domingo, 3 de junho de 2007

Registro 96: Crítica


AS DESGRAÇAS DE UMA CRIANÇA
DE MARTINS PENA E CELSO JÚNIOR


Raimundo Matos de Leão
Doutorando e Mestre em Artes Cênicas


Está em cartaz no Teatro ISBA o espetáculo As Desgraças de uma Criança, texto de nosso primeiro grande comediógrafo, Luís Carlos Martins Pena. A encenação é mais uma produção da Cia. Experimental de Teatro do Curso de Artes Cênicas da Faculdade Social da Bahia – FSBA, e permanece em cartaz até 17 de junho, de sexta a domingo, às 20h. É uma curta temporada para um trabalho cênico que merece mais tempo em cartaz para que o público tome ciência e divirta-se com a interpretação dos alunos-atores sob a direção de Celso Júnior, também professor do referido curso.

O texto, levado à cena pela primeira vez em 13 de março de 1846, época em que o teatro brasileiro se constitui de fato com seus elementos fundantes: dramaturgos, atores reunidos por um empresário e público numeroso, inscreve-se na linhagem da comédia de costumes da qual o autor é criador entre nós. Ainda que distante no tempo de sua feitura, permanece vivo para as platéias pós-modernas. Vivo porque possibilita leituras, interferências, atualizações e encenações ágeis, além de fornecer aos atores bons personagens para uma criação segura. Quando de seu primeiro teste no palco, a comédia de Pena sofreu vários cortes determinados pelo Conservatório Dramático Brasileiro, órgão que na época encarregava-se não só de censurar os temas, mas principalmente de cuidar da qualidade literária do texto. Ainda bem que nos livramos de tal instituição, embora outras restrições se dêem no presente pela ordem econômica, que determina, via patrocínio incentivado pelas leis, um certo tipo de espetáculo.

Retomando recursos explorados em diversas de suas comédias, Martins Pena traz para a cena os casais enamorados enfrentando dificuldades para concretização da sua relação amorosa. O travestimento de personagens e o erro de pessoa são outros elementos evidenciados comicamente nos entrechos da peça, cuja ação se passa na noite de Natal. Enquanto os patrões Abel (Newton Olivieri) e sua filha Ritinha (Iriane Santana) vão à Missa do Galo, Madalena (Ava Catarina) toma conta do filho da viuvinha, lamentando-se por não poder ir á festa. Enquanto cuida da criança de forma muito pouco pedagógica e humana, ela recebe a visita do namorado, o soldado Pacífico (Alexandre Moreira). Depois de muita recusa, Pacífico concorda em tomar conta da criança para que Madalena vá à Igreja. Em seguida, o soldado vê-se em apuros porque a criança chora esganiçadamente, proporcionando ações engraçadíssimas que aumentam quando entra o sacristão Manoel Igreja (Ricardo Fariah), que já estivera na casa no começo da peça, pedindo a Madalena para entregar uma carta de amor para Ritinha. Pacífico, travestido de Madalena, recurso que usa para acalmar o bebê, sabedor do conteúdo da carta que descobrira debaixo do travesseiro da sua amada, acha que está sendo traído, atritando-se então com o sacristão. Esclarecida a confusão entre os dois, os donos da casa retornam. Pacífico e Manoel tratam de esconder-se. A bagunça aumenta, visto que Abel deseja Madalena e investe sobre ela sem saber que é Pacífico travestido. Por fim, Madalena retorna e Abel acha que em sua casa, trancado num quarto, encontra-se um ladrão. Sai para chamar polícia. Enquanto isso, Madalena e Ritinha dão fuga para os namorados. Tempo depois retornam, acompanhando Abel. Irrompe-se outra série de qüiproquós, com a criança passando de mão em mão, mais uma justificativa para o título. Finalmente os personagens entram em acordo, assim que o mal-entendido se esclarece. Tudo termina bem.

