O DÍARIO DE JUDITH MALINA NA PRISÃO
Belo Horizonte (MG) - No xadrez do DOPS, nesta capital, onde está presa há quase um mês – Judith Malina – a mulher de Julian Beck – é muito mais que uma simples prisioneira. Quase indiferente às acusações da polícia, ele prefere continuar escrevendo suas peças de teatro, acreditando que muita coisa deve ser mudada no mundo, com a imediata substituição dos velhos padrões de violência e ódio e a reabilitação do sexo, cuja repressão é a causa de todos os males.
Belo Horizonte (MG) - No xadrez do DOPS, nesta capital, onde está presa há quase um mês – Judith Malina – a mulher de Julian Beck – é muito mais que uma simples prisioneira. Quase indiferente às acusações da polícia, ele prefere continuar escrevendo suas peças de teatro, acreditando que muita coisa deve ser mudada no mundo, com a imediata substituição dos velhos padrões de violência e ódio e a reabilitação do sexo, cuja repressão é a causa de todos os males.
- “O sexo é puro, o corpo é santo. Nada existe neles para se sentir vergonha e repulsa”.
Magra, cabelos grandes, gestos nervosos e apressados, Judith Malina não admite que a prisão possa interromper seu longo trabalho em busca de novas maneiras e comunicação teatral. Mesmo porque a prisão é também parte da vida, o que ela só agora veio a conhecer mais demoradamente.
- É uma oportunidade. Ninguém pode negar. Nosso trabalho é feito através de estudos, pesquisas e observações. Lá fora, nos coquetéis, nas reuniões sociais, nas boates, nós nunca poderíamos imaginar a realidade deste outro lado do mundo limitado pelas grades”.
- “Cada dia na prisão é um novo dia. Tempo para olhar o mundo e redescobrir que o fuzil não é a única maneira de opressão, talvez a menor de todas”.
- “Pior que ele, os sistemas econômicos, a ampliação do mapa da fome e do medo, quando tudo poderia ser resolvido sem grandes sacrifícios. É só comparara os gastos da corrida espacial com os esforços contra a fome”.
Judith Malina depois de levar seu teatro, o “Living Theatre” a muitos países do mundo e a diferentes culturas, acha que hoje já se pode pensar numa vida futura melhor e mais humana. “E esta esperança está no protesto dos jovens na sua rebeldia em recusar a herança de violência e de guerra”.
É esta a principal mensagem de seu teatro, considerado um dos mais avançaos do mundo. Teatro para ser mostrado nas ruas, nas oficinas, nas escolas, onde houver gente a quem transmitir o apelo de “paz e amor”. Teatro que nasceu há mais de vinte anos quando Julian Beck e Judith se conheceram e passaram a realizar peças dentro do seu próprio apartamento, sem a preocupação de comércio e de crítica.
A prisão em Ouro Preto, a acusação da polícia e a presença nos Tribunais, nada modificou o desejo de continuar procurando maneiras novas e diferentes de dialogar com o povo. É a resposta do casal para quem pensa que o “Living Theatre” está em declínio quase acabando.
Ainda resta muita coisa a fazer, dizem os dois. Por isso a permanência física no xadrez não justifica a interrupção do trabalho, mas representa uma experiência nova, que deve ser aproveitada. A farda de presidiário não impede o espírito de criar e descobrir. É assim que pensa Judith.
Enquanto a Justiça decide se os atores do “Living Theatre” são ou não culpados, ela passa seu tempo escrevendo e pesquisando. E seus momentos de maior inspiração são para o velho diário que desde 1947 acompanha a discutida, elogiada e combatida trajetória do “Living Theatre”.
9 de julho de 1971. Aqui estou na minha cela. Não sinto desconforto. Se sentisse iria queixar-me. Mas não sinto e posso ser franca. O rádio toca Tchaikovsky. Larguei a edição, em português da Ilíada, que estou lendo com o auxílio de um dicionário e tento lembrar o que aconteceu, o que está acontecendo: e tento não pensar no que acontecerá.
A meu lado está Julliet, abrasada de amor. Ela acaba de ver, de relance, o seu amado, que mora na cela do outro lado do corredor, ele partilhava a cela com Julian, mas Julian foi transferido para a Cela I, que, segundo dizem é mais confortável. Como na “Ilíada”, o assunto é amor. Como na “Ilíada”.
Era o dia 10 de julho. Tínhamos sido avisados de que esse era o dia de abertura do Festival de Inverno de Ouro Preto e que haveria vigilância especial, mas sentíamos que nada tínhamos a temer.
Estávamos ocupados com nossos livros, como sempre estivemos por várias semanas e desejando ficar livres de trabalhos literários, livres para nos dedicarmos inteiramente a nova peça; lamentávamos o tempo gasto com os livros quando o que queríamos era consagrar cada momento à “Herança de Caim”.
Chegou alguém e disse: “O DOPS está em sua casa”.
“Por que?”
“Está procurando maconha”.
“Maconha? Pensei que o DOPS era polícia política. Por que está em nossa casa?”
Ninguém sabia. Fomos para a rua. Todo mundo olhava para nós de modo estranho. Tinha-se a impressão de que as pessoas nos evitavam. Caminhávamos na rua como leprosos. Eu disse a Julian: “Talvez seja sério”.
Tínhamos imaginado que a polícia, de passagem, tivesse parado, talvez a fim de fazer algumas perguntas. Somente mais tarde viríamos a saber da cena que tinha ocorrido.
Íamos andando pelas ruas aladeiradas e empedradas. Um carro da polícia deteve-se ao pé de uma das ladeiras e três policiais se aproximaram. Pelo que vi nos seus rostos eu disse a Julian: “Isto é uma prisão”.
Um dos policiais agarrou-me pelo braço, um outro agarrou o braço de Julian: “Está preso”.
Descemos a ladeira rumo ao carro. Eu estava com medo, mas calma. Não tínhamos idéia do que havia acontecido. Não fazíamos a menor idéia sobre o motivo por que nos detinham. Olhavam-nos, um para o outro, com amor. Os policiais estavam sérios, tinham até mesmo uma expressão severa, quando abriram a traseira do carro. Havia dois compartimentos, que se assemelhavam com uma caixa, achava-se um pneu. Assentei-me nele. Depois de fechada a porta o compartimento ficou escuro como breu e abafado. Tive forças para falar a Julian: “Estou com medo”.
______________________________________
Nas pesquisas que fiz para o doutoramento com o projeto Transas na Cena em Transe: teatro e contracultura na Bahia, em fase de finalização no Programa de Pós-Garduação em Artes Cênicas da UFBA, tomei contato com o longo diário de Judith Malina, objeto sobre o qual me detive com interesse, visto que seu escrito é um documento revelador da personalidade da autora, da vida carcerária sob a ditadura, do tratamento dado aos estrangeiros e aos brasileiros presos e também sobre o Living Thetre.
Como todos sabem, o Living esteve na Brasil no auge do governo civil-militar para desenvolver um trabalho junto com o Grupo Oficina e Grupo Lobo, da Argentina. A proposta não se realiza, mas o Living Thetre permance no país.
Nenhum comentário:
Postar um comentário