Somente um poeta com a consciência e a sensibilidade aguçadas consegue perceber que a "Bahia está viva ainda." Bahia é, no caso, a Cidade do Salvador. Assim se refere a ela Caetano Veloso, em artigo escrito na edição de 8 de janeiro de 2012, de A Tarde. Mas o poeta não deixa de ver as mazelas que atingem a urbe. Como não sou poeta, embora tenda a concordar com o texto, não consigo ver com tanta nitidez o que há de vivo em meio a tanta ruína. No entanto, vejo muitas possibilidades para que Salvador se mostre como a jóia que foi, integrado-se ao século XX sem a continuada e firme destruição e apagamento das camadas de tempo impressas em sua vida, sua cultura, seu jeito.
Caetano Veloso enumera as belezas que ele vê e desfruta: o muro azul líquido do mar cercando a cidade; a missa assistida na igreja do Carmo, mas originalmente rezada na igreja do Rosário dos Pretos, belo e significativo título para este lugar, e que se mantém assim. Espero que não a transformem na igreja do Rosário dos Negros ou dos Afro-decendentes, como quer o equivocado pensar politicamente correto. Até porque, para mim, a designação "preto" não é pejorativa nem diminutiva, visto que ao me referir ao local como sendo dos Pretos, sei bem o que quero dizer: digo da grandeza de gente que se empenhou para construir e legar à cidade um dos monumento mais belos, que se harmoniza com tudo que o largo-ladeira tem de imponente no seu traçado, na sua arquitetura e na triste e ao mesmo tempo grandiosa história. O cantor-compositor menciona também o acarajé da Cira (para mim o melhor do local), degustado ao sabor da brisa da Mariquita.
Mas somente um poeta vê o que há de belo na Cidade da Bahia. Eu, que aqui vivo e não sou dotado da sensibilidade afinada do artista, vejo somente degradação. A degradação que o poeta também vê, mas ameniza, aquela que transformou o Porto da Barra, o lugar mais lindo, no local mais horrível, tal a devastação. Aliás, do Porto até o Morro do Cristo, a paisagem natural sucumbe à feiúra que os homens construíram nas últimas décadas. Poder público inoperante e cidadãos desmazelados juntam-se para criar um lugar completamente "armengado", termo tipicamente baiano e que cai bem para caracterizar o que se vê na Barra. E não somente. Ao flanar pela cidade, a velha e boa cidade, o que salta aos olhos é a quantidade de lugares que poderiam ser belos não fosse a descaracterização, a sujeira, a falta de imaginação, a intervenção medíocre, burra mesmo. E quem procura viver cultivando a beleza, se espanta com a feiúra. Mas sei que a opção pela beleza termina desencadeando em nós aflição e desolação, e não felicidade, como afirma Tzvetan Todorov em A Beleza Salvará o Mundo (Difel, 2011).
Outro dia, acompanhando um amigo que foi ao SEBRAE na Av. Sete, cuidei de apreciar duas grandes fotos na parede da sala de atendimento. São fotos do mesmo trecho onde se localiza o prédio, que por muito tempo abrigou o Instituto Mauá, ali no local conhecido como Mercês. Uma foto deve ser do início do século XX e a outra atual. A diferença entre uma e outra é gritante. Na primeira tudo se ordena de maneira agradável ao olhar, o que não acontece com a segunda.
Caetano Veloso encerra Ainda Cá, título do seu artigo, mencionando Edgard Santos, Martim Gonçalves, Glauber Rocha, gente de uma Bahia que parecia ou era de fato mais bela. De lá pra cá, certa compreensão de progresso desencadeou transformações que me levam a dizer a "Bahia está viva ainda", mas é uma triste Bahia, ainda que soem alaridos muito mais que harmonias.
No texto, há menção ao filme Trampolim do Forte, de João Rodrigo Matos, não por acaso neto de Agostinho da Silva. Veloso nos diz que o filme “é poderoso em sua revelação do quanto pode a Cidade do Salvador (grifo meu). Concordo. A Cidade é plena de possibilidades e os artistas conseguem retirar do seu cotidiano aquilo que os administradores não conseguem ou não querem ver. Não vou repisar o mote do capitalismo desenfreado, perverso e ganancioso, ainda que não tenha vivido sob outro regime, como causa do desmazelo que toma conta da Cidade do Salvador.
Mesmo considerando o que se produz hoje culturalmente e artisticamente, o que Edgard Santos, Martim Gonçalves, Lina Bardi, Agostinho da Silva, os cineastas do ciclo do cinema baiano, o pessoal da geração Mapa, os criadores da Jogralescas e outros mais fizeram, resiste em sua potência? As respostas podem ser de variados calibres. Arrisco dizer: talvez, uma parcela dos cidadãos baianos, entre eles alguns artistas, consegue dar conta do legado. O poder público tergiversa e, tanto quanto grande parcela da população não consegue enxergar mesmo “com muito sol”. Mas seguimos em frente acreditando que podemos contribuir para “civilizar o infinito.”
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