É PRECISO OLHAR A VIDA INTEIRA COM OLHOS DE CRIANÇA
Henri Matisse
Criar é próprio do artista; onde não há criação, não existe arte. Enganar-se-ia quem atribuísse este poder criador a um dom inato. Em matéria de arte, o criador autêntico não é somente um ser dotado, é um homem que soube ordenar, visando um determinado fim, todo um conjunto de atividades do qual resulta a obra de arte. Assim, para o artista, a criação começa com a visão. Ver, já é um ato criador e que exige certo esforço. Tudo o que vemos na vida cotidiana, sofre, mais ou menos, a deformação engendrada pelos hábitos adquiridos, e o fato é talvez mais sensível numa época como a nossa, onde cinema, publicidade, periódicos, impõem diariamente um fluxo de imagens preconcebidas, que são um pouco na ordem da visão, o que é preconceito na ordem da inteligência.
O esforço necessário para libertar-nos exige uma espécie de coragem; e essa coragem é indispensável ao artista que deve ver todas as coisas como se as visse pela primeira vez; é preciso ver a vida inteira como no tempo em que se era criança, pois a perda desta condição nos priva da possibilidade de uma maneira de expressão original, isto é, pessoal.
Tomando um exemplo, creio que nada é mais difícil para um verdadeiro pintor do que pintar uma rosa, porque para o fazer é preciso antes de mais nada esquecer todas as rosas que já foram pintadas. Aos que vinham me ver, em Vence, eu costumava fazer esta pergunta: “Vocês viram os acantos sobre a orla que margeia a estrada?“. Ninguém os havia visto; todos teriam reconhecido a folha de acanto sobre um capitel coríntio, porém a lembrança do capitel não permitia que se visse o acanto no estado natural.
É um primeiro passo para a criação ver-se cada coisa em sua verdade e isto pressupõe um esforço contínuo.
Criar é expressar o que se tem dentro de si. Todo esforço autêntico de criação é interior. Ainda assim é preciso cultivar essa sensação, com o auxílio dos elementos extraídos do mundo exterior. Aqui intervém o trabalho pelo qual o artista incorpora e assimila gradativamente o mundo exterior, até que e objeto desejado se torne parte dele mesmo, até que o tenha dentro de si e possa projetá-lo na tela como sua própria criação.
Quando pinto um retrato, tomo e retomo o meu assunto a cada vez é novo o retrato que faço; não o mesmo corrigido, mas outro retrato que recomeço; e cada vez é um ser diferente que eu extraio da mesma personalidade. Aconteceu-me muitas vezes, afim de esgotar de maneira mais completa meu estudo, inspirar-me em fotografias da mesma pessoa em idades diferentes; o retrato definitivo poderá representá-lo mais jovem, ou com aspecto diferente do que tinha quando pousava, porque este assunto me pareceu mais verdadeiro, mais revelador da sua personalidade real. A obra de arte é assim o coroamento de um longo trabalho de elaboração. O artista absorve tudo o que à sua volta for capaz de alimentar-lhe a visão interior, diretamente, quando o objeto que desenha deve figurar na sua composição, ou então, por analogia. Coloca-se assim em estado de criar. Enriquece-se interiormente de todas as formas de que possa tornar-se senhor e que ordenará algum dia conforme um ritmo novo. No expressar esse ritmo, a atividade do artista será realmente criadora. Para conseguí-lo, preferirá a seleção ao acúmulo de detalhes. Deverá escolher, por exemplo, no desenho, dentre todas as combinações possíveis, o traço que se revelar plenamente expressivo, como que portador de vida, procurar as equivalências pelas quais a natureza se transpõe para o âmbito próprio da arte. Na “Nature morte au magnólia”, representei em vermelho uma mesa de mármore verde; em outra ocasião precisei de uma mancha escura para evocar a cintilação do sol sobre o mar; essas transposições não foram absolutamente o efeito do acaso ou da fantasia, mas sim o coroamento de uma série de pesquisas, em conseqüência das quais esses matizes me pareceram necessários, tendo em vista suas relações com o resto da composição, a fim de comunicar a impressão desejada.
As cores, os traços, são forças, e no jogo destas forças, no seu equilíbrio, reside o segredo da criação. Na capela de Vence , que é o coroamento das minhas pesquisas anteriores, tentei realizar esse equilíbrio de forças; o azul, o verde, o amarelo dos vitrais, compõem no interior uma luz que não é propriamente nenhuma das cores empregadas, mas sim o produto vivo de sua harmonia, de suas relações recíprocas; essa cor-luminosidade deveria projetar-se sobre o campo branco, cercado de preto, do muro que fica fronteiro aos vitrais e no qual há linhas propositadamente muito espaçadas. O contraste permite-me dar à luminosidade todo o seu valor vitral, fazendo dela o elemento essencial, aquele que dê o colorido, aqueça, anime, no sentido próprio, este conjunto qual importa conferir uma impressão de espaço ilimitado a despeito de suas dimensões reduzidas.
Em toda a capela não há uma só linha, um pormenor, que não concorra para essa impressão. Parece-me que, nesse sentido é que se pode dizer que a arte imita a natureza: pelo caráter de vida que um trabalho criador confere à obra de arte. Então, a obra aparecerá igualmente fecunda e dotada desse mesmo frêmito interior, dessa mesma beleza resplandecente que as obras da natureza possuem. É preciso um amor muito grande, capaz de inspirar e de sustentar esse esforço contínuo em direção à verdade, essa generosidade conjunta e esse despojamento profundo que envolve a gênese de toda obra de arte.
Mas o amor não está na origem de toda criação?
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Texto coligido por Régine Pernoud. Art et Education. Unesco,1954.
Tradução de Regina Helena Tavares. Escolinha de Arte do Brasil,setembro, 1973.
Texto coligido por Régine Pernoud. Art et Education. Unesco,1954.
Tradução de Regina Helena Tavares. Escolinha de Arte do Brasil,setembro, 1973.
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