Pensei encontrar uma excitação exagerada no hall de entrada do Teatro Vila Velha, aquela estereotipada atitude em dia de estreia, quando a classe teatral se reúne: veteranos, novatos, aspirantes, muitos desejosos de estar no palco, o que é natural. Os famosos, os que se acham famosos, os colunáveis, os amigos dos artistas, os familiares, todos num enxame que, por vezes, parece que o espetáculo é na plateia, não no palco. Mas não foi essa a atmosfera que vi e senti ontem à noite. O Teatro Vila Velha de saudosa arquitetura, agora no seu modelo atual, de múltiplas possibilidades, abrigava um numeroso público sem estardalhaço.
Os convidados foram chegando e se reunindo à espera de A Última Sessão de Teatro, o espetáculo-homenagem que Luiz Marfuz criou e Selma Santos produziu para comemorar os 70 anos do ator, professor e diretor Harildo Déda. Boa parte da plateia era de ex-alunos, companheiros de palco, amigos, familiares, mas se não me engana a memória, dei por falta de muita gente. Perdoa-se a não presença daqueles que já se foram, pois alí não podiam estar. Talvez numa sessão espírita! Sem muita certeza, posso dizer que a energia de alguns estava presente: João Augusto, Sônia dos Humildes, Alberto D'Aversa, Margarida Ribeiro, Álvaro Guimarães, João Gama e tantos outros que estiveram presentes em momentos diversos da vida de artista de Harildo Déda.
Da mesma forma, senti a falta de depoimento dos companheiros da "antiga" no programa.
Da mesma forma, senti a falta de depoimento dos companheiros da "antiga" no programa.
Depois do inevitável merchadise e do aviso de como se comportar, houve uma longa pausa. Necessária para nos preparar para a finalidade da noite. Um silêncio grave e pesado tomou conta da sala. De repente soaram os três sinais. Soaram como se de longe, de muito longe dos tempos. Por que não substituí-los pelas pancadas de Molière? Por fim, a luz banhou o elegante, sóbrio e apropriado espaço criado por Rodrigo Frota, jovem cenógrafo que se afirma no palco, com bastante sensibilidade para o ofício. Os adamascados que usa para criar o ambiente remetem ao palco, palco histórico. Os poucos móveis completam a cena, cujo piso de madeira prensada e de cor natural reflete a luz clareando os tons escuros dos tecidos. Três áreas para a representação: um palco que avança, uma área sob uma cobertura e resguardada por uma cortina. Acima dela, uma balaustrada. Não fosse o ator uma apaixonado por Shakespeare seria apenas uma coincidência. Ocorre-me agora ser tal opção, uma citação? Mas isso não tem importância. Ficar decifrando códigos durante a apreciação é não se envolver com a essência da representação.
Criada a moldura, instalada a atmosfera pela habilidade do diretor, eis que entra em cena o ator, o personagem, o ator-personagem? O jogo inicial é o do teatro dentro do teatro. E logo sabemos que o ator-personagem já não consegue se lembrar dos textos. A memória falha. E é sobre isso que ele fala, mas fala, sobretudo dos significados do teatro. E nos pergunta, e a si mesmo, se o teatro ainda significa alguma coisa. A ironia de tudo: o ator é conhecido por HD, mas sua memória falha e ele abandona o teatro quando da temporada de Rasga Coração, o monumental e controverso texto que Oduvaldo Vianna Filho nos legou do leito do hospital. Não há aqui a pretensão de analisar o embate geracional que o talentoso autor traz em seu texto, mas informar que ele vai servir, em A Última Sessão de Teatro, para ilustrar de maneira muito apropriada a temática que Luiz Marfuz escreveu para Harildo Déda.
