FIM DE PARTIDA
Raimundo Matos de Leão
Fim de Partida, de Samuel Beckett (1906-1982), ou Fim de Jogo, numa tradução mais literal, em cartaz no Teatro Martim Gonçalves, é fruto da parceria entre Rita Carvalho Produções e a Cia de Teatro da UFBA. Sob a direção de Ewald Hackler, responsável também pelo cenário e figurino, conta no elenco com Harildo Déda (Hamm), Gideon Rosa (Clov), Gil Teixeira (Nagg), Maria de Souza (Nell). Luz: Eduardo Tudella.
Ao sair da sessão de ontem (16 de abril de 2011), tive a certeza de que o texto de Samuel Beckett requer não somente um diretor experimentado, mas, sobretudo, um elenco que torne possível assistir à peça, já que ela se torna um exercício de paciência. Cabe aos atores o mérito de tornar suportável o insuportável. Portanto, deixo claro que o texto não é o meu preferido. Muito se gastou e se gasta papel e tinta para exegeses em torno de Fim de Partida e da obra de Beckett como um todo. Mas diante de Esperando Godot, Fim de Partida parece mais a repetição de um pensamento circular. A minha objeção ao texto não foi impedimento para apreciar a encenação no palco do Martim Gonçalves.
Ao abrir-se a cortina, vemos dois restos humanos, Hamm e Clov. No fundo da sala onde se passa a ação, dois latões de lixo servem de abrigo para mais dois rebotalhos, Nagg e Nell, pais de Hamm. O tempo se arrasta levando-nos de roldão. O matraquear dos passos de Clov marcam o ritmo das vidas que se estiolam. Para preencher o vazio, eles falam, se agridem, reclamam, rememoram. E fica claro que não há saída, nem solução, ainda que no final, Clov preparado para partir, adentre o recinto de onde quer fugir e se coloca na moldura da única porta porta na sala. Nem lá nem cá. Mas antes que tome a iniciativa de partir, a luz se apaga sobre o vazio e lúgubre ambiente. Nada a fazer. Estão os dois condenados a viver a condição de senhor e escravo no que ela tem de dependência, subserviência e necessidade um do outro.
Do interior de um dos latões de lixo surge Nagg, e em seguida Nell; vivendo em suas respectivas latas de lixo, a aproximação torna-se difícil. Eles não têm pernas, visto que no passado sofreram um acidente. Ainda que vivam degradadamente, instantes de recordação se insinuam entre eles, deixando entrever afeto em meio a brutalidade da vida no lar, onde o filho cego tiraniza a si e aos outros. Como em Godot, parece não haver mais ninguém além dos quatro personagens, ainda que se mencione uma ou outra pessoa.
O mundo pós Segunda Guerra e os temores da Guerra Fria são dados para que se compreenda a obra de Beckett. Tanto Esperando Godot quanto Fim de Partida chegam à cena na década de cinquenta, tempo conhecido como de prosperidade, de arrumação da casa-mundo destroçada pela barbárie anterior. E Beckett injeta na cena indagações sobre a condição humana, pois desconfia da euforia. De lá para cá suas indagações parecem soar com mais veemência, em virtude do mal-estar instalado no cotidiano e que se tenta disfarçar pelo consumo, pelos antedepressivos, pelo culto ao corpo e sua reconstrução artificial, recursos para se conseguir a felicidade no tempo de agora.
A cena construída por Ewald Hackler potencializa o mal-estar, pois sua organização não desvia a atenção do espectador para efeitos teatralistas que possam amenizar a crueza da peça. Sua concepção ressalta os conteúdos da obra ajustando-os ao espaço, numa leitura muito fiel ao que pede o autor. Assim, também os figurinos se adéquam ao todo da encenação e nenhuma nota desviante dilui a cena no seu propósito de evidenciar a condição humana, toda ela sem perspectiva, desejosa de futuro e que vê adiante somente incerteza. Dias melhores ou morte latejam na cena concebida pelo encenador; assim, a ação flui passo-a-passo entre fala e silêncio, algumas explosões e muita ironia. A narrativa das vidas isoladas e situadas no mundo em destruição presentifica-se na cena que, sabemos, não terá fim. Tudo recomeça.