Desse entrecho simples e muito bem construído pelo autor, o diretor-professor Celso Júnior cria um espetáculo divertido, ágil entre doses de ingenuidade e deboche. Sem cair na vulgaridade do humor televisivo, Celso Júnior explora os elementos que o texto fornece optando pela chanchada, mas sem abrir mão de referências que estão em O Gordo e o Magro, Os Três Patetas e Os Trapalhões; mistura tudo isso com uma pitada maliciosa, fato que torna o espetáculo palatável e bem realizado, já que esses componentes são utilizados de maneira precisa e coerente com o gênero encenado. Sua concepção ressalta os elementos constitutivos da comédia de costume, atualizando-a.

Conduzindo os alunos-atores com segurança, o diretor possibilita a necessária estrutura para que eles se lancem no delineamento seguro das personagens, marcadamente tipos, explorados com graça e firmeza por todo elenco, ainda carente da experiência plasmada pela vivência do palco nos intérpretes. Por isso mesmo o trabalho dos alunos-atores é valorizado. Com sensibilidade cômica e sem apelações fáceis para sujeitar a platéia, eles cumprem e pontuam a ação com suas criações muito bem definidas. Desenhando marcações engraçadas e brincando com a gestualidade e os exageros do melodrama, a direção mantém o ritmo do espetáculo sem os exageros do teatro “besteirol”, gênero que ocupou o lugar da alta comédia e da comédia de costumes em nossos palcos.

Para emoldurar a cena, Celso Júnior contou com a ajuda do cenógrafo-iluminador e também professor do curso Eduardo Tudella, e da figurinista e professora Karina Alatta. Ao abrir-se o pano de boca, a platéia é envolvida pelo cenário simples e preciso. Concebido para situar a ação, serve como uma moldura leve, bem ao gosto do espetáculo. Através de estruturas vazadas, três portas que dão para o interior da casa e uma para o exterior, Tudella estabelece os limites da sala sem as paredes, usando como solução para evidenciá-las apenas o roda-pé. O cenário chama a atenção por essa solução. A sala se completa com os móveis – a mesa merecia mais atenção, visto que seu tampo não está fixado, ocasionando sobre-saltos na platéia – e uma árvore de Natal. O conjunto cenográfico destaca-se, mas se mantém orgânico no todo do espetáculo. Sua concepção realista não ilude o espectador. A teatralidade se instala e a convenção é aceita como parte do jogo do teatro. Os figurinos, ainda que bem concebidos, carecem de maior determinação quanto às características dos personagens. Ainda que tipos, eles definem-se socialmente diferentes, e isso poderia ser mais bem explorado, principalmente na escolha dos tecidos e na cor da roupa do senhor Abel.

A trilha sonora proporciona surpresa com a utilização de canções do conjunto Swing Singers, de grande sucesso nos dos sessenta, começo dos setenta. As músicas escolhidas harmonizam-se com o clima da comédia, tornando-se brejeiras a pontuar momentos do espetáculo com muita propriedade.

Por esses atributos, recomendamos uma ida até o Teatro ISBA para ver As Desgraças de uma Criança, mais uma realização da Cia. Experimental de Teatro, que objetiva colocar em cena os alunos do Bacharelado em Interpretação Teatral e também os de Licenciatura em Artes Cênicas, para que eles possam exercitar o que aprenderam na relação com a platéia. Esse jogo comunicativo está presente na encenação e ambos, intérpretes e espectadores, saem ganhando. Da mesma forma, os alunos que compõem a equipe técnica habilitam-se em outras funções necessárias para que o acontecimento teatral se realize. Cabe notar-lhes os nomes: Andressa Manso e Marília Sá (Assistentes de Iluminação), Luiz Ailton Santos Filho (Assistente de Direção), Paulo Sérgio Cerqueira (Assistente de Produção). Completam a equipe de criação, as professoras Juliana Rangel (Orientação de corpo e voz) e Marilda Santana (Produção Executiva).

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