quarta-feira, 20 de junho de 2007

Registro 111: Aula inaugural

O ATOR E SEU OFÍCIO[1]

Fernanda Montenegro

Albert Camus, falando sobre o absurdo da existência humana observa: “O ator reina no domínio do mortal. De todas as glórias do mundo, sabemos que a sua é a mais efêmera. E é também o ator quem mais percebe, entre os homens, que tudo deve morrer um dia. E, para ele, não representar significa morrer cem vezes, com as cem personagens que ele teria animado ou ressuscitado”.

Percorrendo assim os séculos e os espíritos, imitando o homem tal como ele pode ser e tal como é, o ator confunde-se com outra figura absurda: o viajante. E como viajante, o ator esgota alguma coisa ao percorrer sem cessar. Ele é o viajante do tempo e, se é um grande ator, torna-se um ansioso viajante das almas.

Para pegar um copo, ele encontra novamente o gesto de Hamlet erguendo a taça. Por isso, não é assim tão grande a distância que o separa dos seres que ela faz viver. O ator ilustra, todos os dias, essa verdade tão fecunda: a de que não existem fronteiras entre aquilo que um homem “quer ser” e aquilo “que é”.

Quanto mais estreito é o limite que lhe é dado para criar sua personagem, tanto mais necessário que ele tenha talento. Afinal, ele vai morrer dentro de duas ou três horas sob um rosto que não é o seu. É preciso que nessas duas ou três horas ele sinta e exprima todo um destino excepcional, e isso tem um nome certo: é perder-se para se encontrar. Nessas duas ou três horas ela vai até o “fim do caminho sem saída” que o homem da platéia gasta a vida toda para percorrer.

No passado a Igreja repudiava, na arte do ator, a multiplicação herética das almas, o deboche das emoções, a pretensão escandalosa de um espírito que se recusa a viver apenas um destino e se precipita então em todas as intemperanças.

A atriz Adrienne Lecouvreur, no seu leito de morte, quis confessar-se e comungar, mas recusou-se a renegar sua profissão, conforme lhe exigiam. E, por causa disso, ela perdeu o benefício da extrema-unção. Isso significa que, entre Deus e a sua profissão, ela tomou o partido da sua paixão pelo teatro.

E essa mulher, na agonia, recusando-se a renegar aquilo que chamava “a sua arte”, mostrava, morrendo, uma grandeza que nunca atingira no palco. Foi o seu papel mais belo e também o mais difícil: escolher entre o céu e uma fidelidade irrisória.
E é esta finalmente a tragédia secular na qual temos que ocupar nosso lugar: “Entre nós e a eternidade, optar por nós”.

Se, como disse Camus, entre nós e a eternidade, nós, atores, optamos por nós, isso significa que temos uma identidade. Uma identidade própria, uma história específica, uma vida singular, com suas necessidades e razões. Muitas vezes as razões do jogo teatral do ator têm razões que própria racionalidade, melhor dizendo, que o próprio enquadramento da história dos homens e a história oficial do próprio teatro menosprezam. Ou mesmo desconhecem.
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[1] Palestra realizada no Centro de Artes Livres, em março de 1983. In: Cadernos de Teatro. Rio de Janeiro: Tablado / INACEN, abr. , mai. , jun. , 1983, n° 97.

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