tyron. Com parcimônia,
a sonoplastia contribui também para a profundidade emocional. A sirene de
neblina que se ouve em alguns momentos corta os silêncios, aumentando a solidão
dos que estão na casa. Solidão essa vivida pelo grupo familiar disfuncional.
Este grupo se alterna em instantes de acusação e provocação, atitudes que
escondem o que há de mais humano, o afeto. Sentimento que nutre pai, mãe e
filhos, unindo-os, ainda que se avizinhe a derrocada final.
Harildo Déda orquestra o canto
fúnebre de Eugene O’Neill com grande segurança, acerta nas suas escolhas.
Retornando ao texto, focalizando o
aspecto de biografia dramatizada, vemos que Edmund, o poeta persona do autor,
se erguerá pela arte, como foi de fato a vida de Eugene O’Neill. O autor revive
teatralmente o verão de 1912 como dramaturgo sabedor do seu ofício, e não se
deixa prender somente pelos dados da realidade. O que se vê em cena é fruto de
um processo de criação; dolorido é certo, mas profundamente humano, e é por
isso que ecoa em nós, ainda que vivamos noutro tempo. No entanto, se olharmos
atentamente para o drama de cada um dos personagens, veremos que eles não estão
assim tão longe das nossas vidas, pois nos debatemos, de uma maneira ou de
outra, com os mesmo problemas enfrentados por James, Mary Jamie e Edmund: o
entorpecimento pelas drogas, a sovinice, os projetos não realizados e as demais
doenças do corpo-espírito. No entanto, assim como os personagens de Longa Jornada Noite Adentro, ainda somos
capazes de amar, pois somos humanos, contrariando o discurso da pós-humanidade
defendido por certas correntes do pensamento pós-moderno.
O
elenco
Uma encenação de qualidade, na qual os signos se
organizam esteticamente, não deve prescindir de um elenco com capacidade para
sustentar os personagens, ainda mais em um texto de envergadura como Longa Jornada Noite Adentro. Déda, não
só diretor, mas ator de longa experiência e conhecida competência como professor
de atores, soube escolher cinco intérpretes que se responsabilizam por dar vida
às criações de Eugene O’Neill. E, seguindo suas orientações, o fazem com
competência e unidade.
Joana Schnitman (Mary Tyrone),
Antonio Fábio (James Tyrone), Wanderley Meira (Jamie Tyrone), Vinicius Martins
(Edmund Tyrone) e Patrícia Oliveira (a criada Cathleen) conseguem exteriorizar
a densidade psicológica, mantendo as interpretações na justa medida esperada para
personagens bem estruturados pelo autor, ainda que ele não tenha se debruçado
com mais atenção no papel da criada. O
texto traza poética realista que necessita de uma construção espelhada na vida,
mas o que vemos na cena e nas interpretações não é uma fatia da vida, mas uma
elaboração por métodos que remetem aos princípios stanislavskianos.
Compreendendo os personagens passo a
passo, desde a análise até a vivência, os intérpretes revelam a maturidade e as
variadas qualidades adquiridas com as experiências individuais ao longo de suas
carreiras. Por eles, o encenador fala e se oculta, de modo que os exercícios
formais estão sempre a serviço dos que estão em cena durante as duas horas em
que decorre o espetáculo. Cabe aos atores, muito bem conduzidos pr Harildo Déda,
modular o tempo ficcional à medida que este decorre da manhã à meia-noite,
momento em que os demônios internos estão expostos. E é neste tempo que cada
intérprete faz aparecer a sua construção, como se desenrolasse um novelo
gradativamente, prendendo pela emoção a atenção do espectador. É notável o equilíbrio
interpretativo, o que faz da encenação o lugar próprio do ator.
Joana Schnitman constrói Mary Tyrone
com sensibilidade aguçada: modula as emoções exigidas pelo papel. A atriz
demonstra suas qualidades de intérprete numa estatura que somente as grandes
atrizes são capazes de trazer para a cena. Sutilmente, a intérprete revela-nos
os problemas que afligem a personagem, sua fixação em algo que se descobre na
medida em que a ação se desenrola. Sua atuação é magistral, culminando com o
monólogo final.
