O texto de João Pereira Coutinho aqui transcrito, foi publicado na edição de 30 de março de 2010, no jornal Folha de S. Paulo.
O autor toma como base para seu escrito o filme O Dia da Saia do cineasta Jean-Paul Lilienfeld. Interessa-me discutir aqui a questão essencial abordada pelo colunista, a aceitação irrestrita do multiculturalismo como panacéia para todos os problemas de consciência, da má consciência que aflige não somente a Europa, mas grande parte do mundo globalizado. É certo que a questão aparece com mais visibilidade na Europa.
A primeira impressão que temos é que a aceitação do multiculturalismo sem crítica e sem limite, advém do embaralhamento dos valores. Outro ponto, diz respeito ao receio que temos de ser taxados de conservador. Dessa maneira aceita-se tudo, como, por exemplo, não respeitar o Estado laico. Essa postura termina por criar uma confusão perigosa.
O texto de Pereira Coutinho é sábio nas colocações. Vamos aguardar o filme para que possamos apreciá-lo e ver de que forma a "mensagem" chega até nós. De antemão, penso a escola como o lugar da pluralidade e da diversidade, o que vem a ser a mesma coisa. Não vou chover no molhado.
Religião é um problema de foro íntimo e não deve apartar. Não deve ser parâmetro para a prática educativa em sala de aula. Se não atentarmos para isso, chegará um momento que teremos classes para cada um dos credos existentes, com professores e educandos reunidos em função da religião que professam. A escola pública não deve incorporar essa ideia absurda. Mas do jeito que as coisas caminham, tal absurdo pode se tornar realidade. No fundo no fundo é sempre a manifestação do autoritarismo. Se o multiculturalismo toma como um princípio o respeito pelo outro, o que vemos é a inversão desse princípio. Os "excluídos", os "periféricos", os "estrangeiros" em vez de conviverem com a diferença, terminam por impor seu ponto de vista... E sabemos a via que isso toma: a da violência. Se queremos acabar com as fronteiras, acabemos de fato com elas.
Eu leio a Bíblia, o Corão, o Talmud como leio a Ilíada e a Odisséia e sou professor. A cada instante, eu procuro agir sem a viseira decorrente dos meus preconceitos. Sei bem o quanto é difícil seguir essa determinação, mas faço disso um exercício de repeito ao outro. Pelo visto, a professora do filme sabe muito bem de si e do lugar que ocupa.
Eu leio a Bíblia, o Corão, o Talmud como leio a Ilíada e a Odisséia e sou professor. A cada instante, eu procuro agir sem a viseira decorrente dos meus preconceitos. Sei bem o quanto é difícil seguir essa determinação, mas faço disso um exercício de repeito ao outro. Pelo visto, a professora do filme sabe muito bem de si e do lugar que ocupa.
JOÃO PEREIRA COUTINHO
Uma mulher de saia
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Não admira que as alunas muçulmanas
troquem um tipo de sequestro por outro
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GOSTEI DE "O Dia da Saia", de Jean-Paul Lilienfeld. Confesso que assisti ao filme por motivos superficiais: Isabelle Adjani. Curiosidade: como estaria a velha musa da adolescência, que despertava no cronista todos os sentimentos hormonais de "A" a "Z"?
Adjani envelheceu; mas o rosto de anjo permanece. Uma condição que perturba, e tragicamente, ante a natureza diabólica da história.
Conto rápido, sem revelar os pormenores fundamentais: Adjani é professora de literatura em liceu problemático e suburbano. "Liceu problemático", no contexto, é eufemismo: com alunos que se comportam como selvagens e atuam como criminosos de gangue, a professora perde a cabeça quando descobre que um deles está armado.
Retirando-lhe a arma em gesto de pânico e a disparando por acidente, a professora cruza o seu pessoalíssimo rubicão. Não há retorno.
Resta-lhe sequestrar toda a turma e fazer uma exigência final: uma câmera de TV para denunciar a desagregação da sociedade francesa. Uma sociedade que, incapaz de fazer cumprir o seu programa laicista, é apenas uma manta de retalhos em que as comunidades imigrantes (leia-se: comunidades imigrantes islâmicas) impõem versões extremistas do seu próprio credo.
O interesse do filme começa dentro da sala de aula: na relação entre a professora e os alunos; mas também nas relações de poder, ou de opressão, que se revelam entre alunos e alunas: na violência verbal, física e até sexual dos primeiros sobre as segundas. Não admira que as alunas, muçulmanas também, passem gradualmente para o lado da professora que as sequestra. Ou, se preferirem, que troquem um tipo de sequestro por outro.
Mas o filme é igualmente notável ao mostrar o mundo "lá fora", que reage ao sucedido dentro da sala. Um mundo de relativismo letal, que na verdade produziu as condições ideais para o desastre. Um dos colegas da professora, indignado com a "islamofobia" da dita, retira o Corão da sacola e dispara: sempre que um aluno cita o Corão para justificar as suas ações mais "impróprias", ele próprio refuta o aluno com o Corão. Na sapiência medíocre da criatura, "integrar" a comunidade muçulmana na França (mais de 5 milhões) passa por transformar as escolas laicas em puras madrassas.
É contra esse programa "multiculturalista" que se revolta a professora; contra o antissemitismo dos alunos, que usam "judeu" como insulto permanente; contra a forma como eles agridem as suas "irmãs de fé" com brutal misoginia; e como se autoexcluem da sociedade de acolhimento, desenvolvendo narrativas de vitimização que só convidam a infindáveis ciclos de violência.
Um caso patológico de "islamofobia"? Assim seria se a própria professora, em conversa telefônica com os progenitores, não se revelasse aos nossos olhos, e aos olhos dos alunos, como sendo igualmente muçulmana. "Nós não sabíamos que a senhora era...", balbuciam os discentes, escutando a conversa em árabe.
A professora não permite a conclusão da frase. E replica, em gritos de afirmação: "Eu sou a professora de literatura! Aqui, sou apenas a professora de literatura!".
Curioso como, em duas frases, está resumida a diferença política fundamental entre a modernidade e o islã. De um lado, alguém que adere aos valores constitucionais da República, respeitando a separação entre duas esferas de poder distintas.
Do outro, os que permitem que a identidade religiosa se sobreponha a qualquer outra, suprimindo os espaços de liberdade e de tolerância que definem as sociedades liberais do Ocidente.
O filme de Jean-Paul Lilienfeld pode não ser um prodígio cinematográfico. Mas mesmo na sua modéstia de telefilme, ele serve como aviso para a França e para a Europa.
Sempre que o assunto ronda essas matérias polêmicas, os exércitos mais conservadores descem o sarrafo sobre a ameaça da imigração islâmica no velho continente.
Confesso que nunca embarquei nesse pavor: o problema não está na imigração, que aliás pode ser uma necessidade para uma Europa demograficamente suicidária.
O problema está na forma como se recebem esses fluxos migratórios. Sem uma economia capaz de crescer e de integrar socialmente quem chega (como nos Estados Unidos); e pelo contínuo repúdio do patrimônio político e cultural da Europa em nome de um multiculturalismo demencial que tudo autoriza e nada condena, o futuro do continente está personificado no colega da professora. Alguém que jogou heroicamente a Bíblia pela janela; para acabar os dias com o Corão dentro da sacola.
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