sábado, 24 de março de 2012

Registro 392: Bons arguemntos



RUMO À PERFEIÇÃO 
OU 
JOGUEM FLORES NA GENI (1)

Cleise Mendes

Projeto de lei denominado Antibaixaria, apresentado pela deputada estadual Luiza Maia, que visa proibir a contratação, com dinheiro público, de artistas cujas canções ofendam a imagem feminina ou incentivem a violência contra a mulher, será votado na Assembléia Legislativa da Bahia no próximo dia 20. Como mérito do projeto, pode-se computar a discussão que vem ocorrendo em sites e blogs, pois nestes tempos de inanição intelectual qualquer movimento que leve à expressão de ideias e ao debate pode ser visto como algo em princípio saudável.

Dos argumentos que percorri, pró e contra, um dos mais razoáveis e que corresponde à minha experiência pessoal é que os projetos artísticos, ao reivindicar apoio dos cofres públicos, são examinados por comissões de artistas e intelectuais de reconhecida competência, plenamente capazes de avaliar a relevância cultural de tais propostas. Mas o que se quer, quase sempre, com uma “lei” no domínio da cultura, é justamente invalidar ou no mínimo tornar dispensável o processo de apreciação, discussão e interpretação, o choque de visões, o salutar dissenso. Pretende-se resolver “de cima”, rotulando-se a priori o que pode ou não pode ser oferecido ao público. Alguém já pensou quantas leis seriam necessárias para prever todos os supostos “malefícios” que uma obra de arte pode causar à sensibilidade dos incautos cidadãos? Consta que o romance Lágrimas do Jovem Werther, de Goethe, levou em seu tempo inúmeros jovens leitores ao suicídio. Ah! Se houvesse, então, uma lei contra contar histórias de amor infeliz! Quantas vidas teriam sido poupadas!

Quanto ao projeto Antibaixaria, o que me espanta nessa ideia de lei é a exclusividade do seu alvo. Por que apenas músicas que ofendam a mulher? Se o objetivo é impedir que o dinheiro público seja gasto em produtos artísticos nocivos à sociedade, por que então não incluir, num amplo gesto de defesa, toda a sociedade? Devem portanto ser evitadas músicas que tratem pejorativamente as crianças, os jovens, os idosos; as pessoas muito magras ou as muito gordas; as muito pobres ou as muito ricas; as adeptas de um bom copo, e as abstêmias; as gulosas e as anoréxicas; as viciadas em trabalho e as preguiçosas; as devotas e as sem fé. Não se deve também admitir canções cujas letras desonrem os torcedores do Bahia, do Vitória, ou de qualquer outra associação futebolística, o mesmo devendo ser aplicado aos demais esportes, por questão de isonomia. E para que o alcance da lei seja realmente amplo e irrestrito, por que não incluir nossos irmãos animais, tantas vezes vitimados por musiquinhas cruéis? Nada de “atirei o pau no gato” ou “pisa na barata, oi, mata essa barata, oi”, portanto.

Mas uma dúvida ainda paira, no esforço de defender a coisa pública de todo tipo de arte deletéria: por que apenas a música? (Ou será que devíamos dizer: por que apenas a música baiana?) Pois não existem tantos romances, filmes, peças teatrais, pinturas, quadrinhos, blogs, e tudo o mais que nossa imaginação venha a criar, capazes de veicular palavras e imagens ofensivas a qualquer transeunte do espaço social? Logo, uma lei que se queira verdadeiramente ampla e democrática deve contemplar a prevenção contra toda e qualquer expressão artística que possa vir a se tornar nociva aos consumidores. E seria necessário começar pela Ilíada, de Homero, com suas aterradoras descrições de guerra. Quando criança, tive pesadelos com o guerreiro que teve o olho vazado por uma lança…

Depois que tivermos criado leis em número suficiente para higienizar todas as formas de arte, deixando-as isentas de violência, sarcasmo, deboche, preconceito, hediondez, morbidez, grotesco, nonsense, bobagem, erotismo, sacanagem e o que mais fira as almas sensíveis, poderemos todos, numa República ideal, apenas ouvir as canções que tenham como assunto o cotidiano dos anjos e as sonoridades que tecem em suas harpas, reclinados em brancas nuvens.  E então estaremos livres também de outra praga do nosso tempo: a pirataria. Pois as músicas angelicais serão distribuídas gratuitamente por um governo bom e justo, para todos os cidadãos, já que ninguém sentirá o menor desejo de copiá-las ilegalmente.

 (1) Publicado originalmente em Caramurê.

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