“Tal como a mãe que aconchega no peito o recém-nascido sem acordá-lo, assim também a vida trata, durante muito tempo, as ternas recordações da infância” - sem discordar de Walter Benjamin (Infância em Berlim por volta de 1900), vejo que em mim as recordações de infância despertam involuntariamente. Esse acordar motivado pelo inesperado que irrompe no caminho do dia e nas veredas das horas torna o cotidiano um pouco mais rico. A estridência dos barulhos ou a suavidade de uma música provocam recordações como as de agora. Sinto no ar o odor dos bolinhos de tia Mirinha. Lembro a textura saborosa da massa fofinha e amarela dissolvendo-se na boca, depois que os olhos admiravam-lhes as formas intumescidas saídas de forminhas que as aprisionavam, mas determinavam seu crescimento para cima, abrindo-as convidativas para o apetite de menino. Apetite que devorava forma, textura e sabor por etapas, até que tudo se transformasse em pasta. Assados em forno de lenha, os bolinhos brilhavam aos meus olhos gulosos, já que vinham vitrificados com uma camada de manteiga derretida, aumentando a intensidade do amarelo vibrante das gemas dos ovos de galinhas criadas nos quintais e nas roças. Essa camada translúcida fazia com que as cores do assado, com suas tonalidades de marrom, combinassem com o amarelo do interior do bolinho, que aparecia pelas rachaduras provocadas pelo calor.
Vendidos nos bares da cidade, ou comercializados de porta em porta pela velha Davina, os bolinhos de tia Mirinha foram as delícias de minha infância, da mesma forma que os bolos grandes e os doces que ela fazia para completar o orçamento familiar, ajudando o marido a criar os muitos filhos. Ele atrás do balcão da venda de secos e molhados, ela na cozinha a bater imensas vasilhas de massa, a untar forminhas, acender o forno de lenha mantendo-o na temperatura exata para fazer sair da fornalha as preciosidades do fim de tarde, hora em que a guloseima ficava pronta abarrotando bandejas e tabuleiros. Pura alquimia a tarefa de tia Mirinha.
Conhecida por todos como Mirinha, seu nome Altamira ficava para as certidões guardadas em caixas no interior de algum armário ou guarda-roupa. Era assim que se guardavam as certidões de nascimento, batismo e casamento no tempo da minha criancice. Para os sobrinhos, era a tia Mirinha, gorda, do rosto redondo, sorriso acolhedor, voz firme e adocicada por um tom maternal de quem criou cinco filhos, todos adultos quando eu era menino. Alguns em São Paulo, outros perto dela. Sua casa exalava os aromas doces e a limpeza. A brisa corria das janelas sempre abertas pelo longo corredor, até os fundos onde se concentrava a cozinha. Tudo no lugar: quadros com paisagens, bibelôs, jarros, vasos com plantas, mesa sempre forrada com tolha bordada ou com pano de crochê, feitos certamente por minha avó. Na cozinha, chamava a atenção o brilho das panelas de alumínio, o tacho de cobre sem azinhavre e os apetrechos para as misturas que só ela sabia fazer.
Bolos do cotidiano transformavam-se em preciosidades nos dias festivos. Não os renegava, embora fosse fiel aos bolinhos que Davina entrega em casa. Fiel a eles. Saboreava os das festas, mas voltava aos pequeninos, certo de que eles eram os melhores bolinhos do mundo; e eram. Ainda hoje, ao ver as guloseimas nas doçarias, padarias e confeitarias, não encontro nada comparável aos bolinhos de tia Mirinha. Eles estão associados aos momentos mais felizes entre os tantos que tive em minha infância. Tanto os bolinhos quanto os instantes de felicidade amenizaram os dias tristes e as tensões de um menino que sabia ser constituído de outra matéria: a dos sonhos, da fantasia, da solta imaginação que me faziam vagar para bem longe, quando os medos se faziam presentes. Ah, os bolinhos de tia Mirinha só encontram rivais nos bolinhos de Tia Nastácia.
Vendidos nos bares da cidade, ou comercializados de porta em porta pela velha Davina, os bolinhos de tia Mirinha foram as delícias de minha infância, da mesma forma que os bolos grandes e os doces que ela fazia para completar o orçamento familiar, ajudando o marido a criar os muitos filhos. Ele atrás do balcão da venda de secos e molhados, ela na cozinha a bater imensas vasilhas de massa, a untar forminhas, acender o forno de lenha mantendo-o na temperatura exata para fazer sair da fornalha as preciosidades do fim de tarde, hora em que a guloseima ficava pronta abarrotando bandejas e tabuleiros. Pura alquimia a tarefa de tia Mirinha.
Conhecida por todos como Mirinha, seu nome Altamira ficava para as certidões guardadas em caixas no interior de algum armário ou guarda-roupa. Era assim que se guardavam as certidões de nascimento, batismo e casamento no tempo da minha criancice. Para os sobrinhos, era a tia Mirinha, gorda, do rosto redondo, sorriso acolhedor, voz firme e adocicada por um tom maternal de quem criou cinco filhos, todos adultos quando eu era menino. Alguns em São Paulo, outros perto dela. Sua casa exalava os aromas doces e a limpeza. A brisa corria das janelas sempre abertas pelo longo corredor, até os fundos onde se concentrava a cozinha. Tudo no lugar: quadros com paisagens, bibelôs, jarros, vasos com plantas, mesa sempre forrada com tolha bordada ou com pano de crochê, feitos certamente por minha avó. Na cozinha, chamava a atenção o brilho das panelas de alumínio, o tacho de cobre sem azinhavre e os apetrechos para as misturas que só ela sabia fazer.
Bolos do cotidiano transformavam-se em preciosidades nos dias festivos. Não os renegava, embora fosse fiel aos bolinhos que Davina entrega em casa. Fiel a eles. Saboreava os das festas, mas voltava aos pequeninos, certo de que eles eram os melhores bolinhos do mundo; e eram. Ainda hoje, ao ver as guloseimas nas doçarias, padarias e confeitarias, não encontro nada comparável aos bolinhos de tia Mirinha. Eles estão associados aos momentos mais felizes entre os tantos que tive em minha infância. Tanto os bolinhos quanto os instantes de felicidade amenizaram os dias tristes e as tensões de um menino que sabia ser constituído de outra matéria: a dos sonhos, da fantasia, da solta imaginação que me faziam vagar para bem longe, quando os medos se faziam presentes. Ah, os bolinhos de tia Mirinha só encontram rivais nos bolinhos de Tia Nastácia.
Um comentário:
"Os verdadeiros paraísos são os paraísos que se perderam" (Marcel Proust). Os doces da sua tia como as madeleines do francês nos atiram na dimensão do tempo perdido, mas reencontrado pela magia da memória. Também tive a minha doceira e, hoje, nostálgicas madeleines. Belo texto.
Postar um comentário