Para dar corpo às ideias do autor e às suas como encenador, Ewald Hackler conta com quatro intérpretes de visíveis qualidades cênicas. Cabe a eles corporificar esse mundo destruído, cercado por quatro paredes, onde vidas decrescendo agarram-se aos fios de esperança. Harildo Déda em cena, desde o início da peça, permanece preso a cadeira de rodas, pois, cego, não consegue mover-se, dependendo sempre de Clov. A caracterização do ator é impressionante, causando impacto sobre a plateia, seu físico e sua voz servem ao personagem; os gestos, em sua maior parte contidos, se expandem quando as emoções assim exigem. Dosando humor corrosivo com sutil ironia, Harildo Déda apresenta um Hamm em suas diversas facetas de opressor e dependente de sua vítima. Nos monólogos, trabalhados com extrema acuidade, o ator explora a sua capacidade de entender o que pensa o personagem, estampando com equilíbrio a solidão de Hamm, um triste palhaço convencido de sua onipotência.
Cabe a Gideon Rosa dar vida a Clov, o servo que, na criação do ator, apresenta-se como um galho seco e torto a se arrastar no mesmo ritmo, entre a cozinha, seu mundo particular, e a sala-cela onde está aprisionado, da mesma forma que seu amo. Corpo e voz dão a medida do personagem na sua impossibilidade de sentar, por isso as pernas ganham uma dimensão e seus passos criam a musicalidade do espetáculo sem música. Música monótona tal qual a vida de Clov, condenado no ir e vir, a executar tarefas mecanicamente. Gideon Rosa constrói no corpo o drama da repetição.
Os dois atores, Harildo Déda e Gideon Rosa, sabem que a peça é centrada na relação dependente dos personagens que interpretam, e sabem também que a encenação armou a cena em função dos dois. É no embate dos dois que a peça se apresenta criando um clima obsessivo, com seus jogos destrutivos de quem sabe que não há alternativa para eles em um mundo que também não funciona. Os atores destilam as camadas emocionais conferindo densidade à monotonia, cada qual infernizando o outro com sua rabugice. Dois atores na força de sua experiência teatral despertam interesse para uma peça sem peripécias, profundamente niilista . Por isso mesmo necessita do talento/técnica dos dois atores para manter atenta uma platéia. Plateia onde se encontram espectadores desavisados sobre o que foram ver e que por isso terminam abandonando a sala ou manifestando seu mal-estar durante a sessão. Não é teatro fácil. Por isso mesmo a tarefa dos atores se desdobra. O elenco de Fim de Partida tem a oportunidade de mostrar competência no manejo de seus recursos para fazer chegar até o público esse mundo incômodo e insuportável. Não fosse o elenco, seria difícil suportar duas horas de um enredo esgarçado e repetitivo, martelando o oco da nossa existência.
Não há efeitos desnecessários, não há pirotecnia, nem concessão por parte do encenador. Portanto, há espaço para que os intérpretes centrais e os coadjuvantes mostrem que a montagem depende dessa capacidade de tradutibilidade que, por mais que consigamos localizar e tornar objetiva, passa por algo indizível.
Para o casal de velhos, a direção encontrou dois intérpretes, Gil Teixeira e Maria de Souza, distante da idade presumível para os personagens de Nagg e Nell. Tanto um como o outro tiram partido dos seus personagens passando por cima dessa hipótese, e nos dão uma interpretação permeada de gestos delicados, remetendo a velhice à infância. Perdidos em suas lembranças, cabe aos dois superar os dias difíceis, mergulhando na rememoração para amenizar a convivência forçada ou escolhida, já que, antes do acidente que lhes amputou as pernas, eles estavam juntos. As intervenções dos atores/personagens acentuam o patético da cena.
Encenação difícil, Fim de Partida requer o investimento do espectador, mas que não deve afastá-lo do Teatro Martim Gonçalves. Há algo no palco para ser apreendido e aprendido, visto que o rigor da cena inscreve a montagem na linhagem dos clássicos, tal a harmonia com que o encenador arma o jogo cênico, concebe o cenário e figurinos, orienta a criação dos objetos (Claudete Eloy e Maurício Pedrosa) e da maquiagem (criação de Roberto Laplagne) e dá margem ao criador da luz de fazê-la consubstanciada aos princípios que regem a concepção de Ewald Hackler.
Encenação difícil, Fim de Partida requer o investimento do espectador, mas que não deve afastá-lo do Teatro Martim Gonçalves. Há algo no palco para ser apreendido e aprendido, visto que o rigor da cena inscreve a montagem na linhagem dos clássicos, tal a harmonia com que o encenador arma o jogo cênico, concebe o cenário e figurinos, orienta a criação dos objetos (Claudete Eloy e Maurício Pedrosa) e da maquiagem (criação de Roberto Laplagne) e dá margem ao criador da luz de fazê-la consubstanciada aos princípios que regem a concepção de Ewald Hackler.
O teatro baiano só tem a lucrar com espetáculo de tal monta.
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