No desenrolar do enredo, mais um texto agrega-se ao tema da peça - a relação de um velho ator com um jovem desejoso de se tornar ator tal qual seu ídolo. Fato que acontece quando HD, depois de muito relutar, passa a lhe ensinar o ofício. O texto seguinte, Eles Não Usam Black-tie de Gianfrancesco Guarnieri, serve de contraponto, da mesma forma que Rasga Coração, somando-se a uma situação conflitante da peça de Marfuz. No dia do teste para o papel de Lucas na montagem de Rasga Coração, retorno de HD aos palcos, o jovem Luiz Fernando mente, justificando o seu atraso. Sua mentira convence o mestre e ele ganha o papel. Ao ser descoberto é expulso da casa por HD e por sua companheira, Olga. Nos textos de Guarnieri e Vianinha, um pai bate-se com um filho; duas gerações, com pensamentos diversos entram em conflito. Nas duas peças, apesar do afeto que une os dois, o filho é expulso de casa. De forma engenhosa, sem grandes malabarismos, Marfuz arma a sua trama e expõe de maneira muito viva os três momentos, costurando-os de forma bastante segura. Esse mecanismo torna seu texto abrangente, ele pode falar a outra faixa de público, aquela que não é do meio teatral, já que o seu texto está permeado de referências somente conhecidas para quem é do métier ou conhece Harildo Déda.
Antes de introduzir os dois textos consagrados da dramaturgia nacional, Marfuz insere na cena o "inventor do humano", fazendo HD interpretar monólogos retirados de peças de Shakespeare, autor que ele usa também para ensinar Luiz Fernando a dizer um texto. Para quem conhece as habilidades do ator-professor com o universo do bardo, fica em nós a vontade de vê-lo em cena interpretando as monumentais criações de Shakespeare. Ao dizer o monólogo de Lear, o intérprete deixa ver o que pode fazer com o papel. Fosse noutra praça, o nosso primeiro ator, teria condições de fazer o Rei Lear na totalidade, ou Próspero de A Tempestade.
Esclarecido o embuste, recurso que Luiz Fernando usou para ganhar o papel, tanto HD quanto Olga acolhem o jovem, que vê a sua chance chegar. No final de A Última Sessão de Teatro, diferentemente dos personagens Lucas e Tião, das peças citadas, Luiz Fernando se integra ao núcleo "familiar" e passa a fazer parte da família do teatro, unindo-se ao elenco da montagem de Rasga Coração, sem antes ouvir reprimendas do mestre. A relação mestre e discípulo se completa.
O espetáculo se ergue sem pirotecnia por parte do diretor. Marfuz está a serviço de uma ideia e do seu intérprete, Harildo Déda. Sem descuidar de Neide Moura (Olga) e revelando Fernando Santana, ator com futuro promissor, o diretor arma a cena de maneira que os personagens apareçam e os atores possam mostrar a competência necessária para comunicar-lhes ao público. É certo que o foco é HD, e seu intérprete sabe tirar partido desse personagem tão próximo dele. De maneira irônica, ele expõe seus cacoetes e nos convence de que não é ele quem está em cena. Esse jogo torna o espetáculo uma demonstração de sua metamorfose. Mas todo tempo, é como se ele piscasse nos enganando. Hypokrités.
Na estréia, contando com a cumplicidade da plateia, Déda não se deixou levar por esse sentimento, mas soube tirar partido da situação e nos envolveu sedutoramente. Tanto nas passagens realistas da peça, quanto nos momentos de reflexão, parênteses que se abrem ao longo do drama, ele se utiliza do cabedal que a vida no palco e na sala de aula lhe deram. Atinge nos monólogos uma qualidade interpretativa invejavel para qualquer ator que queira estar no palco com a segurança que ele tem. Nesses momentos, o ator utiliza e domina os recursos vocais e corporais para nuançar as palavras que brotam de uma compreensão que tem do texto. A palavra compreendida soa clara e precisa, pois dita pelo domínio da técnica, sem o artificialismo teatralista, mas reveladora da teatralidade. Essa compreensão do que é estar no palco, essa outra realidade, Harildo Déda mostra sem pomposidade e divide a cena com seus companheiros. Gostaria de têlo ouvido completar as canções que em dois momento entoa. O mágico e inesperado momento em que começa a cantar Over the Rainbow é interrompido sem que a cena se complete. Uma pena! O fugaz momento em que canta um trecho de Zumbi (Guarnieri, Boal, Edu Lobo) poderia se concluir. Déda tem recursos de cantor para exibi-los, como já o fez na montagem de Zumbi (1966) sob a direção de Álvaro Guimarães e na Companhia das Índias (Nelson de Araújo, Orlando Senna), em 1968, quando cantava à capela Ol Man River.
