CARTAS ENTRE OPOSTOS[1]
Bernardo Carvalho
Tchecov e Gorki foram escritores completamente diferentes. Para não dizer opostos e num certo sentido até mesmo antagônicos no que se refere às obras. É incrível pensar que possam ter mantido uma correspondência calorosa em que trocavam atenções, conselhos e elogios, como mostra “Carta e Literatura”, de Sophia Angelides, que já havia publicado, em 1995, uma seleção das cartas de Tchecov escritas entre 1880 e 1890.
Bernardo Carvalho
Tchecov e Gorki foram escritores completamente diferentes. Para não dizer opostos e num certo sentido até mesmo antagônicos no que se refere às obras. É incrível pensar que possam ter mantido uma correspondência calorosa em que trocavam atenções, conselhos e elogios, como mostra “Carta e Literatura”, de Sophia Angelides, que já havia publicado, em 1995, uma seleção das cartas de Tchecov escritas entre 1880 e 1890.
“Carta e Literatura”[2] foi concebido como tese de mestrado. O livro reúne parte da correspondência, inédita em português, entre dois dos maiores expoentes da literatura russa do final do século 19 e início do século 20. A seleção foi feita com base no interesse das questões de ordem estética ou literária levantadas pelas cartas.
Tchecov (1860-1904) era o que hoje poderia ser definido pelo rótulo um tanto redutor de autor “minimalista”. Nos seus contos e nas suas peças, as coisas falam por si, sem a necessidade de adjetivos ou de explicações morais. Tudo está nos detalhes, nas entrelinhas, no mínimo: “Graciosidade é quando, numa determinada ação, alguém utiliza o mínimo de movimentos”, ele escreve a Gorki em 1899.
O autor de “Tio Vânia”, “A Gaivota”, e “Dama do cachorrinho” é uma das fontes incontornáveis da literatura moderna. Sem ele, provavelmente, não haveria toda uma linhagem de autores que vai de Katherine Mansfield aos chamados minimalistas de décadas mais recentes, como Raymond Carver.
Gorki (1868-1939) era o escritor popular, o modelo do autor “natural”, flamejante e autodidata, dado aos arroubos metafóricos, ao excesso dos adjetivos, à grandiloqüência e às conclusões morais postas nas bocas dos seus personagens. Tudo o que, era princípio, podia causar horror a um autor econômico como Tchecov: “O senhor é como o espectador num teatro que manifesta seu entusiasmo de maneira tão desenfreada que impede a si e aos outros de ouvirem.”
Gorki foi, além disso, um escritor engajado: vindo da miséria e tendo vivido à margem, nas condições mais difíceis, conhecia de perto a fala e os personagens do povo; tornou-se um bolchevique, foi perseguido pelo regime czarista e acabou militando pelo realismo socialista.
A correspondência entre os dois, porém, está baseada num outro princípio, anunciado por Tchecov logo numa das primeiras cartas, de dezembro de 1898, e que é o fundamento não só para um entendimento entre escritores divergentes, mas para qualquer um que esteja disposto a compreender as manifestações literárias exteriores ao seu raio de visão: “Falar dos defeitos de um alento é o mesmo que falar dos defeitos de uma grande árvore que cresce num jardim: o principal não está na árvore em si, mas no gosto daquele que olha para a árvore.”
Na época, Tchecov já era um escritor consagrado e Gorki um promissor autor de sucesso, embora ainda estreante. Os elogios e as eventuais críticas que Tchecov faz aos seus excessos estilísticos revelam antes de mais nada quem era Tchecov, os seus gostos, os seus limites e sobretudo as sua grandeza. Assim como a admiração de Gorki pelas peças e pelos contos de Tchecov revelam antes de tudo as suas preocupações sociais e o escritor que ele acabaria se tornando.
É verdade que a relatividade desse princípio pode criar um aparente estado de flutuação, em que parece não haver mais nenhuma objetividade, mas nem por isso deveria deixar de orientar todos os que, entre críticos e leitores, especialistas ou leigos, muito confiantes na própria opinião, decidem que o mundo é isto ou aquilo baseado unicamente no próprio gosto – ou nos seus limites.
A propósito das diferenças entre os dois escritores, Sophia Angelides escreve sobre Gorki: “Eliminar todas as “deficiências” seria violentar a sua personalidade de escritor”. Em arte, a consciência da relatividade da apreensão subjetiva é fundamental para o estabelecimento da obra como um fato objetivo, social. Não é fácil, mas é preciso tentar compreender a obra de um autor dentro do projeto a que ele se propõe, despojar-se dos preconceitos e modelos prévios, assim como a ele, no caso do escritor de verdade, foi preciso esquecer as regras para poder criar as próprias.
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[1] CARVALHO, Bernardo. Cartas entre opostos. In: Folha de São Paulo, Ilustrada, 16 de fevereiro, 2002.
[2] ANGELIDES, Sophia. Carta e literatura: correspondência entre Tchéhov e Gorki. São Paulo: EDUSP, 2002.
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[1] CARVALHO, Bernardo. Cartas entre opostos. In: Folha de São Paulo, Ilustrada, 16 de fevereiro, 2002.
[2] ANGELIDES, Sophia. Carta e literatura: correspondência entre Tchéhov e Gorki. São Paulo: EDUSP, 2002.
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