Sobre a interpretação de Antonio
Fábio, no papel de James Tyrone, o que se pode dizer é que o ator cresce
superando os limites físicos, já que imaginamos o personagem como uma figura
imponente, ídolo das plateias. James é
um ator que abre mão dos personagens grandiosos para encantar com sua beleza as
mocinhas que iam ao teatro quando ele era o astro. Ator expressivo, Antonio
Fábio caracteriza o personagem, mostrando sua arrogância e, principalmente, sua
avareza. Em alguns momentos, o ator deixa entrever a humanidade escondida por
trás da carapaça conservadora, mas volta a escondê-la, principalmente nas cenas
com Jamie, personagem que Wanderley Meira faz de maneira vibrante. Nas cenas
com Joana Schnitman, Antonio Fábio alterna afeto, mostrando-se inseguro, mas
defendendo-se sempre das acusações desferidas por ela. A contracena entre eles
é bom teatro.
Como disse anteriormente, Wanderley
Meira mostra seu personagem de maneira intensa, mostrando-se um ator de
extensão interpretativa. Na perigosa cena da bebedeira, o ator transita de
maneira precisa. Fugindo do clichê, assenta sua atuação variando os estados
psicológicos que passam pela culpa, pela zombaria, resvalando pela inveja, para
em seguida mostrar sua fragilidade diante do drama materno e da situação do
irmão caçula. Representando um ator cuja carreira, imposta pelo pai, não deu
certo, o Jamie de Meira é um farrapo
humano sem perspectiva. Wanderley Meira se encarrega de fazer com que estes
estados anímicos tornem-se visíveis ao longo da ação.
Vinicius Martins, o mais jovem entre
os quatro intérpretes, encarrega-se de levar para a cena Edmund, o alterego de
Eugene O´Neill. Aluno do Bacharelado em Direção Teatral da Escola de Teatro,
Martins vem experimentando o palco como ator e vem crescendo a cada peça que
faz. Quem o viu em Fala Baixo Senão Eu
Grito, sob a direção do aluno-ator Georgenes Isaac, pode ter esta medida. O
personagem criado por Vinícius Martins deixa transparecer o papel que ele
exerce na peça, ou seja, Edmundo, ao mesmo tempo em que é participante, é
espectador desse mesmo drama.
Coube a Patrícia Oliveira o papel da
criada Cathleen, um personagem que O’Neill não construiu como os outros. A
atriz recém formada soube conduzir de maneira muito especial a figura da criada,
injetando-lhe doses de ingenuidade e, ao mesmo tempo, sagacidade. Sua
participação na ação proporciona o alívio cômico em meio à densa atmosfera que
perpassa a peça. Sua conduta na cena com
Mary Tyrone tem um ar brejeiro e ao mesmo tempo safado, quando se serve da
bebida do patrão. Vejo que Patrícia Oliveira valoriza e tira partido de um
personagem posto na peça pelo autor para alinhavar o enredo. Sai-se bem a jovem
atriz.
Equipe
Técnica
A equipe mostra sua competência. Com seu empenho, o
acontecimento chega ao espectador da maneira como foi concebido. Por ser um
espetáculo da Companhia de Teatro da UFBA, é de estranhar a pouca participação
de alunos nestas funções, mas vale registrar a presença de Pedro Souza na
operação de som, João Saraiva e João Guizande como assistentes de produção. A
ausência de outros alunos faz lembrar um fato muito importante quando da
constituição da Escola de Teatro como espaço artístico-pedagógico. Nos
espetáculos de A Barca, grupo criado por Martim Gonçalves, os alunos
revezavam-se no palco, ora em papéis principais, ora em papéis secundários.
Quando não estavam em cena, desempenhavam outras funções necessárias para o
fazer teatral: eram assistentes de cenografia, de figurino, faziam a
contra regragem, recepcionavam o público.
Este procedimento era parte da pedagogia do teatro. Suprimindo-o desequilibra-se uma processo de aprendizagem.
Finalizando, cabe ressaltar o cuidado
com o material de divulgação de Longa
Jornada Noite a Dentro, tanto os registros do processo em vídeo e fotos,
quanto os cartazes, programa e marcadores de livros, todos muito bem concebidos
e realizados.
Raimundo Matos de Leão