Neide Moura, tem nas mãos o personagem mais ingrato. No jargão e na tradição do teatro, é escada para o protagonista. Por isso, Olga não lhe dá possibilidade de grandes vôos, mas a atriz corresponde ao que lhe é dado, marca com sua presença a cena. Na silenciosa Romana de Black-tie demonstra qualidades de atriz presentes em toda a sua atuação.
Fernando Santana como Luiz Fernando, o jovem ator que se posta diante da casa de HD para ser atendido e realizar seu desejo, é uma grata supresa. Infunde verdade ao personagem, usa bem a sua bela voz e não se intimida diante dos atores experimentados com quem contracena. Uma boa promessa. A iluminação de Walter Santos e Luiz Marfuz é bem concebida, necessitando de pequenos ajustes. Toda produção revela cuidado e profissionalismo. Ao fim de tudo, fica-se com a certeza de que o teatro já não é uma recomendação médica como o foi na Grécia, nem mais uma cerimônia que unia a pólis. Ainda assim, consegue tocar de meneira indelével aos que se aproximam dele: os que trazem inpune a marca de Dioniso ou os querem comungar com os oficiantes de um rito já desencantado que nos arrasta quando é pleno nas suas constituintes.
Criada a moldura, instalada a atmosfera pela habilidade do diretor, eis que entra em cena o ator, o personagem, o ator-personagem? O jogo inicial é o do teatro dentro do teatro. E logo sabemos que o ator-personagem já não consegue se lembrar dos textos. A memória falha. E é sobre isso que ele fala, mas fala, sobretudo dos significados do teatro. E nos pergunta, e a si mesmo, se o teatro ainda significa alguma coisa. A ironia de tudo: o ator é conhecido por HD, mas sua memória falha e ele abandona o teatro quando da temporada de Rasga Coração, o monumental e controverso texto que Oduvaldo Vianna Filho nos legou do leito do hospital. Não há aqui a pretensão de analisar o embate geracional que o talentoso autor traz em seu texto, mas informar que ele vai servir, em A Última Sessão de Teatro, para ilustrar de maneira muito apropriada a temática que Luiz Marfuz escreveu para Harildo Déda.
No desenrolar do enredo, mais um texto agrega-se ao tema da peça - a relação de um velho ator com um jovem desejoso de se tornar ator tal qual seu ídolo. Fato que acontece quando HD, depois de muito relutar, passa a lhe ensinar o ofício. O texto seguinte, Eles Não Usam Black-tie de Gianfrancesco Guarnieri, serve de contraponto, da mesma forma que Rasga Coração, somando-se a uma situação conflitante da peça de Marfuz. No dia do teste para o papel de Lucas na montagem de Rasga Coração, retorno de HD aos palcos, o jovem Luiz Fernando mente, justificando o seu atraso. Sua mentira convence o mestre e ele ganha o papel. Ao ser descoberto é expulso da casa por HD e por sua companheira, Olga. Nos textos de Guarnieri e Vianinha, um pai bate-se com um filho; duas gerações, com pensamentos diversos entram em conflito. Nas duas peças, apesar do afeto que une os dois, o filho é expulso de casa. De forma engenhosa, sem grandes malabarismos, Marfuz arma a sua trama e expõe de maneira muito viva os três momentos, costurando-os de forma bastante segura. Esse mecanismo torna seu texto abrangente, ele pode falar a outra faixa de público, aquela que não é do meio teatral, já que o seu texto está permeado de referências somente conhecidas para quem é do métier ou conhece Harildo Déda.
Antes de introduzir os dois textos consagrados da dramaturgia nacional, Marfuz insere na cena o "inventor do humano", fazendo HD interpretar monólogos retirados de peças de Shakespeare, autor que ele usa também para ensinar Luiz Fernando a dizer um texto. Para quem conhece as habilidades do ator-professor com o universo do bardo, fica em nós a vontade de vê-lo em cena interpretando as monumentais criações de Shakespeare. Ao dizer o monólogo de Lear, o intérprete deixa ver o que pode fazer com o papel. Fosse noutra praça, o nosso primeiro ator, teria condições de fazer o Rei Lear na totalidade, ou Próspero de A Tempestade.
