Ontem, aproveitando o último fim de semana de férias, sem ter muito o que fazer, resolvi andar sem rumo pelo centro da cidade. Gosto de fazer essas excursões, nem sempre prazerosas, mas estimulantes. A temperatura amena, muito mais outonal que invernal, torna a tarde agradável e a caminhada menos suarenta. Munido de paciência e de máquina fotográfica observo a sujeira das ruas, tão diferente da avenida próxima aos hotéis. Tomo o ônibus. Marcas da diferença.
Enquanto escrevo essas notas eu ouço Gal Costa. As canções do CD "O Sorriso do Gato de Alice" embalam o que me vem na cabeça. Tento reconstruir o passeio de ontem.
No ônibus, ouço a conversa de dois passageiros atrás do meu banco. A conversa me interessa. Controlo-me para não olhar e conferir quem são. Espero até eles descerem para conferir. A mulher comenta o que vê como se o outro passageiro não enxergasse a paisagem através da janela. Ou como se ele estivesse fazendo essa travessia depois de muitos anos. O casal desce nas proximidades do Campo Grande. Ele é bem idoso, muito bem vestido e de chapéu. Ela é mais jovem, deduzo ser sua filha. Veste-se como todas as mulheres que vejo pela cidade, calça apertada, blusa mais ainda, deixando entrever as dobras do corpo que tenta se acomodar ao modelo escolhido.
Resolvo descer na Piedade. Gosto da praça e mais de sua fonte. Ela me traz recordações da infância, quando estive pela primeira vez em Salvador. Lembro-me que a praça era mais bonita. Havia menos árvores, mas os arbustos floridos eram abundantes. Estátuas decoravam os canteiros e no meio do jardim a fonte, ainda existente. Hoje ela destoa do planejamento modernoso submetido ao jardim, mas continua charmosa, talvez o objeto mais belo na praça. Há também os bustos, um deles recentemente roubado, mas reposto, dos líderes da Conjuração Baiana, também chamada de Revolta dos Alfaiates. Justa homenagem, já que na praça foram enforcados.
Nos bancos que circundam o jardim muitos homens conversam. São idosos. Disseram-me ser aposentados que ali se reunem. Moradores de rua, mendigos e desocupados completam o cenário. Passantes se arrastam pra lá e prá cá num ritmo que às vezes me exaspera, principalmente quando apressado. Não é o caso nesse passeio sem compromisso. Mas noto sempre uma lentidão nas pessoas e pergunto-me sempre o motivo de elas pararem para conversar no meio do passeio público sem se importatr com o outro que às vezes tem que se espremer para passar rente a parede ou caminhar pela rua, visto que os dialogantes não conseguem perceber quem passa. Costumes, hábitos, questões culturais, dizem...
Passo pelo Convento da Lapa e me pergunto o que nele se abriga. Somente a igreja está aberta. Noto na entrada uma faixa com a seguinte frase: "Jesus te espera". De repente me ocorre que as igrejas disputam fiéis entre si usando os mecanismos da que condenam ou perseguem.
Passo pelo Central, o colégio onde fiz o curso clássico. Portanto sou antigo. A avenida Joana Angélica no meu tempo de calça azul-marinho e camisa de tricoline branco era mais bonita., o colégio também. Mas como disse o compositor popular, aqui, o que é construção já é ruína. Os casarões que sobraram ao longo da avenida estão descaracterizados. Viraram monstrengos arquitetônicos se é que se pode chamar de arquitetônico algo que não é nada. A feiúra impera.
As ruas estão cheias de caras de políticos com seus sorrisos, congeladas falsidades, tentando mostrar o que não são. Mas a fotografia revela e diz o que lhes vai na alma. Coitado de quem acredita em políticos. A paisagem está suja.
Dou com os costados nas imediações da Igreja de Santana, resolvo entrar para ver as imagens restauradas. A de São Benedito destruída por uma fanático fundamentalista e a de Santana. Constato que o templo está fechado, mas insisto. Por fim encontro uma porta lateral aberta.
Quase desisto de fotografar a imagem de Santana. Um ventilador preso na parede da secular igreja, como uma idéia fora do lugar, permanecia em todos os ângulos que me posicionei. Eu queria apenas a imagem e detalhes dos elementos decorativos, mas o ventilador intrometia-se e a objetiva capatava-o. De todos os lados que me posicionei estava ele lá, dizendo-se tecnologicamente moderno. Não deu para fotografar a outra imagem. Ela estva na sacristia e a luz não favorecia. Não quis usar o artifício de flash.
Os pássaros que cantam na minha janela atraídos pelo bebedouro com água e mel, cantam mais ainda quando ouvem as canções na voz de Maria das Graças. São dez horas de uma manhã de sábado. Há sol. O dia avanço com poucas promessas...
Descendo a ladeira em direção a Baixa dos Sapateiros, chegam-me aos ouvidos os acordes da canção de Ari Barroso. Ela toca somente em mim. Meu coração balança. E eu flâneur vou embalado no embalo da canção. Como não sei assobiar, cantarolo baixinhos as primeiras frases e ando por entre lojas de roupas populares até a Ladeira da Praça. Antes de subi-la, entro numa loja de coisas antigas numa daquelas ruas próxima a Casa de Angola na Bahia. Ruínas.
Retorno para casa, meu casúlo. Já é noite. Ao me aproximar sinto o cheiro de um bom incenso que vem do seu interior. A luz coada através das cortinas dão uma sensação de segurança.
Sinto o esplendor nas coisas.
Um comentário:
Muito bom.
A referência à Gal me deixou certo de que o bom sempre aparece mais nítido no yan yng da vida.
Sou aficcionado pela Gal e pelas ruas do centro de Salvador.
O meu canto vem da aspiração pelo Rio, da força da Bahia e das emissões certeiras de Maria da Graça.
Me tocou profundamente o teu texto.
Grande abraço!!!!!!!!!!!
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