O Mestiço, 1934, Portinari
JORGE COLI
A mostra "Almeida Jr. - Um Criador de Imaginários", organizada pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, entre outras obras, trouxe do Rio o conhecido "Derrubador Brasileiro".
O homem e a floresta
JORGE COLI
A mostra "Almeida Jr. - Um Criador de Imaginários", organizada pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, entre outras obras, trouxe do Rio o conhecido "Derrubador Brasileiro".
Gilda de Mello e Souza propõe uma relação entre "O Derrubador Brasileiro" e Portinari: "É nosso, sobretudo, o jeito de o homem se apoiar no instrumento, sentar-se, segurar o cigarro entre os dedos, manifestar no corpo largado a impressão de força cansada, a que Cândido Portinari parece não ter sido insensível".
Esse "é nosso" mostra os poderes construtores, dentro de uma cultura, das ficções às quais se dá o nome de identidade. Não apenas o quadro é pintado na Europa, com um modelo italiano, como sucede ao admirável "Remorso de Judas", do ano anterior, 1878.
Ambas, o "Derrubador" e o "Judas", mostram descendência michelangelesca, com referências à pintura e à escultura de Buonarroti.
Mas essa não é a questão. A comparação interessante com Portinari relevou pontos de contato. Vale a pena assinalar as diferenças.
Um quadro como "O Mestiço", de Portinari, por exemplo, sugere, efetivamente, uma relação visual com "O Derrubador".
O fundo traz um cafezal, fruto e obra dessa força de trabalho condensada nos músculos dos braços cruzados. A força de trabalho, visualmente representada pelos bíceps, é geradora de riquezas. O olhar de frente está no limite do desafio. Se esses braços se cruzarem de fato, a riqueza não frutificará.
Estamos em plena poética marxista, traduzida em pintura.
Suor
De "O Derrubador", apoiado em seu machado, emana uma força muscular mas também um erotismo forte, que é possível deixar por conta das ambigüidades naturalistas, onde "o povo" vem carregado de seduções carnais, de potência sexual -veja-se Aluísio Azevedo, veja-se Júlio Ribeiro. Almeida Jr. [1850-1899] insiste no volume entre as pernas do trabalhador.
Mas ele não tem nenhuma exaltação da "força de trabalho". O derrubador destrói florestas como indica o fundo do quadro. Não o vemos em ação, mas no repouso. Concentra seus poderes físicos -força, erotismo- no próprio corpo. Desvia os olhos. Entre o seu aspecto, a postura de descanso, e seu trabalho paradoxalmente destruidor se situa um feixe de relações humanas bem mais complexas do que as expostas no quadro de Portinari.
Calma
Almeida Jr. nunca fez nenhum apelo à eloqüência heróica. Nunca retratou o trabalhador diante de uma natureza épica, como o fazia, nos EUA, seu contemporâneo Homer.
Gonzaga Duque, Monteiro Lobato, entre vários, assinalaram outra característica determinante e essencial das obras de Almeida Jr.: sua definitiva simplicidade.
Almeida Jr. foge da eloqüência como foge também do pitoresco e do narrativo. Não existe, em seus quadros, nenhuma afetação sentimental ou heróica. Não existe nenhuma vontade em retratar os embates da violência em ato ou as conseqüências de dramas sentimentais.
Grandeza
Almeida Jr. traz seus personagens e seus cenários a uma observação discreta, a um comedimento neutro, muitas vezes difícil de descrever. Ao fazer isso, por contraste, indica quanto os grandes efeitos -a comoção piedosa diante do miserabilismo, o contágio exaltado diante dos impulsos heróicos- são sempre afetados, redutores e, de fato, simplificadores; enquanto, ao contrário, a aparente simplicidade e a discrição que lhe são próprias se revelam como o melhor veículo para um verdadeiro aprofundamento.
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Publicado originalmente em a Folha de S. Paulo, Mais!, 06 de maio de 2007.
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