Esclarecido o embuste, recurso que Luiz Fernando usou para ganhar o papel, tanto HD quanto Olga acolhem o jovem, que vê a sua chance chegar. No final de A Última Sessão de Teatro, diferentemente dos personagens Lucas e Tião, das peças citadas, Luiz Fernando se integra ao núcleo "familiar" e passa a fazer parte da família do teatro, unindo-se ao elenco da montagem de Rasga Coração, sem antes ouvir reprimendas do mestre. A relação mestre e discípulo se completa.
O espetáculo se ergue sem pirotecnia por parte do diretor. Marfuz está a serviço de uma ideia e do seu intérprete, Harildo Déda. Sem descuidar de Neide Moura (Olga) e revelando Fernando Santana, ator com futuro promissor, o diretor arma a cena de maneira que os personagens apareçam e os atores possam mostrar a competência necessária para comunicar-lhes ao público. É certo que o foco é HD, e seu intérprete sabe tirar partido desse personagem tão próximo dele. De maneira irônica, ele expõe seus cacoetes e nos convence de que não é ele quem está em cena. Esse jogo torna o espetáculo uma demonstração de sua metamorfose. Mas todo tempo, é como se ele piscasse nos enganando. Hypokrités.
Na estréia, contando com a cumplicidade da plateia, Déda não se deixou levar por esse sentimento, mas soube tirar partido da situação e nos envolveu sedutoramente. Tanto nas passagens realistas da peça, quanto nos momentos de reflexão, parênteses que se abrem ao longo do drama, ele se utiliza do cabedal que a vida no palco e na sala de aula lhe deram. Atinge nos monólogos uma qualidade interpretativa invejavel para qualquer ator que queira estar no palco com a segurança que ele tem. Nesses momentos, o ator utiliza e domina os recursos vocais e corporais para nuançar as palavras que brotam de uma compreensão que tem do texto. A palavra compreendida soa clara e precisa, pois dita pelo domínio da técnica, sem o artificialismo teatralista, mas reveladora da teatralidade. Essa compreensão do que é estar no palco, essa outra realidade, Harildo Déda mostra sem pomposidade e divide a cena com seus companheiros. Gostaria de têlo ouvido completar as canções que em dois momento entoa. O mágico e inesperado momento em que começa a cantar Over the Rainbow é interrompido sem que a cena se complete. Uma pena! O fugaz momento em que canta um trecho de Zumbi (Guarnieri, Boal, Edu Lobo) poderia se concluir. Déda tem recursos de cantor para exibi-los, como já o fez na montagem de Zumbi (1966) sob a direção de Álvaro Guimarães e na Companhia das Índias (Nelson de Araújo, Orlando Senna), em 1968, quando cantava à capela Ol Man River.
Neide Moura, tem nas mãos o personagem mais ingrato. No jargão e na tradição do teatro, é escada para o protagonista. Por isso, Olga não lhe dá possibilidade de grandes vôos, mas a atriz corresponde ao que lhe é dado, marca com sua presença a cena. Na silenciosa Romana de Black-tie demonstra qualidades de atriz presentes em toda a sua atuação.
Fernando Santana como Luiz Fernando, o jovem ator que se posta diante da casa de HD para ser atendido e realizar seu desejo, é uma grata supresa. Infunde verdade ao personagem, usa bem a sua bela voz e não se intimida diante dos atores experimentados com quem contracena. Uma boa promessa. A iluminação de Walter Santos e Luiz Marfuz é bem concebida, necessitando de pequenos ajustes. Toda produção revela cuidado e profissionalismo. Ao fim de tudo, fica-se com a certeza de que o teatro já não é uma recomendação médica como o foi na Grécia, nem mais uma cerimônia que unia a pólis. Ainda assim, consegue tocar de meneira indelével aos que se aproximam dele: os que trazem inpune a marca de Dioniso ou os querem comungar com os oficiantes de um rito já desencantado que nos arrasta quando é pleno nas suas constituintes.
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