sexta-feira, 1 de junho de 2007

Registro 93: Escrito na Folha de S. Paulo

O pós-moderno

FRANCISCO DE OLIVEIRA
Ele deu um salto à frente, de enormes proporções, e se tornou o mais eminente dos pós-modernos. Lula é, agora, a vanguarda do atraso.
LUIZ INÁCIO Lula da Silva, o atual presidente, nunca disfarçou seu desprezo pelos intelectuais, sentimento ou perspectiva compartilhada, aliás, por não poucos dos seus camaradas. Houve até um ministro importante do primeiro mandato que, ao anunciar a criação de um núcleo de estudos estratégicos no governo, avisou imediatamente que nele não teriam assento intelectuais que discutem eternamente o "sexo dos anjos", o que deu para desconfiar que ele não entendia nada de sexo ou de anjos -ou dos dois. A ironia é que Lula entregou agora o Ipea e o tal núcleo de estudos exatamente a um intelectual, tão intelectual que fala português com sotaque norte-americano.
Intelectual, diga-se logo, não é garantia de coisa alguma, pois o predecessor de Lula era um intelectual consagrado, que aliás se pavoneava com certa desfaçatez, proporcional ao desprezo de Lula. Que o PT tenha incensado certos intelectuais não faz muita diferença, pois essa é uma tradição da esquerda, a instrumentalização dos intelectuais ou de seus prestígios. Por isso, não se lamenta muito o desprezo do presidente. Mas ele agora deu um salto à frente, de enormes proporções, e se tornou o mais eminente dos pós-modernos. Ainda que rejeitem a noção de vanguarda, é certo que Luiz Inácio é, agora, a vanguarda do atraso.
Fazendo tabula rasa da história dos trabalhadores sob o capitalismo, Lula se entregou a perigosos exercícios intelectuais: designou os usineiros de açúcar do Brasil como heróis, os mais importantes do Brasil moderno, vale dizer, do Brasil lulista. Logo ele, pernambucano, desconhecer a história dos trabalhadores da cana-de-açúcar.
Jogou na lata de lixo as vidas ceifadas e de qualquer modo amesquinhadas por uma das formas de exploração do trabalho mais brutais. Não, segundo o pós-modernismo do presidente, eles, os trabalhadores, não existiram, suas vidas não contaram, porque os usineiros sempre foram magnânimos e um viés preconceituoso da esquerda prejudicou o reconhecimento do papel e do lugar dessa primorosa classe social na história brasileira. Francisco Alves é um pesquisador e professor da Universidade Federal de São Carlos que, com José Roberto Novaes, este da federal do Rio de Janeiro, está publicando em livro os resultados de anos de investigação sobre o trabalho dos cortadores de cana na região eldorada do açúcar em São Paulo. Em recente seminário na Faculdade de Saúde Pública da USP, foi difícil conter a indignação de Chico Alves, pois os jornais noticiavam mais uma morte por exaustão de um trabalhador da cana. Quase ao mesmo tempo, a Folha atualizava a sinistra estatística: já são 19 trabalhadores que morrem por exaustão desde 2004.
A professora Maria Aparecida Moraes, que também comparece com excelente artigo na coletânea, esclarecia em entrevista o que provocava as mortes por exaustão, mas a encerrava com uma nota final esperançosa que, para os leitores, era completamente estapafúrdia diante do que ela mesma comentara.
Aos fatos, finalmente: a produtividade dos trabalhadores tem crescido de maneira exponencial. No período de dez anos estudado por Chico Alves, ela havia passado de seis para 12 toneladas diárias. Eles perdem cerca de dez litros de água por dia, percorrem distâncias -no campo de trabalho, nos metros que lhes são destinados para corte- de dez quilômetros diários, dão 66 mil foiçadas (com o podão, um facão especial) por dia para lograr as 12 toneladas diárias, trabalham no mínimo 12 horas por dia, numa jornada que tem, pelo menos, seis horas de intensa exposição ao sol.
São encontrados no fim do dia nos postos de saúde tomando soro na veia para recuperar um pouco dos sais que perdem. Morrem por esgotamento: câimbras que podem provocar paradas cardíacas. Têm hoje vida média inferior à dos escravos coloniais. Em reportagem da Folha, um deles relatou que quase foi picado por uma cobra, que exige que andem com perneiras de plástico e ferro para evitar os presentes da deusa do Paraíso e o repique do podão.
A ironia da história é que a mudança do critério de toneladas para metros foi uma vitória da célebre greve de Leme em 1986, aquela em que deputados do PT, entre eles José Genoino, foram acusados pelas autoridades, com apoio dos heróis usineiros, de disparar um tiro que matou uma trabalhadora rural. Mas essa vitória de Pirro exige que os trabalhadores saibam converter metros em toneladas para não serem logrados, e a história diária é a de um roubo descarado. Marx disse certa vez que o capitalismo não é roubo, é exploração. É necessário ressuscitar a princesa Isabel e Marx: a primeira para realizar a nova abolição, e o segundo, para reformular seus conceitos, ainda generosos, de mais-valia e exploração.
Ave, Lula! Os usineiros te saúdam, e o Brasil, transformado num imenso canavial, curva-se à tua sapiência!

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FRANCISCO DE OLIVEIRA, 73, é professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

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