terça-feira, 12 de junho de 2007

Registro 102: A História vista a contrapelo

WALTER BENJAMIN E AS LIÇÕES DE UMA HISTÓRIA VISTA A “CONTRAPELO”
Não existe documento de cultura que não seja também um documento de barbárie... portanto, na medida do possível o materialismo histórico se distancia dela. Considera que sua missão é escovar a história a contrapelo (Walter Benjamin, Sobre o conceito de história, tese VII, c. 1940).

Walter Benjamin, que viveu entre 1892 e 1940, na Alemanha e na Europa nos agitados e transformadores tempos dos finais do século XIX e da primeira metade do século XX, foi sem dúvida um dos mais importantes intelectuais europeus em sua época. Intelectual imprescindível para uma adequada compreensão da história e da cultura européia do principio do século XX, Benjamin captou, com excepcional perspicácia crítica e concepção extremamente refinadas, várias das mais importantes lições derivadas de complicados acontecimentos históricos, e das profundas transformações sociais e culturais desta Europa já mencionada. Uma Europa que foi sacudida, sucessivamente, pela ascensão de potentes movimentos dos trabalhadores e pelos audazes intentos das revoluções socialistas finalmente falidas, pela absurda primeira grande guerra européia de 1914-1918, pela crise econômica de 1929 e posterior ascensão do nazismo, do fascismo e do franquismo e, finalmente, pela irrupção também cruel e irracional da segunda guerra mundial, configurando, a partir de todos estes processos, o claro cenário de uma autêntica e profunda crisis, tanto do projeto civilizatório global europeu, quanto do conjunto dos fundamentos da razão européia moderna.

Porque em sintonia como todos estes choques e sacudidas mencionadas, que constituem o “meio” e a “época” da trajetória biográfica de Walter Benjamin, é que vão florescer e difundir-se amplamente todos esses questionamentos intelectuais, sistemáticos e profundamente críticos, relativos a todos e a cada um dos fundamentos da moderna razão burguesa, impugnada igualmente pela psicanálise freudiana, pela antropologia crítica inglesa e igualmente pela nova historiografia francesas e pelos círculos lingüísticos austríacos, além dos marxistas italianos, russos, alemães, húngaros, polacos e holandeses, junto aos sociólogos germânicos e aos poetas, escritores e artistas de praticamente toda Europa.

Uma crise total da razão burguesa moderna, – anunciada pioneira e inicialmente, várias décadas atrás, no projeto crítico de Marx –, que ao alimentar todas estas expressões críticas e contraculturais do período entre as duas guerras mundiais, vai abrir espaço para o desenvolvimento de uma perspectiva e de uma obra original e tão aguda, como a que tem sua origem no pensamento e na escrita de Walter Benjamin.

Somente uma consideração atenta deste contexto global, de destruição e de perda total de legitimidade da civilização, da razão e da cultura européias [1] é que permite compreender, tanto o agudo corte crítico das visões de Benjamin sobre o cinema, a imprensa, o teatro e a cultura dos seus contemporâneos – e os que ele analisou e diagnosticou de maneira singularmente profunda – quanto seu original olhar a respeito do drama barroco alemão, as obras de Baudelaire e de Goethe, o inacabado estudo sobre as passagens de Paris, entre os vários temas que abordou ao largo da sua relativamente curta vida.

Assim como ele nos mostra como o cinema recém inventado vai substituir as capacidades e habilidades do verdadeiro ator de teatro, pelos truques e possibilidades derivados da aplicação das câmeras e dos instrumentos da técnica cinematográfica, quando se entusiasma com a novidade e o caráter revolucionário do “teatro de situações” de Bertolt Brecht frente ao teatro tradicional e, igualmente, quando pensa sobre o “princípio construtivo” que permite organizar e dar conta da especificidade global de uma época, desde a caracterização do barroco ao exame das passagens e da nova configuração espacial e arquitetônica de Paris que é a “capital do século XIX”, Walter Benjamin coloca sempre em ação esse olhar crítico e distanciado, derivado da observação das realidades que estuda, sempre a contrapelo. Um olhar que transpassando o aparente significado evidente das coisas e dos assuntos estudados, vai se localizar sempre desde novos desafios, de espaços pouco freqüentados, para ser capaz de marchar em direções e caminhos que interrogam os seus objetos num sentido inverso dos raciocínios rotineiros e habituais, sempre na linha de “desfamiliarizar-nos” frente a essas realidades investigadas, para descobrir nelas, mediante o raciocínio crítico e dialético, seus significados mais profundos e essenciais.

Inserindo-se então, dentro das mais genuínas tradições do pensamento crítico contemporâneo, que começa desde Marx e se prolonga até os dias de hoje, Benjamin dá curso também a manifestação deste espaço privilegiado para a crítica que se constitui na Europa convulsionada entre as duas guerras mundiais desse século XX cronologicamente por terminar [2].
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ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Walter Benjamin y las lecciones de una historia vista a “contrapelo”. In. Diálogos, v. 5, n. 01, p. 89-105. Maringá: Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, 2001. Disponível http:// www.uem.br/~dialogos/ Acesso em: 19 jul. 2006. Tradução de Raimundo Matos de Leão
NOTAS

[1] Esta crise da civilização, da sociedade e da cultura européia nos anos de 1914-1945 é, em nossa opinião, um marco obrigatório de referências para a explicação da extraordinária ebulição cultural da consciência crítica que se manifesta em todas as perspectivas e correntes antes referidas. Sobre os impactos mais específicos desta crise no caso francês, temos tentado mostrar, respeito da nova historiografia francesa da mal chamada “escola” dos Annales, em nosso livro L’histoire conquérenate. Um regard sur l’historiographie francais, Ed. L’Hermattan, Paris, 2000 e também no livro Os Annales e a historiografía francesa. Tradições críticas, de Marc Bloch a Michel Foucault, Ed.Universidad Estadual da Maringa, Maringa, 2000.

[2] Para se ter uma idéia geral dos temas abordados por Walter Benjamin, cujos livros são, felizmente, traduzidos em sua maioria para o espanhol apesar, por exemplo, das ausências importantes dos fragmentos que deixou inconcluso dos estudos sobre as passagens de Paris, que já foram traduzidos para o francês, podemos ver por exemplo os livros de Pierre Missac, Walter Benjamin de um siglo a otro, Ed. Edisa, Barcelona, 19988 e Concha Fernández Martorell, Walter Benjamin. Crónica de um pensador, Ed. Montesinos, Barcelona, 1992. Sobre a obra inconclusa das ‘Passagens’ ver o livro de Susan Buck-Morss, Dialéctica de la mirada. Walter Benjamin y projecto de los Pasajes, Ed. Visor, Madrid, 1995.

Um comentário:

Luana disse...

a expressão "escovar a história a contrapelo" é de fato muito interessante. faz pensar...
muito boas as explicações. obrigada!